Por ALEXANDRE DE FREITAS BARBOSA*
Dois vírus com potencial destrutivo: o vírus biológico e o vírus da desfaçatez de classe
O texto abaixo contém fortes doses de ironia, não sendo recomendável aos espíritos incautos. Não se trata de ironia sutil, pois o momento é cruel e exige seriedade. Atingimos a triste marca de 300 mil mortes, configurando um genocídio à brasileira. Assim ficará registrado nos nossos livros de história
Em primeiro lugar, gostaria de cumprimentar os autores da “Carta Aberta à Sociedade Referente a Medidas de Combate à Pandemia”. Trata-se de um texto escrito na medida certa, com argumentos técnicos sopesados e um sentido de urgência à altura do momento em que vivemos. Estou sendo sincero. Eu assino embaixo de todos os parágrafos. Primoroso. Repito: sem ironia.
E afirmo mais uma vez sem ironia: é importante que tenha sido escrito pela nata do grande capital e dos economistas que geralmente defendem os seus interesses. Na primeira versão do documento, cerca de 85% dos assinantes que pude identificar se enquadravam nesta categoria. Depois os assinantes se multiplicaram e o perfil se diversificou um pouco. Não era pra menos: o texto é potente e toca no cerne do drama que vivemos.
Por que era importante que o documento fosse assinado por gente de escol, com uma longa ficha de serviços (muito bem remunerados, é importante que se diga) prestados ao capital? Para causar rebuliço em Brasília. Pois a verdade nua e crua é que não existe polarização nenhuma. Eles exercem o poder real e têm influência junto a quem manda. Nada que a esquerda diga fura o bloqueio midiático e o controle plutocrático dos três poderes.
De fato, pelo que a grande imprensa noticia, a capital acusou o movimento armado pelo capital. Confesso que fiquei contente. Não passo de um reformista nacionalista da velha guarda. Sempre achei que não adianta ir contra a burguesia, o que é bem diferente de apoiá-la. Cabe a nós da esquerda atuar nas suas rachaduras, mobilizando outros interesses de classe, especialmente daqueles que vivem da renda do trabalho. Um pouco de dialética não faz mal a ninguém.
Quase soltei rojões ao ler o texto. Foram dois anos de pregação das “reformas” e do ajuste fiscal a qualquer custo. Normalizaram o capitão, inclusive fornecendo a ele apoio explícito, em nome de uma “agenda liberal” empreendida pelos seus milicianos de mercado. Será que o pessoal se deu conta?
O texto denuncia a desigualdade agigantada com a pandemia. Defende recursos para a ciência, a educação e a saúde. Menciona a necessidade de “políticas públicas alicerçadas em dados, informações confiáveis e evidência científica”. Não se refere de maneira expressa aos responsáveis pela nossa tragédia cotidiana, mas quem o lê com atenção percebe o tom de denúncia. Sutilmente, ele dá nome aos bois, jacarés e jumentos.
Não encontrei no texto a palavra “Estado”, e tampouco referências à “nação” ou à “sociedade”. Mas isso é coisa do passado. De “social”, há o “distanciamento”, cada vez mais urgente, estamos todos de acordo. Já o nosso querido Brasil aparece como “país” várias vezes, seja lá o que isso signifique para além da acepção geográfica. Há a defesa da “coisa pública”, o que é, no mínimo, republicano. Infelizmente, a sigla SUS não é mencionada. Perdoem-me a preocupação semântica, mas a linguagem nos fornece acesso ao inconsciente e, por vezes, à ideologia.
Confesso que levei um susto quando decretaram a importância de um programa de “responsabilidade social”. Seria tão importante quanto a Lei de Responsabilidade Fiscal? Escrevi vários textos sobre isso quando era um jovem assessor sindical. Será que eles mudaram de lado? E pulei da cadeira quando li “medidas de caráter nacional”, para em seguida descobrir que o adjetivo tinha conotação geográfica, pois vinha sucedido por “regional ou estadual”. Mas me dei por satisfeito ao ler sobre a falta que faz uma política externa “desidratada de ideologia e de alinhamentos automáticos”.
O texto é impecável no item vacinas, com dados e simulações. Chega ser informativo no quesito reuso de máscaras. É tanta a desinformação cotidiana que passarei a adotar algumas recomendações. Sem ironia. Percebe-se inclusive a possibilidade de produção de máscara de qualidade a baixos preços e a sua distribuição gratuita à população mais “vulnerável”. Imagino que esse tópico talvez tenha contado com o aporte empírico de um economista brasileiro de prestígio, assinante da missiva, que no Valor Econômico do dia 16 de março relatou a sua insólita peregrinação para importar uma máscara top de linha.
Achei estranha a ausência da defesa do teto dos gastos e das “reformas”, que por muito tempo pautou os artigos dos assinantes do importante manifesto. Os textos eram virtualmente iguais, alterando apenas os verbos e a sua conjugação. Aparentemente, a discussão do teto dos gastos e dos 3 D’s (desvincular, desindexar e desobrigar) do colega ministro fica para depois. Ou nem precisa, pois as vacinas possuem uma ótima relação custo benefício e um sistema de proteção social “eficiente” não há de custar muito.
Gostei especialmente do trecho: “a recuperação econômica, por sua vez, é lenta e depende da retomada de confiança e maior previsibilidade da situação de saúde no país. Logo, não é razoável esperar a recuperação da atividade econômica em uma epidemia descontrolada”. Não sei se autores do texto sugerem que a retomada da confiança da economia depende apenas da saúde, das vacinas e das medidas sociais tão bem apontadas.
Pelo que entendi, dá para salvar vidas e voltar a crescer. Mas depois da pandemia, fica tudo como dantes no quartel de Abrantes? Não ficou claro se depois de salvarmos as vidas, abrimos espaço para a economia deslanchar de vez. Ou se volta a Ópera dos Três Vinténs.
Ousei discordar de um trecho: “com a aceleração de casos, a população responde ficando mais avessa ao risco sanitário, aumentando o isolamento voluntário”, com base em publicação internacional. No meu entender, a média oculta diferenças de classe. Mas “classe” deixou de existir faz tempo: a “população” se divide no máximo entre os pobres e os “não-pobres”.
Também senti falta de uma menção à reforma trabalhista, se ela não teria contribuído para o aumento do desemprego e da desigualdade e para os baixos níveis de consumo. Se bem me recordo, os 85% que localizo no campo dos economistas ortodoxos ou dos magnatas defenderam a reforma trabalhista como condição para o crescimento econômico e a geração de empregos. Mas aí veio a pandemia e complicou o cenário. Ao que tudo indica, a reforma trabalhista é fato consumado, foi aprovada no Congresso e ponto final. Assim como o teto dos gastos.
Pelo que fui informado, os economistas chamados de heterodoxos não foram chamados para assinar o documento por questões semânticas, ainda que um ou outro tenha aderido posteriormente. Confesso que cogitei fazê-lo, tendo em vista que estou quase inteiramente de acordo com o texto e não podemos perder mais tempo com filigranas. Mas desisti porque discordo de tudo o que não ficou dito. Sim, o silêncio por vezes vale mais do que mil palavras. E no quartel de Abrantes, há consensos que ainda unificam o capital antes, durante e depois do capitão.
Foi então que me caiu a ficha de quão repleta de coincidências é a história. Temos mais de dois anos de governo do capitão e um ano de pandemia. E, vejam, o documento foi lançado exatas duas semanas após a decisão do ministro do Supremo que torna elegível o ex-presidente Lula! Tempo suficiente para escrever um texto civilizado, coerente e com argumentos técnicos imbatíveis. Fiquei até com a impressão de que o discurso do operário estadista, sem ser economista de pedigree, mas fazendo uso do seu economês mesclado ao jargão popular, brifou os economistas do capital.
É importante agir rápido. Com essa “tal de polarização”, vai que o Lula volta, ainda mais depois daquele discurso, e o “país” fica “sem opção”. Afinal de contas, o capitão é “cria” do operário: o primeiro foi eleito enquanto o outro estava preso, o que indica uma perfeita correlação. Sim, são unha e carne. Não se pode compactuar com a “barbárie”, especialmente se ela tem votos (a maior parte da população é “vulnerável”) e nós apenas temos o poder. Precisamos ficar do lado da “civilização”. É triste ver tanta gente morrer – inclusive entre os “não-pobres” – e o Brasil virar um pária internacional.
Foi então que pensei com os meus botões que neste estranho “país”, por vezes a civilização e a barbárie caminham de mãos dadas. Não seria o caso de cogitar que o sapo barbudo – codinome da “barbárie” – pode “civilizar” o capital? Isso ocorreu parcialmente no passado recente, quando o capital surfou na onda e bateu palmas. Depois eles abraçaram o mar tempestuoso, amotinando-se no convés do navio, enquanto o “país” ficava à deriva. Depois da invasão e do butim, o capital se veste de boas maneiras.
Nada como um “bárbaro” para colocar ordem na casa onde glutões comensais em orgias rocambolescas fazem a festa que espalha dois vírus com potencial destrutivo: o vírus biológico e o vírus da desfaçatez de classe, esse enraizado na nossa história.
*Alexandre de Freitas Barbosa é professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).