Resenha sobre a Quinta Sinfonia de Beethoven

Hans Hofmann (1880–1966), Green Paradise, 1960.
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Resenha sobre a Quinta Sinfonia de Beethoven

Por E. T. A. HOFFMANN*

Comentário do escritor alemão sobre a música do seu contemporâneo.

O resenhista tem diante de si uma das mais importantes obras do mestre, ao qual atualmente ninguém contestará o primeiro lugar dentre os compositores de música instrumental; ele está impregnado pelo objeto sobre o qual ele deve falar e ninguém poderá levá-lo a mal se, ultrapassando os limites usuais das resenhas, ele aspire a exprimir com palavras aquilo que sentiu no fundo da alma com esta composição.

Quando se fala da música enquanto uma arte autônoma [selbständigen Kunst], dever-se-ia pensar somente na música instrumental, a qual, desprezando toda ajuda e toda mistura de uma outra arte, exprime de maneira pura a essência da arte [Wesen der Kunst], que somente nela se faz reconhecer. Ela é a mais romântica das artes [romantischste aller Künste] – poder-se-ia quase dizer: a única puramente romântica. A lira de Orfeu abriu as portas do Orco. A música abre ao homem um reino desconhecido; um mundo que nada tem em comum com o mundo exterior dos sentidos que o circunda, e no qual ele deixa para trás todos os sentimentos definíveis através de conceitos, para se entregar ao inefável.

Quão pouco os compositores de música instrumental reconheceram essa essência característica da música, ao tentar representar aqueles sentimentos determináveis, ou até mesmo acontecimentos, tratando de maneira plástica a arte que é a mais oposta às artes plásticas! As sinfonias desse gênero compostas por Dittersdorf,[i] bem como todas essas recentes Batailles des trois Empereurs,[ii] etc. são equívocos ridículos, que devem ser punidos com o total esquecimento. – No canto [Gesang], onde a poesia sugere afetos definidos [bestimmte Affekte] através das palavras, a força mágica da música atua como o elixir milagroso dos sábios, do qual algumas gotas transformam qualquer bebida em algo esplêndido e delicioso. A música reveste do esplendor purpúreo do romantismo cada uma das paixões – amor – ódio – cólera – desespero etc., tal como a ópera nos dá; e mesmo os [sentimentos] que nós experimentamos na vida nos conduzem para fora da vida: ao reino do infinito [Reich des Unendlichen]. Tão poderosa é a magia da música, e, atuando de maneira cada vez mais potente, ela teria que romper todos os grilhões [que a prendem] às outras artes.

Certamente não é apenas devido à maior facilidade dos meios de expressão (aperfeiçoamento dos instrumentos, maior virtuosidade dos intérpretes), mas também a um conhecimento mais profundo e mais íntimo da essência característica da música, que os compositores geniais elevaram a música instrumental ao ápice atual. Haydn e Mozart, os criadores [Schöpfer] da nova música instrumental, foram os primeiros a nos mostrar a arte em toda a sua glória; quem a contemplou com um amor pleno e penetrou na sua essência mais íntima foi – Beethoven. As composições instrumentais desses três mestres respiram um mesmo espírito romântico [romantischen Geist], o qual está justamente na mesma compreensão íntima da essência característica da arte; o caráter [Charakter] de suas composições, contudo, diferencia-se consideravelmente.

Nas composições de Haydn domina a expressão de um ânimo ingênuo e alegre. Sua sinfonia nos conduz a bosques vastos e verdejantes, a uma alegre e colorida multidão de pessoas felizes. Passam meninos e meninas em suas danças de roda; crianças sorridentes, espreitam atrás das árvores e dos arbustos de rosas, brincam de jogar flores umas nas outras. Uma vida plena de amor, plena de bem-aventurança, tal como antes do pecado original, numa juventude eterna; nenhum sofrimento, nenhuma dor; apenas um doce e melancólico desejo pela figura amada, que paira ao longe, no esplendor do crepúsculo, sem se aproximar nem desaparecer; e enquanto ela está ali não anoitece, pois ela mesma é o crepúsculo incandescente das montanhas e dos bosques.

Mozart nos conduz às profundezas do reino dos espíritos [Geisterreich]. O temor [Furcht] nos cerca: mas sem martírio, ele é antes pressentimento do infinito [Ahnung des Unendlichen]. Amor e melancolia ressoam em vozes benévolas, a noite do mundo dos espíritos [Geisterwelt] se levanta num luminoso esplendor purpúreo, e num anseio indizível [unaussprechlicher Sehnsucht] seguimos as figuras [Gestalten] que nos chamam cordialmente a suas fileiras, e pairam na dança eterna das esferas através das nuvens. (Por exemplo, a Sinfonia em Mi Bemol Maior,[iii] de Mozart, conhecida pelo nome de “Canto do cisne”).

Assim também a música instrumental de Beethoven nos abre o reino do colossal e do incomensurável. Raios incandescentes penetram através da profunda noite desse reino, e nós reconhecemos as sombras gigantescas que se agitam como ondas e nos circundam, cada vez mais perto, e aniquilam tudo em nós, exceto a dor do anseio infinito [Schmerz der unendlichen Sehnsucht], na qual todo prazer [Lust], que se eleva rapidamente em sons jubilosos, diminui e submerge, e, [como] visionários extasiados [entzückte Geisterseher], nós seguimos vivendo somente nessa dor que, consumindo em si – mas sem os destruir – o amor, a esperança e a alegria, quer fazer nosso peito explodir com o ressoar conjunto de todas as paixões.

O gosto romântico [romantische Geschmack] é raro; ainda mais raro é o talento romântico; é provavelmente por esse motivo que há tão poucos que conseguem fazer ressoar aquela lira que descerra o reino maravilhoso do infinito [wundervolle Reich des Unendlichen]. Haydn tem uma concepção romântica do humano na vida humana; ele é mais comensurável para a maioria [das pessoas]. Mozart recorre ao sobre-humano, ao maravilhoso, que habita no espírito interior. A música de Beethoven faz uso do terror [Schauer], do temor [Furcht], do horror [Entsetzen], da dor [Schmerz ], e suscita aquele anseio infinito [unendliche Sehnsucht], que é a essência do romantismo. Beethoven é um compositor puramente romântico (e, justamente por isso, um compositor verdadeiramente musical).

Talvez seja por isso que ele não se sai tão bem na música vocal – a qual não admite [nenhum] anseio indeterminado, mas pelo contrário, representa apenas os afetos designados através de palavras, como eles são sentidos no reino do infinito – e sua música instrumental raramente agrada à multidão. Essa mesma multidão, que não penetra na profundidade de Beethoven, não lhe nega um elevado grau de fantasia [Phantasie]; por outro lado, ela vê frequentemente em suas obras apenas produtos de um gênio que, sem se preocupar com a forma e a escolha das ideias [Gedanke], abandona-se às ardentes e súbitas inspirações de sua imaginação [Einbildungskraft]. Não obstante, no que se refere à clareza de consciência[iv] [Besonnenheit], ele deve ser colocado ao lado de Haydn e Mozart.

Ele separa o seu eu [Ich] do reino interior dos sons e comanda a este como senhor absoluto. Assim como os estéticos artistas-medidores [Meßkünstler] frequentemente deploraram a total falta de uma verdadeira unidade [Einheit] e de coerência interna [inneren Zusammenhang] em Shakespeare; e somente o olhar aprofundado [apreende] que uma bela árvore, [com seus] botões e folhas, flores e frutos, resulta de uma única semente: da mesma forma, é somente um exame muito aprofundado da estrutura interna da música de Beethoven que revela a elevada clareza de consciência do Mestre, a qual é inseparável do verdadeiro gênio e é nutrida pelo contínuo estudo da arte. É no fundo de seu ânimo [Gemüt] que Beethoven porta o romantismo da música, que ele exprime com elevada genialidade e clareza de consciência em suas obras.

O resenhista jamais o sentiu de maneira mais vivaz do que na presente sinfonia, a qual, num clímax que vai se intensificando até o final, revela aquele romantismo de Beethoven mais do que qualquer outra de suas obras e que impele irresistivelmente o ouvinte para o maravilhoso reino espiritual do infinito.

O primeiro Allegro, em compasso de 2/4, dó menor, inicia-se com uma ideia principal [Hauptgedanke] de apenas dois compassos, a qual reaparecerá em seguida sob múltiplas formas. No segundo compasso, uma fermata; depois uma repetição daquela ideia um tom abaixo, e novamente uma fermata; em ambas as vezes somente os instrumentos de cordas e os clarinetes [se fazem ouvir]. Nem mesmo a tonalidade está ainda definida; o ouvinte supõe [o tom de] Mi Bemol Maior. Os segundos violinos iniciam novamente a ideia principal; no segundo compasso, a nota fundamental [Grundton] dó tocada pelos violoncelos e fagotes [cp. 7 ][v] define a tonalidade de dó menor, enquanto as violas e os primeiros violinos entram em imitações, até que por fim estes últimos acrescentem dois compassos à ideia principal, os quais, repetidos por três vezes (sendo a última com a entrada [cp. 18] da orquestra inteira) e terminando numa fermata [cp. 21 ] sobre a dominante, fazem com que o ânimo do ouvinte pressinta o desconhecido, o misterioso.

O início do Allegro até essa pausa decide o caráter [Charakter] da peça inteira e justamente por isso o resenhista o insere aqui para exame do leitor [cp. 1-21 ]:

Após essa fermata, os violinos e violas imitam a ideia principal, permanecendo na tônica, enquanto os baixos tocam, de quando em quando, uma figura que imita aquela ideia, até que um episódio [Zwischensatz, cp. 33-44] sempre crescente, que suscita novamente aquele pressentimento [Ahnung] de maneira mais forte e urgente, conduz a um Tutti [cp. 44 ] cujo tema apresenta o mesmo ritmo que a ideia principal e que lhe é intimamente aparentada:

O acorde de sexta [Sexten-Akkord] sobre a nota ré [cp. 58 ], prepara [a modulação para] a tonalidade relativa de Mi Bemol Maior, na qual a trompa [cp. 59] imita novamente as ideias principais.

Os primeiros violinos [cp. 63] expõem agora um segundo tema, o qual embora melodioso, permanece fiel ao caráter de anseio [Sehnsucht] apreensivo e inquieto que se exprime no movimento inteiro. Os violinos apresentam esse tema em alternância com os clarinetes [cp. 67], enquanto a cada três compassos [cp. 65] os baixos retomam aquela imitação anteriormente mencionada da ideia principal, através da qual esse tema é tecido com arte na trama do todo [Ganzen]. Na continuação desse tema, o primeiro violino e o violoncelo repetem cinco vezes uma figura de dois compassos no tom de mi bemol menor [cp. 83 ], enquanto os baixos vão subindo cromaticamente, até que finalmente um novo episódio [cp. 95] conduz à cadência, na qual os instrumentos de sopro repetem o primeiro Tutti em Mi Bemol Maior e, uni por fim, a orquestra inteira conclui com essa imitação mencionada diversas vezes, do tema principal no baixo em Mi Bemol Maior.

A segunda parte[vi] começa novamente com o tema principal sob a primeira forma, mas agora [transposto] uma terça acima e executado pelos clarinetes e pelas trompas [cp. 125 ]. As frases da primeira parte seguem-se em fá menor [cp. 130 ], dó menor [cp. 146] e sol menor [cp. 154 ], mas agora apresentadas e instrumentadas de maneira diferente, até que finalmente, após um episódio [cp. 158] – que, novamente, consiste em apenas dois compassos retomados em alternância pelos violinos e pelos instrumentos de sopro, enquanto os violoncelos executam uma figura em movimento contrário, e os baixos em movimento ascendente – a orquestra inteira executa os seguintes acordes [cp. 168 ]:

São sons com os quais o peito, oprimido e atemorizado com pressentimentos do colossal, se alivia violentamente; e, tal como uma figura amável que, brilhando e iluminando a noite profunda, penetra através das nuvens, entra agora um tema que havia sido apenas esboçado pelas trompas, no compasso 59 da primeira parte, em mi bemol maior. Esse tema é executado agora pelos violinos alla 8va [cp. 179 ], primeiramente em Sol Maior, e depois em Dó Maior, enquanto os baixos executam uma figura descendente que, de certo modo, recorda a frase em Tutti do compasso 44 da primeira parte.

Os instrumentos de sopro iniciam esse tema em fá menor fortíssimo [cp. 195 ], mas, após três compassos, os instrumentos de cordas se encarregam dos dois últimos compassos [cp. 198] e, imitando esses compassos, os instrumentos de corda e os de sopro alternam-se ainda por cinco vezes, e então, novamente de maneira alternada [cp. 210] e sempre diminuendo,  executam acordes isolados. Após o acorde de sexta [cp. 214]  : o Resenhista teria esperado sol bemol menor no encadeamento de acordes posterior, que então poderia ser transformado enarmonicamente em fá sustenido menor, para que modulasse para Sol Maior, como ocorre aqui. Mas os acordes executados pelos instrumentos de sopro, e que se seguem àquele acorde de sexta [anteriormente mencionado] estão escritos da seguinte maneira:

Logo em seguida os instrumentos de corda atacam o acorde de fá sustenido menor [cp. 216], que é então repetido quatro vezes, alternando com os instrumentos de sopro e sempre com a duração de um compasso. Os acordes dos instrumentos de sopro prosseguem escritos da maneira indicada acima, para a qual o Resenhista não encontra nenhuma justificativa. Segue-se então, do mesmo modo, o acorde de sexta: sempre mais e mais fraco [schwach]. Isso provoca novamente um efeito cheio de pressentimentos e horripilante! – A orquestra irrompe [cp. 228] então com um tema quase totalmente idêntico àquele iniciado 41 compassos antes [cp. 187 ], uníssono, em Sol Maior, e apenas as flautas e trompetes sustentam a dominante Ré. Mas já no quarto compasso esse tema se interrompe. Os instrumentos de cordas, alternando com as trompas e depois com os demais instrumentos de sopro, tocam por sete vezes e em pianissimo o acorde de sétima diminuta [cp. 233 ]:Depois, os baixos retomam [cp. 240] a primeira ideia principal sobre um uníssono dos outros instrumentos e, no segundo compasso, os instrumentos restantes em uníssono; durante cinco compassos o baixo e a voz superior se imitam dessa maneira, unindo-se em seguida por três compassos, e no quarto compasso a orquestra inteira [cp. 248 ], com tímpanos e trompetes, ataca o tema principal em sua configuração originária. A primeira parte é então repetida[vii] com mínimas diferenças; o [segundo] tema, que antes[viii] começava em Mi Bemol Maior, entra agora em Dó Maior e conduz jubilosamente à cadência em Dó Maior [cp. 370] com tímpanos e trompetes. Entretanto, com essa mesma cadência a frase se volta para fá menor. Ao longo de cinco compassos a orquestra inteira executa o acorde de sexta [cp. 382] . Os clarinetes, os oboés e as trompas [cp. 387] seguem piano com uma imitação do tema principal. Um compasso de silêncio [cp. 389]; depois, durante mais seis compassos [cp. 390 ] . Todos os instrumentos de sopros seguem-se novamente como antes: e agora as violas, violoncelos e fagote executam um tema que já aparecera anteriormente em Sol Maior, na segunda parte,[ix] enquanto os violinos, entrando em uníssono no terceiro compasso [cp. 400 ], executam um novo contra-sujeito. Agora a frase permanece em dó menor, e o tema (que havia começado no compasso 71 da primeira parte) é repetido, com algumas pequenas variações, a princípio somente pelos violinos e depois alternando com os instrumentos de sopros. Aproximando-se cada vez mais e mais perto (primeiro um compasso, depois meio compasso); é tamanho ímpeto e movimento – é um rio transbordante, e cujas ondas se golpeiam cada vez mais e mais alto – até que, finalmente, 24 compassos antes do final [cp. 478], o início do Allegro é repetido mais uma vez. Segue-se um pedal [Orgelpunkt], sobre o qual o tema é imitado, até que, por fim, segue-se a conclusão, forte e robusta.

Não há ideia [Gedanke] mais simples do que aquela que o Mestre utilizou como fundamento do Allegro inteiro:

e com admiração nos damos conta de como ele, através dos procedimentos rítmicos, soube acrescentar todas as ideias secundárias e todos os episódios a esse tema simples, de modo a que eles servissem apenas para desdobrar sempre mais e mais o caráter do todo [Charakter des Ganzen], que aquele tema podia apenas indicar. Todas as frases são curtas, consistindo em apenas dois, três compassos e são, além disso, distribuídas numa alternância constante dos instrumentos de corda e dos instrumentos de sopro. Dever-se-ia crer que, a partir de tais elementos somente poderia surgir algo fragmentado e difícil de compreender: mas, ao invés disso, é justamente esse arranjo do todo, assim como a constante e sucessiva repetição das frases curtas e de acordes isolados, que mantêm o ânimo [Gemüt] num anseio inefável [unnennbaren Sehnsucht]. – À parte o fato de que o tratamento contrapontístico é testemunha de um profundo estudo da arte, são também os episódios e as constantes alusões ao tema principal que nos deixam reconhecer como o Mestre não apenas concebeu o todo [das Ganze] em seu espírito, com todos os traços plenos de caráter, mas ainda, que [o todo] foi profundamente refletido [durchdachte].

Como uma graciosa voz dos espíritos, que preenche nosso peito com consolo e esperança, ressoa depois disso o tema suave (e, no entanto, pleno de conteúdo) do Andante em Lá Bemol Maior, em compasso 3/8, executado pela viola e pelo violoncelo. A elaboração [Ausführung] ulterior do Andante recorda alguns movimentos intermediários nas Sinfonias de Haydn;[x] tal como acontece ali com muita frequência, também aqui o tema é variado de múltiplas formas após a entrada de cada episódio. Quanto à originalidade, não se pode comparar [este movimento] ao Allegro – muito embora a pomposa frase em Dó Maior [cp. 32 ], com tímpano e trompetes, que aparece entre as passagens em Lá Bemol Maior, produz um efeito supreendente. A transição para Dó Maior ocorre duas vezes [cp. 28-30 e 77-79 ], por meio de enarmonia [cp. 28 ]:

depois [dessa transição] entra aquele tema pomposo e, então, a modulação de volta para o acorde de dominante de Lá Bemol Maior acontece da seguinte maneira [cp. 41-48 e 90-97 ]:

A maneira pela qual as flautas, os oboés e os clarinetes preparam a terceira transição [cp. 144] para aquele tema em Dó Maior é mais simples, mas causa bastante efeito [Wirkung]:

Todas as frases do Andante são muito melodiosas, e o tema principal é bastante delicado; mas [até] mesmo o percurso desse tema (que passa por Lá Bemol Maior, si bemol menor, fá menor, si bemol menor, e só então retorna para Lá Bemol), a justaposição das tonalidades maiores de Lá Bemol e Dó, as modulações cromáticas – exprimem novamente o caráter do todo [Charakter des Ganzen], do qual, justamente por isto, o Andante é uma parte. – É como se o espírito terrível, que tomou e angustiou o ânimo [Gemüt] no Allegro, ameaçador a cada instante, emergisse das nuvens tempestuosas nas quais ele havia desaparecido, e então, diante de seu olhar, as amáveis figuras que nos rodeavam de maneira consoladora fugissem rapidamente.

O Menuett que se segue ao Andante é novamente tão original [originell] e comove tanto o ânimo do ouvinte como se poderia esperar do Mestre na composição desta parte da Sinfonia – que, segundo a forma Haydniana, que ele seguiu, deve ser a mais picante e espirituosa do todo. São principalmente as modulações peculiares, as cadências no acorde maior da dominante, cuja fundamental [Grundton] o baixo retoma como tônica do tema seguinte em modo menor [cp. 44] – esse próprio tema que se expande sempre em apenas alguns compassos – , que expressam vivamente o caráter da música de Beethoven, como o Resenhista indicou acima, e que excitam novamente aqueles pressentimentos do maravilhoso reino dos espíritos [Ahnungen des wunderbaren Geisterreichs], com os quais as frases do Allegro acossavam o ânimo do ouvinte. O tema em dó menor, executado apenas pelos baixos, dirige-se para sol menor no terceiro compasso, as trompas sustentam o sol e os violinos e violas, com os fagotes no segundo compasso [cp. 6] e depois com os clarinetes [cp. 7 ], executam uma frase de quatro compassos que cadencia em sol [cp. 8 ]. Os baixos repetem então o tema, mas depois do terceiro compasso, o sol menor se dirige para ré menor [cp. 13 ], depois para dó menor [cp. 16 ], e aquela frase dos violinos [cp. 15] é repetida. As trompas [cp. 19 ] expõem agora uma frase que vai para Mi Bemol Maior, enquanto os instrumentos de cordas tocam acordes em semínimas no começo de cada compasso. A orquestra, contudo, expõe o tema mais adiante em mi bemol menor [cp. 28] e cadencia na dominante Si Bemol Maior [cp. 44 ]: mas no mesmo compasso o baixo começa o tema principal, e ele o expõe exatamente como no começo em dó menor, só que agora em si bemol menor. Também os violinos etc. repetem a sua frase [cp. 49 ] e segue-se uma fermata em Fá Maior. O baixo repete aquele tema, mas o amplia ao percorrer fá menor [cp. 56 ], dó menor [cp. 58 ], sol menor [cp. 60] e, então, retornar para dó menor [cp. 72 ], depois do que o Tutti, que ocorreu primeiramente em mi bemol menor [cp. 28 ], conduz a frase, através de fá menor [cp. 80 ], para o acorde de Dó Maior [cp. 96 ]; porém, assim como ocorreu antes na passagem de Si Bemol Maior [cp. 44 ] para si bemol menor, o baixo retoma a fundamental Dó como tônica do tema em dó menor [cp. 97 ]. As flautas e os oboés [cp. 101 ], com a imitação dos clarinetes no segundo compasso [cp. 102 ], executam agora a frase que tinha sido executada anteriormente pelos instrumentos de cordas, enquanto estes repetem um compasso [cp. 101] que havia sido tocado anteriormente pelo Tutti [cp. 79 ]; as trompas sustentam o sol, os violoncelos começam um novo tema [cp. 101 ], ao qual se une a frase inicial dos violinos numa outra elaboração [Ausführung], e depois uma nova frase [cp. 116 ] em colcheias (que ainda não tinham aparecido). Mesmo o novo tema dos violoncelos contém alusões ao tema principal e, com isso, assim como através do mesmo ritmo, intimamente aparentado a este [ao tema principal]. Após uma curta repetição, aquele Tutti conclui essa parte do minueto com tímpanos e trompetes em dó menor fortíssimo [cp. 133 ]. Os baixos começam a segunda parte (o Trio) com um tema em Dó Maior [cp. 141 ], que as violas imitam na dominante de maneira fugada [cp. 147 ], seguidas de maneira abreviada pelos segundos violinos [cp. 153 ], e igualmente pelos primeiros violinos [cp. 155] em stretto [Restriktion]. A primeira metade dessa parte[xi] cadencia em Sol Maior [cp. 160 ]. Na segunda parte [do Trio], os baixos iniciam o tema por duas vezes [cp. 162] e param, prosseguindo na terceira vez [cp. 166 ]. Para muitos, isso pode parecer burlesco [scherzhaft]; no Resenhista isso despertou um sentimento inquietante. – Após diversas imitações do tema principal, este é retomado pelas flautas [cp. 182 ], sustentadas pelos oboés, clarinetes e fagotes, enquanto as trompas sustentam a fundamental sol; depois, o tema vai morrendo em notas isoladas, tocadas primeiramente pelos clarinetes [cp. 229 ] e fagote, e depois pelos baixos [cp. 231 ]. Segue-se então a repetição do tema da primeira parte [cp. 236] pelos baixos; ao invés dos violinos, agora são os instrumentos de sopro [cp. 241 ] que executam a frase com notas curtas, que terminam com uma fermata [cp. 244 ]. Depois disso, assim como na primeira parte, [ouve-se] a frase principal expandida [cp. 245 ], mas ao invés de mínimas, temos agora semínimas e pausas de semínimas; é com essa configuração que retornam também as outras frases da primeira parte, na maior parte das vezes abreviadas [abgekürzt]. – O anseio inquieto [unruhvolle Sehnsucht], que o tema leva em si, é agora intensificado até o medo [Angst], que aperta o peito violentamente; dele fogem apenas alguns sons interrompidos e isolados. O acorde de Sol Maior [cp. 323] parece conduzir para o final; mas o baixo sustenta agora a nota fundamental Lá Bemol [cp. 324 ], em pianíssimo, ao longo de quinze compassos, igualmente violinos e violas sustentam a terça Dó, enquanto o tímpano toca o Dó [cp. 325] primeiramente no ritmo daquele Tutti frequentemente mencionado, e depois uma vez por compasso [cp. 328 ], ao longo de quatro compassos, em seguida duas vezes por compasso [cp. 332 ] durante quatro compassos, e depois em semínimas [cp. 336 ]. Finalmente o primeiro violino retoma o primeiro tema [cp. 339 ] e conduz a frase até a sétima de dominante do tom fundamental, durante 28 compassos e sempre aludindo àquele tema; durante todo esse tempo, o segundo violino e a viola sustentaram o Dó, o tímpano tocou o Dó em semínimas; o baixo, após fazer uma escala de Lá Bemol [cp. 341] até Fá Sustenido [cp. 344] e voltar para Lá Bemol [cp. 348 ], toca a fundamental Sol [cp. 350] em semínimas. Então atacam primeiramente os fagotes [cp. 366 ], um compasso depois os oboés [cp. 367 ], e três compassos depois as flautas [cp. 370 ], trompas e trompetes, enquanto o tímpano prossegue tocando o Dó em colcheias, depois do que é feita a transição imediata da frase para o acorde de Dó Maior, com o qual se inicia o último Allegro. – Por que o Mestre deixou até o final a nota Dó dissonante ao acorde, no tímpano, explica-se a partir do caráter que ele pretendeu dar ao todo. Esses golpes abafados e dissonantes, que agem como uma voz estranha e terrível, suscitam o terror do extraordinário – o temor dos espíritos. O Resenhista já mencionou acima o efeito que vai se intensificando com o tema que se amplia em alguns compassos. Para tornar mais claro esse efeito, ele apresenta aqui, todas juntas, essas ampliações:

Na repetição da primeira parte [cp. 245 ], essa frase aparece da seguinte maneira:

Igualmente simples e, contudo, – quando observado novamente através das frases posteriores – de um efeito tão arrebatador como o tema do primeiro Allegro, é a ideia do Tutti inicial do Minueto [cp. 27 ]:

Com o tema suntuoso e exultante em Dó Maior do último movimento, ataca a orquestra inteira, à qual agora são acrescentados ainda os flautins, trombones e contrafagotes – como um resplandecente e deslumbrante raio de sol que cega, que subitamente ilumina a noite escura. As frases desse Allegro são tratadas de maneira mais extensa que as [frases] precedentes: não tanto melodiosamente quanto fortes [kräftig] e aptas a imitações contrapontísticas: as modulações são compreensíveis e sem afetação; especialmente a primeira parte possui quase o impulso da Abertura. Durante trinta e quatro compassos essa parte em Dó Maior permanece como um Tutti da orquestra inteira; enquanto os baixos executam uma vigorosa figura ascendente, um novo tema [cp. 34] na voz superior modula para Sol Maior e conduz para o acorde de dominante [cp. 41] dessa tonalidade. Então entra um novo tema [cp. 45 ], que consiste em semínimas alternadas com tercinas. Quanto ao seu ritmo e a seu caráter, ele diverge totalmente dos anteriores, e fornece um ímpeto e impulso, como as frases do primeiro Allegro e do Minueto:

Através desse tema e de sua elaboração [Ausführung] posterior em Dó Maior [cp. 58 ], passando por lá menor [cp. 53 ], o ânimo é transportado novamente para uma disposição de ânimo cheia de pressentimentos, que se afasta dele por instantes com uma exaltação e júbilo. Com um Tutti curto e tempestuoso, a frase se dirige novamente para Sol Maior, e as violas, fagotes e clarinetes iniciam um tema em sextas [cp. 53 ], que é retomado em seguida pela orquestra inteira [cp. 72 ]. Após uma curta modulação para fá menor [cp. 77] (com uma vigorosa figura do baixo [cp. 80 ], que os violinos retomam em Dó Maior e, novamente, é executada pelos baixos al rovescio) [cp. 84 ], a primeira parte termina em Dó Maior. A figura mencionada é mantida no começo da segunda parte[xii] em lá menor [cp. 86-89] e aquele tema característico [cp. 90 ], consistindo em semínimas e tercinas, entra novamente. Com abreviações [Abkürzungen] e stretti, esse tema é desenvolvido durante trinta e dois compassos, e nesse desenvolvimento do caráter [Durchführung der Charakter], que já se exprimia em seu aspecto originário, [o tema] é completamente desdobrado, para o que contribuem em não menor medida os temas secundários acrescentados, os sons sustentados dos trombones, os tímpanos, trompetes e trompas que tocam em tercinas. Finalmente a frase repousa no pedal em Sol, executado primeiramente pelos baixos, mas enquanto estes executam uma figura cadencial em uníssono com os violinos, entram o trombone-baixo, trompetes, trompas e tímpanos. Então, durante cinquenta e quatro compassos, entra novamente aquele tema simples[xiii] do Minueto:

e nos dois últimos compassos ocorre a primeira transição do minueto para o Allegro, só que agora de maneira mais concisa. Com pequenas diferenças e persistindo na tonalidade principal, retornam agora as frases da primeira parte[xiv] [cp. 207] e um Tutti tempestuoso [cp. 312] parece conduzir para o final. Após o acorde de dominante [cp. 317 ], porém, fagote, trompas, flautas, oboés e clarinetes executam sucessivamente o tema que havia sido apenas mencionado:[xv]

Segue-se novamente [cp. 334 ] uma frase cadencial [Schlußsatz ]; novamente os instrumentos de cordas retomam aquela frase, e depois o flautim [cp. 337 ], oboés e trompas, e então, novamente, os violinos [cp. 339 ]. Segue-se novamente para a cadência, mas com o acorde cadencial na tônica, os violinos retomam em Presto [cp. 362] (alguns compassos antes começou um Più stretto)[xvi] a frase tocada no compasso sessenta e sete do Allegro[xvii]; e a figura do baixo é a mesma que apareceu no compasso vinte e oito do primeiro Allegro[xviii], e que, como já foi observado acima, recorda vivamente o mesmo, através de seu ritmo que é intimamente aparentado com o tema principal. A orquestra inteira [cp. 390] (os baixos entram um compasso depois [cp. 391 ], imitando em cânone as vozes superiores), com o primeiro tema do último Allegro, conduz à conclusão, que acontece depois de quarenta e dois compassos que se detêm em diversas figuras pomposas e plenas de júbilo. Os acordes finais são colocados de maneira peculiar: a saber, depois do acorde que o ouvinte supõe ser o último [cp. 432 ], há um compasso de pausa [cp. 433 ], o mesmo acorde, um compasso de pausa, novamente o acorde, um compasso de pausa, e então durante três compassos [cp. 438 ], cada um deles contendo uma vez aquele acorde em semínimas, um compasso de pausa [cp. 441 ], o acorde [cp. 442 ], um compasso de pausa [cp. 443 ], Dó uníssono tocado pela orquestra inteira [cp. 444 ]. O apaziguamento completo do ânimo, proporcionado mediante diversas figuras conclusivas sucessivas, é neutralizado através desses acordes isolados com pausas (que lembram os golpes isolados do Allegro inicial da Sinfonia), e o ouvinte fica em novo estado de tensão através dos últimos acordes. Seu efeito é como o de um fogo que se acreditava apagado, e que volta a golpear as alturas com chamas claras e ardentes.

Beethoven manteve a ordem habitual dos movimentos na sinfonia; eles parecem se suceder uns aos outros de maneira fantástica, e o todo pareceria a muitos como uma genial rapsódia: mas a alma de todo ouvinte sensato certamente será tomada íntima e profundamente por um sentimento duradouro, que é justamente aquele anseio inefável e cheio de pressentimentos [unnennbare, ahnungsvolle Sehnsucht], e nele será mantida até o acorde final; e mesmo depois de alguns momentos após o fim da peça, o ouvinte não poderá sair desse maravilhoso reino dos espíritos, onde o envolviam a dor e o prazer configurados em sons. Além da disposição interna da instrumentação etc., é sobretudo o parentesco íntimo dos temas entre si, que engendra aquela unidade [Einheit] que mantém o ânimo [Gemüt] do ouvinte em um estado de espírito [Stimmung]. Essa unidade reina por toda parte na música de Haydn e de Mozart. Ela se torna mais clara para o músico quando ele descobre o baixo fundamental [Grundbaß] comum a duas frases distintas, ou quando a ligação [Verbindung] entre duas frases revela [essa unidade]: mas há um parentesco mais profundo que não pode ser explicado desse modo, e que frequentemente fala apenas de espírito para espírito, e é esse parentesco que reina entre as frases dos dois allegros e do minueto, proclamando a lúcida genialidade [besonnene Genialität] do Mestre. O Resenhista acredita poder resumir em poucas palavras seu julgamento sobre a esplêndida obra de arte do Mestre, dizendo: que ela foi inventada de maneira genial e elaborada com profunda clareza de consciência [Besonnenheit], e que ela expressa num grau muito elevado o romantismo da música [Romantik der Musik].

Nenhum instrumento possui passagens difíceis de executar, mas somente uma orquestra extremamente certa de si e treinada, animada por um espírito único, pode se arriscar a tocar essa sinfonia, pois o menor erro cometido, em qualquer passagem, arruinaria irreparavelmente o conjunto. A alternância contínua, as entradas dos instrumentos de cordas e dos instrumentos de sopros, os acordes isolados a serem tocados após um silêncio, tudo isso exige a mais alta precisão; por isso, é aconselhável ao maestro que não se contente, como ocorre frequentemente, em tocar a parte do primeiro violino mais forte do que o necessário. É melhor que ele conserve a orquestra permanentemente [sob o controle de] seu olho e de sua mão. Para este fim, ele será ajudado pela edição da parte do primeiro violino, que contém nela a entrada dos instrumentos obrigatórios [obligaten].

A gravura é correta e legível. O mesmo editor publicou uma redução dessa sinfonia para piano a quatro mãos, sob o título:

Cinquième Sinfonie de Louis van Beethoven, arrangée pour le Pianoforte à quatre mains. Chez Breitkopf et Härtel à Leipzic.(Pr. 2 Rthlr. 12 Gr.)[xix] No mais, o resenhista não é especialmente favorável a esses arranjos: contudo, não se pode negar que o prazer de uma obra-prima que se ouviu com orquestra completa, [quando ouvida] num quarto solitário frequentemente excita a fantasia como antes, e coloca o ânimo no mesmo estado de espírito. O pianoforte restitui a obra grandiosa, como faz um contorno [Umriß] com um grande quadro, que a fantasia vivifica com as cores do original. De resto, o arranjo da sinfonia foi feito com entendimento e discernimento; as necessidades do instrumento foram levadas em consideração como se deve, sem que fossem apagadas as particularidades do original.

*T. A. HOFFMANN (1776-1822) foi escritor, compositor, desenhista e jurista. Autor, entre outros livros de Reflexões do gato Murr (Estação Liberdade).

Tradução: Mário Videira.

Publicado originalmente na Allgemeine musikalische Zeitung, no. 40 (04 de julho de 1810, pp. 630-642) e no. 41 (11 de julho de 1810, pp. 652-659).

Notas do tradutor


[i] Carl Ditters von Dittersdorf (1739-1799): 6 Symphoniennach Ovids Metamorphosen (Kr. 73-78)

[ii] Provavelmente Hoffmann está se referindo às composições de Jean-Jacques Beauvarlet-Charpentier (1734-1794) – La Bataille d’Austerlitz surnommé La Journée des Trois Empereurs – e de Louis-Emmanuel Jadin (1768-1853) – La Grande Bataille d’Austerlitz surnommé La Journée des Trois Empereurs.

[iii] W. A. Mozart. Sinfonia No. 39, KV 543 (1788).

[iv] Adotamos aqui a solução de Rubens Rodrigues Torres Filho, que traduz o termo “Besonnenheit” por “clareza de consciência”.

[v] Os números de compasso entre colchetes não constam do original. Foram acrescentados pelo tradutor a fim de facilitar o cotejamento da análise com a partitura da obra.

[vi] Isto é, o desenvolvimento.

[vii]  Isto é, tem início a reexposição.

[viii] Isto é, na exposição.

[ix] Isto é, no desenvolvimento.

[x] Por exemplo, as Sinfonias Nos. 70, 90, 101 e 103.

[xi] Isto é, do Trio.

[xii] Isto é, do desenvolvimento.

[xiii] Cf. com o compasso 255 do terceiro movimento.

[xiv] Isto é, tem início a reexposição.

[xv] Cf. compasso 35.

[xvi] Na verdade, Beethoven indica “sempre più Allegro”.

[xvii] 4o. Movimento.

[xviii] 1o. Movimento.

[xix] Em francês no original.

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