Por CAROLINA FREITAS*
O espaço urbano imobiliário segue operando o cativeiro da terra fundante das relações sociais de produção
Nesta última semana, índices atualizados da PNAD[i] circularam apontando maior prevalência, em meio às categorias profissionais, de óbitos por covid-19 entre trabalhadores garis, faxineiras, auxiliares de limpeza, diaristas e cozinheiros. Nada mais afeito às severas alegorias que resumem a pandemia no Brasil, mas, muito antes disso, o próprio Brasil.
Repetidamente, recordamos o óbito fundacional em março de 2020 de Cleonice Gonçalves, trabalhadora doméstica desde os 13 anos no Rio de Janeiro, que morreu ao cuidar da patroa doente vinda da Itália. Lembramos também do mais horrendo assassinato (fosse possível nivelar a gravidade da morte), que condenou Mirtes Souza a trabalhar sem dispensa durante a pandemia e a viver sem seu filho Miguel, menino que perdeu a vida caindo do nono andar de um prédio, pelo capricho homicida de Sarí Corte Real, a patroa e primeira-dama latifundiária pernambucana.
O tal prédio, a Torre Gêmea de Recife, assim como todo lume estrutural de aço e vidro das arcaicas relações coloniais incrustadas no processo de barbarização das cidades brasileiras pelo capital imobiliário, é, possivelmente, a maior prova de que a classe dominante brasileira vive sob padrões de reprodução incomparáveis, e, mesmo assim precursores, comparando-os ao restante do planeta.
Há um descomunal contingente de milhões de seres humanos negros no Brasil que repõe, diariamente, o espaço urbano-imobiliário de tal modo que este possa seguir sendo abstrato, asseptico, espectral, como nas fotografias das revistas de decoração. Para milhões, não há futuro na apodrecida, embora imperecível, arquitetura retrofuturista que anima luxos burgueses e capitaliza a concentração patrimonial nas metrópoles.
Economicamente, o tradicionalíssimo trabalho concreto não pago que regeu a acumulação capitalista originária no Brasil, quando homens e mulheres escravizados desempenhavam suas atividades como renda de capital fixo, se amalgama ao moderno trabalho doméstico concreto improdutivo e assalariado, atado à renda das edificações urbanas.
Embora frequentemente se denuncie o trabalho doméstico assalariado no Brasil como extensão da escravização colonial, haja vista seu baixo valor de troca, representativo do rebaixamento dos custos de reprodução da força de trabalho na periferia capitalista, é preciso lembrar que é este símbolo do atraso brasileiro que garante a acumulação financeirizada contemporânea, atuando como contratendência infraestrutural da depreciação da propriedade privada imobiliária. Para que o valor de troca de flats, hotéis, apartamentos, prédios, bairros, se mantenha, o trabalho coletivo de conservação de seu valor de uso é uma condição.
Os modos de viver e habitar as cidades, a domesticidade abstrata dos apartamentos ostensivos, que se convertem em ativos financeiros preferenciais às famílias e grupos proprietários, dependem continuamente dos quartinhos de empregada, da senzala residual dos designs e plantas arrojadas. Trata-se de uma espacialidade inconstrangível, a despeito da legislação escandalosamente recente que reconhece o emprego doméstico como profissão.
Como resume a clássica afirmação de José de Souza Martins sobre o coração da sanha epidêmica da classe dominante brasileira, “se a terra fosse livre, o trabalho tinha que ser cativo; se o trabalho fosse livre, a terra tinha cativa”[ii]. O espaço urbano imobiliário segue, desse modo, operando o cativeiro da terra fundante das relações sociais de produção por essas bandas.
*Carolina Freitas é doutoranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Notas
[i]https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2021/04/12/interna_gerais,1255963/limpeza-vira-profissao-de-risco-na-pandemia-da-covid-19.shtml; https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/vulnerabilidade-domesticas-pandemia/#cover.
[ii] MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Editora Contexto, 2010. p. 49.