Por RODRIGO DUARTE*
Comentário sobre o livro do compositor Gilberto Mendes
Nem todo grande criador tem a capacidade de transformar suas vivências em reflexões que, de algum modo, contribuam para melhor compreensão do seu métier. Também por isso entusiasma constatar que Gilberto Mendes – compositor de peças antológicas como Beba Coca Cola (sobre poema de Décio Pignatari) e Motetos à feição de Lobo de Mesquita (sobre poema de Affonso Ávila) – sabe como poucos recuperar reflexivamente sua experiência na criação musical, a qual coincide com um período significativo da música contemporânea da segunda metade do século 20.
Tal capacidade já pôde ser observada em seu livro anterior, Uma odisséia musical: dos mares do sul à elegância pop/art déco (Edusp), um memorial escrito para obtenção do título de doutor pela USP e que, por isso, camuflava, tanto quanto possível, o aspecto vivencial da experiência de Mendes como compositor e intelectual.
Neste livro o momento da vivência, depreendido já pelo título, é totalmente central, uma vez que, para ele, “viver sua música” não significa apenas ter se dedicado à composição, mas também ter tido, ao longo da carreira, a oportunidade de visitar lugares em várias partes do mundo de algum modo ligados às suas inspirações como criador musical.
Dentre muitos assuntos, Mendes discute a preponderância da chamada “música popular” sobre a erudita. Ele tem acesso privilegiado a esse debate, já que, diferentemente de muitos criadores eruditos, portadores de uma atitude desdenhosa para com outros tipos de manifestações culturais, Mendes não esconde que suas primeiras paixões musicais foram canções de filmes hollywoodianos, tais como Blue Hawaii, Too Romantic, I’d Know You Anywhere, Cheek to Cheek, It’s A Lovely Tomorrow, insistindo, por outro lado, que a qualidade musical desse repertório advém do fato de que seus compositores ou eram diretamente emigrados da Europa Central, formados numa escola de cromatismo wagneriano, ou eram seus discípulos locais.
Mendes não nega o fato de que essa qualidade, com o passar das décadas, decaiu enormemente, e revela sua admiração por Tom Jobim, exatamente porque acredita que o “refinamento erudito da canção norte-americana emigra, em fins dos anos 50, para a Bossa Nova brasileira”. Essa posição tem a ver com a avaliação de Mendes, segundo a qual o jazz – e toda a produção que gravita em sua órbita – podem ser considerados como uma das “três músicas novas do século 20”. Acrescenta assim, uma vertente da música tida normalmente como “popular” às duas outras escolas, consideradas por Theodor Adorno antagônicas: a liderada por Stravinsky e a iniciada por Schönberg (e continuada pelos participantes dos cursos de férias em Darmstadt no período pós Segunda Guerra).
O ponto de vista de Adorno propriamente dito, que remete à crítica do jazz e da indústria cultural, Mendes considera uma “conversa-fiada, mas muito afiada”, não sendo difícil perceber, no entanto, como essa posição, de algum modo, norteia a reflexão do compositor. Em duas outras passagens do livro ele menciona o filósofo alemão: numa delas, questiona porque Schönberg haveria de ser mais vanguarda do que Stravinsky. Noutra, ao mesmo tempo em que constata o que considera incompreensão de Adorno da importância musical do jazz, não deixa de reconhecer a grande relevância desse filósofo.
Na verdade, implicitamente, ao lado de sua abertura para a cultura “pop”, de um modo geral, Mendes assume posições compatíveis com a crítica cultural de Adorno, como, por exemplo, quando recorda uma passagem do Wilhelm Meister, de Goethe, em que se aborda a ideia de uma educação estética. Mendes, de olho na decadência atual, protesta: “E o que vamos dizer de nossos dias, com os domingões das TV s abertas, as telenovelas, o Big Brother?”.
Em virtude de posições como essa Mendes não pode ser considerado alguém que não vê quaisquer diferenças significativas entre as obras de arte propriamente ditas e as mercadorias culturais, insistindo que “paradoxalmente, a música erudita não tem nada a ver com a popular. São mundos longe de ser a mesma coisa, como pretendem os intelectuais populistas da mídia”.
Essa distinção, com efeito, não é parte de uma discussão meramente acadêmica, pois, diante da preponderância quase absoluta da música de massa, o que está em questão é a própria sobrevivência da música enquanto arte propriamente dita, o que é lucidamente reconhecido por ele: “A música erudita, para sobreviver, ou se alinha ao gosto pop e globalizado dos novos tempos, ou vai ter de se conformar em continuar cada vez mais isolada em seus guetos, com os compositores especulando em cima da matéria sonora para curtição deles mesmos. Contudo são exatamente e somente esses compositores que podem e vão levar a linguagem musical em frente, descobrir novos caminhos”.
Para compreender como são conciliáveis esses dois pontos de vista aparentemente discrepantes – a abertura para a cultura “pop” ao lado de uma consciência aguda da especificidade da criação artística erudita –, é interessante prestar atenção no depoimento no qual Mendes justifica a referida abertura tendo em vista a procura de “novos caminhos” e o cultivo da liberdade de expressão: “De minha parte, eu me sinto um velho neue Musik, como um velho marinheiro. É a minha origem, que eu prezo muito, essa formação musical alemã, serialista, ligada à ideia de estrutura, de forma, de música difícil de ser tocada e ouvida. Mas quando penso, muitas vezes, em retomar a linha de complexidade, parece-me que estou voltando aos anos 50, 60. Eu já fiz tudo isso aí, quero agora fazer outras coisas”.
*Rodrigo Duarte é professor titular no Departamento de filosofia da UFMG. Autor, entre outros livros, de Varia aesthetica: Ensaios sobre arte e sociedade (Relicário)
Referência
Gilberto Mendes. Viver sua música. São Paulo, EDUSP, 374 págs.