Por LUIS FILIPE DE SOUZA PORTO*
Uma panaceia para a crise global?
Não faltam exemplos históricos que ilustram como o direito de acesso à saúde permitiu uma mudança nas relações negativas peculiares da realpolitik para uma cooperação solidária positiva, principalmente quando o objetivo é superar um inimigo de saúde pública comum.
A penicilina, produzida em larga escala e sem restrições desde 1943, no contexto da Segunda Guerra Mundial, serviu para o tratamento de soldados feridos de todas as partes envolvidas nos confrontos; Mais recentemente, durante o pior da epidemia de HIV/AIDS, o acordo que permitiu a fabricação de medicamentos genéricos contra o vírus superou interesses privados, comerciais e burocráticos, salvando milhões de pessoas e desenvolvendo até hoje em programas sólidos no combate ao HIV em diversos países.
O que dizer sobre a pandemia de Covid-19? Atualmente o debate sobre a quebra de patentes ou não parece sobrepor de forma desumana uma obrigação ética de salvar vidas, prevalecendo interesses comerciais e inércia burocrática.
Quase três milhões de vidas foram ceifadas em aproximadamente dois anos de pandemia do Covid-19. Tantos mortos quanto as batalhas de Verdun e Stalingrado juntas. Sabemos que só existe uma maneira de superar esta crise: a vacinação universal. No entanto, grande parte do mundo enfrenta atualmente uma escassez de vacinas, como se a história não fornecesse, de forma quase exaustiva, exemplos de mecanismos e ações para lidar com crises sanitárias de forma mais rápida e menos burocrática.
O Brasil, assim como outros países emergentes como a Índia, percebeu ao longo da história recente de que política externa e acesso à saúde digna servem como dois lados da mesma moeda. Multiplicou seus esforços de cooperação com países diversos — muitas vezes localizados no hemisfério sul –, caracterizando o que é conhecido nas Relações Internacionais como “Cooperação Sul-Sul”, adotando postura demandante perante a comunidade internacional como um todo de forma ativa e construindo ferramentas eficazes de soft-power na política externa.
Nas organizações internacionais, a postura altiva não é diferente e tem sido uma constante na política externa brasileira desde a criação da Liga das Nações. A demanda por facilitação do acesso à saúde, de forma geral, é pauta frequente em pleitos na Organização Mundial da Saúde (OMS), na Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), no Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e em diversas outras.
Tal envolvimento global reflete tanto o interesse do mundo exterior no potencial de países emergentes em vários domínios e a expressão cada vez mais latente destes países em se projetar no cenário internacional de forma mais ativa. Reflete a necessidade de abordagem da saúde de forma solidária e coletiva. Foi assim que abrimos as portas para uma política mundial efetiva contra a AIDS em diversos países, superando barreiras diversas. Poderia ser diferente agora?
Patentes não podem ser um obstáculo para uma vacinação universal e rápida. A situação é de extraordinária emergência mundial, e requer solução extraordinária e emergencial. O acesso às vacinas não deve ser determinado pelo poder aquisitivo de cada país, nem pelos interesses privados de laboratórios farmacêuticos. Não é lógico que tenhamos conseguido superar crises sanitárias diversas ao longo da história dessa forma; não faz sentido termos desenvolvido um leque de vacinas seguras e eficazes em tão pouco tempo, mas com acesso prejudicado por freios comerciais, políticos e burocráticos.
Sabemos que é um processo complexo, desconfortável, talvez lento. Mas qual é a alternativa? Esperar? Basta olhar à nossa volta para perceber que esta não é uma opção.
*Luis Filipe de Souza Porto é mestrando em Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (PPGRI/UFABC).