Trabalho doméstico e cativeiro imobiliário

Imagem: Himesh Mehta
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por CAROLINA FREITAS*

O espaço urbano imobiliário segue operando o cativeiro da terra fundante das relações sociais de produção

Nesta última semana, índices atualizados da PNAD[i] circularam apontando maior prevalência, em meio às categorias profissionais, de óbitos por covid-19 entre trabalhadores garis, faxineiras, auxiliares de limpeza, diaristas e cozinheiros. Nada mais afeito às severas alegorias que resumem a pandemia no Brasil, mas, muito antes disso, o próprio Brasil.

Repetidamente, recordamos o óbito fundacional em março de 2020 de Cleonice Gonçalves, trabalhadora doméstica desde os 13 anos no Rio de Janeiro, que morreu ao cuidar da patroa doente vinda da Itália. Lembramos também do mais horrendo assassinato (fosse possível nivelar a gravidade da morte), que condenou Mirtes Souza a trabalhar sem dispensa durante a pandemia e a viver sem seu filho Miguel, menino que perdeu a vida caindo do nono andar de um prédio, pelo capricho homicida de Sarí Corte Real, a patroa e primeira-dama latifundiária pernambucana.

O tal prédio, a Torre Gêmea de Recife, assim como todo lume estrutural de aço e vidro das arcaicas relações coloniais incrustadas no processo de barbarização das cidades brasileiras pelo capital imobiliário, é, possivelmente, a maior prova de que a classe dominante brasileira vive sob padrões de reprodução incomparáveis, e, mesmo assim precursores, comparando-os ao restante do planeta.

Há um descomunal contingente de milhões de seres humanos negros no Brasil que repõe, diariamente, o espaço urbano-imobiliário de tal modo que este possa seguir sendo abstrato, asseptico, espectral, como nas fotografias das revistas de decoração. Para milhões, não há futuro na apodrecida, embora imperecível, arquitetura retrofuturista que anima luxos burgueses e capitaliza a concentração patrimonial nas metrópoles.

Economicamente, o tradicionalíssimo trabalho concreto não pago que regeu a acumulação capitalista originária no Brasil, quando homens e mulheres escravizados desempenhavam suas atividades como renda de capital fixo, se amalgama ao moderno trabalho doméstico concreto improdutivo e assalariado, atado à renda das edificações urbanas.

Embora frequentemente se denuncie o trabalho doméstico assalariado no Brasil como extensão da escravização colonial, haja vista seu baixo valor de troca, representativo do rebaixamento dos custos de reprodução da força de trabalho na periferia capitalista, é preciso lembrar que é este símbolo do atraso brasileiro que garante a acumulação financeirizada contemporânea, atuando como contratendência infraestrutural da depreciação da propriedade privada imobiliária. Para que o valor de troca de flats, hotéis, apartamentos, prédios, bairros, se mantenha, o trabalho coletivo de conservação de seu valor de uso é uma condição.

Os modos de viver e habitar as cidades, a domesticidade abstrata dos apartamentos ostensivos, que se convertem em ativos financeiros preferenciais às famílias e grupos proprietários, dependem continuamente dos quartinhos de empregada, da senzala residual dos designs e plantas arrojadas. Trata-se de uma espacialidade inconstrangível, a despeito da legislação escandalosamente recente que reconhece o emprego doméstico como profissão.

Como resume a clássica afirmação de José de Souza Martins sobre o coração da sanha epidêmica da classe dominante brasileira, “se a terra fosse livre, o trabalho tinha que ser cativo; se o trabalho fosse livre, a terra tinha cativa”[ii]. O espaço urbano imobiliário segue, desse modo, operando o cativeiro da terra fundante das relações sociais de produção por essas bandas.

*Carolina Freitas é doutoranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

Notas


[i]https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2021/04/12/interna_gerais,1255963/limpeza-vira-profissao-de-risco-na-pandemia-da-covid-19.shtml; https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/vulnerabilidade-domesticas-pandemia/#cover.

[ii] MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Editora Contexto, 2010. p. 49.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES