Por GUSTAVO TORRECILHA*
A crítica do cineasta norte-americano ao conteúdo e à forma do cinema contemporâneo
Depois de críticas a filmes como os de super-heróis da Marvel ou ao uso de aparelhos celulares para se assistir a obras cinematográficas, Martin Scorsese apresenta agora, em seu tributo a Fellini no artigo Il Maestro, publicado recentemente na Harper’s Magazine, críticas a respeito do conteúdo e da forma do cinema contemporâneo, ou, em sua visão, a falta de um conteúdo verdadeiro, substancial, artístico – o que implica, por si só em questões e desenvolvimentos no âmbito formal. Apesar de possivelmente não ter sido a sua intenção – afinal, não há qualquer referência bibliográfica a um texto teórico ou filosófico, além do fato de que o tributo se dedica principalmente a discutir o quanto Scorsese considera dever à produção de Fellini –, alguns pontos contidos em seu escrito ecoam argumentos que vêm sendo trabalhados pela estética nos últimos duzentos anos.
Isso se dá porque Scorsese considera Fellini como um modelo do cinema enquanto arte e não meramente como negócio. As características de sua obra, bem como de diversos de seus contemporâneos, especialmente aqueles dos períodos “novos” e experimentais, foram responsáveis por moldar o que é cinema, muitas vezes a partir de tentativas justamente de se discutir as questões de forma e conteúdo dessa arte. Tal conteúdo (e consequentemente sua forma) sofrem perdas com o crescimento do cinema enquanto indústria. É justamente com relação a essas discussões introduzidas por Scorsese que existem ressonâncias com grandes pensadores, como por exemplo Hegel e Habermas.
A dívida de Scorsese com relação a Fellini se dá em sua própria formação como pessoa e cineasta, que tem início no período em que o diretor italiano começava a florescer como artista. Se para diretores como Bertolucci – como o próprio confessou a Scorsese – La Dolce Vita tinha sido o motivo que os levou a se voltarem ao cinema, para o diretor estadunidense a grande inspiração era 8½, filme no qual o alter ego de Fellini, Guido, também diretor, sofre de bloqueio e procura refúgio, paz e orientação enquanto artista e ser humano. Nesse enredo, Scorsese ressalta como o público basicamente vê Fellini criando o filme, na medida em que o processo criativo é a própria estrutura da obra. O seguinte trecho é importante para o entendimento do filme e como ele afetou não apenas Scorsese, mas o próprio cinema:
Gore Vidal me disse uma vez que ele havia dito a Fellini, “Fred, menos sonhos na próxima vez, você deve contar uma história.” Mas em 8½, a falta de resolução é justa, porque o processo artístico também não tem uma resolução – você apenas deve seguir. Quando você termina, você é obrigado a começar de novo, assim como Sísifo. E, como Sísifo descobriu, empurrar a pedra montanha acima repetidas vezes se torna o propósito de sua vida.
Fellini é considerado por Scorsese mais do que apenas um cineasta, mas como alguém que, assim como Chaplin, Picasso e os Beatles, teria sido muito maior do que a sua própria arte. Com Fellini, surge um certo estilo, uma certa atitude com relação ao mundo – o que resulta tanto no adjetivo “fellinesco” quanto na incorporação do nome do autor na distribuição de filmes como Fellini Satyricon ou Fellini’s Casanova: o diretor se tornara “uma marca, um gênero em si de si”. Essa característica, no entanto, suscita a crítica de Scorsese, pois ele considera se tratar de um aspecto perdido pelo cinema nos últimos trinta anos. Não obstante não se concordar inteiramente com com sua posição, que parece um pouco exagerada (afinal, mesmo nos dias atuais há autores que invocam essa aura de possuir um gênero próprio, como, por exemplo, Tarantino e Sofia Coppola), ela suscita diversas discussões nas quais a estética pode apresentar argumentos interessantes para a compreensão do fenômeno artístico e cinematográfico.
O cerne de sua crítica diz respeito a como o cinema era, nos tempos de diretores como Godard, Bertolucci, Antonioni, Bergman, Imamura, Ray, Cassavetes, Kubrick, Varda e Warhol, além dos mais estabelecidos e renomados Welles, Bresson e Huston, mais do que apenas um conteúdo. Isso diz respeito a como, para Scorsese, até poucos anos atrás, o termo conteúdo era sempre contraposto à questão da forma. Tais artistas estariam constantemente lutando com a questão “o que é cinema?” e sempre se utilizando do próprio cinema, de seus próximos filmes, para tentar responder a essa questão. Isso resulta no desenvolvimento do cinema enquanto arte, tanto em termos de forma, quanto de conteúdo. Mas a partir dos anos setenta e oitenta, algo mudou para diversos cineastas, incluindo o próprio Scorsese, com cada um se tornando sua própria ilha, isolado, lutando para fazer o próximo filme.
Esse isolamento ocorre nos tempos presentes, pois a arte do cinema estaria “sendo sistematicamente desvalorizada, deixada de lado, rebaixada e reduzida ao seu denominador mais baixo”, o “conteúdo”. Scorsese aponta como, hoje em dia, tudo é conteúdo, especialmente para aqueles que não sabem nada da forma de arte. O “conteúdo se tornou um termo comercial para todas as imagens que se movem: um filme de David Lean, um vídeo de gato, um comercial no Super Bowl, uma franquia de super-herói, um episódio de uma série”. Tudo isso, aliado à substituição da curadoria do cinema (apesar de algumas plataformas como o MUBI ainda a manterem) por sugestões de algoritmos baseadas principalmente nas preferências do espectador no que diz respeito ao tema ou no gênero, que tratam o público apenas como consumidor, estaria constantemente rebaixando a arte do cinema.
A conclusão é de que “tudo mudou – o cinema e a importância que ele tem em nossa cultura”. O negócio cinematográfico passa a ter cada vez mais ênfase no termo negócio, sendo o valor de cada obra determinado pela quantidade de dinheiro que o projeto renderá. Por fim, conclui Scorsese: “Eu acredito que nós também tenhamos que refinar nossas noções do que é cinema e do que não é. Federico Fellini é um ponto para começar. Pode-se dizer muitas coisas sobre os filmes de Fellini, mas aqui há uma coisa que é incontestável: eles são cinema. A obra de Fellini percorre um grande caminho em direção à definição da forma da arte”.
Há algumas reflexões que podem ser feitas a partir das considerações de Scorsese tomando por base a estética filosófica. A questão de tudo ser conteúdo, aspecto que o próprio admite ter um lado positivo para ele e demais cineastas, encontra ressonância nos Cursos de estética de Hegel oferecidos na década de 1820 na Universidade de Berlim. A estética hegeliana enxerga três formas de arte. A forma de arte simbólica ocorre em um período no qual a arte está se constituindo, enquanto pré-arte[i], onde ainda não há total adequação do conteúdo espiritual à forma. É principalmente a arte oriental e egípcia.
A segunda forma de arte, clássica, ocorre no mundo grego, com o conteúdo que se adequa perfeitamente à forma, dado que se trata de um contexto onde a arte é o mais elevado meio de expressão no espírito. Com a perda dessa posição, resultado do espírito que se volta para a sua interioridade a partir da época cristã, surge a forma de arte romântica, na qual o conteúdo da arte não é mais capaz de representar as necessidades mais elevadas do espírito, podendo inclusive se tornar mundano.
O exemplo mais notório dessa arte mundana é representado pela pintura holandesa dos séculos XVI e XVII, uma arte que passa a ter por conteúdo a própria vida[ii]. Se antes a arte tinha por função essencialmente a representação religiosa, principalmente com os holandeses – em decorrência, por exemplo de suas condições econômicas (desenvolvimento da sociedade burguesa) ou religiosas e culturais (a reforma e o florescimento da religião protestante) – agora ela ganha uma liberdade de temas e assuntos a percorrer.
É nesse momento que tudo se torna conteúdo, como naturezas mortas ou uma cena no interior de uma taverna. Hegel também enxerga um lado positivo nessa transformação de tudo em conteúdo para a arte, e se dedica à defesa da pintura holandesa e sua trivialidade. Mas se por um lado tudo se torna conteúdo, por outro há a implicação da perda da importância do conteúdo espiritual, enquanto representante da totalidade de um povo (como era a arte dos gregos) através da arte, o que implica na ascensão da subjetividade do artista, característica da arte da modernidade.
A transformação de tudo em conteúdo para a arte tem suas consequências. A tese de Scorsese de que o cinema “sempre fora muito mais do que conteúdo e sempre será” também pode ser discutida a partir da ótica da filosofia hegeliana, e neste caso não apenas da estética, mas também da lógica. Com essa tese, em oposição aos conteúdos vazios que ele enxerga no cinema contemporâneo, ele quer dizer que o cinema também é a forma, tendo por seu conteúdo a discussão da própria forma. No primeiro volume da Enciclopédia das ciências filosóficas, Hegel discute as questões de forma e conteúdo chegando à conclusão de que a forma pertence intrinsecamente ao conteúdo, sendo que determinado conteúdo carrega consigo sua forma ao florescer[iii], de modo que a forma não é incidental, mas carrega em si a própria essência do conteúdo.
É por isso a arte assume suas formas, porque “no conteúdo concreto reside também propriamente o momento do fenômeno exterior e efetivo e, igualmente, sensível”[iv]. No caso daqueles diretores mencionados por Scorsese, o conteúdo de suas obras, pautado pela compreensão do e experimentação com o próprio fazer cinematográfico, tinha como argumento justamente o questionamento das formas, o que permite sua evolução, seu desenvolvimento e a experimentação com elas.
Mas a partir do momento em que esse conteúdo se torna vazio, a forma deixa de ser questionada, tornando-se também vazia. Não obstante, os questionamentos já suscitados permitiram à forma diversas possibilidades de florescimento, que são aproveitadas pela indústria cinematográfica, pelo negócio. Os diretores mencionados por Scorsese são especialmente aqueles da vanguarda do cinema de meados do século XX.
Neste ponto, é importante relembrar a crítica de Habermas à arte pós-moderna, pós-vanguardista, que se aproveita das formas livres criadas pelas vanguardas, porém com um conteúdo vazio[v]. Se, para Scorsese, tudo pode ser conteúdo (o que tem uma dimensão positiva para o cineasta, assim como tinha para Hegel, onde o fim da arte não necessariamente tinha uma conotação negativa, mas pelo contrário, que demonstrava o estágio do desenvolvimento espiritual da modernidade), então se possibilita essa efervescência de cada vez mais conteúdos sem conteúdo.
É claro que os pontos levantados por Scorsese não são necessariamente novos. A prova disso é que essa discussão poderia ainda trazer diversos outros autores que pensam a arte moderna e a arte pós-moderna. De qualquer forma, é emblemática a percepção de um grande diretor a respeito das questões do cinema contemporâneo, não apenas a partir de uma visão puramente nostálgica do cinema do passado, mas com uma crítica substancial e que inclusive encontra sustentação na filosofia.
*Gustavo Torrecilha é mestrando em filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
Referência
SCORSESE, Martin. Il Maestro: Federico Fellini and the lost magic of cinema. Harper’s Magazine, March 2021.
Obras citadas
HABERMAS, J. Arquitetura moderna e pós-moderna. Tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado. Novos Estudos CEBRAP, nº 18, setembro 1987. p. 115-124.
HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética, Volume I. Tradução de Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. 2ª ed. 1ª reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015. 312 p.
______. Cursos de Estética, Volume II. Tradução de Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. 1ª ed. 1ª reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014a. 360 p.
______. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio: 1830, Volume I: a ciência da lógica. Tradução de Paulo Meneses com a colaboração do Pe. José Machado. 3ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012. 444 p.
Notas
[i] HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética, volume II. Tradução de Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. 1ª ed. 1ª reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014, p. 25
[ii] HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética, Volume I. Tradução de Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. 2ª ed. 1ª reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015, p. 180.
[iii] Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio: 1830, Volume I: a ciência da lógica. Tradução de Paulo Meneses com a colaboração do Pe. José Machado. 3ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012, §§ 133 e 134.
[iv] HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética, Volume I. Tradução de Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. 2ª ed. 1ª reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015, p. 87.
[v] HABERMAS, J. Arquitetura moderna e pós-moderna. Tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado. Novos Estudos CEBRAP, nº 18, setembro 1987. p. 116.