Por LUÍZA BEATRIZ ALVIM*
Comentário sobre filmes do Cinema Novo e suas relações com as músicas de Villa-Lobos.
A história como catástrofe: passado, presente e futuro
No recente filme No intenso agora (2017), a partir de imagens de arquivo, João Moreira Salles investiga, entre outros movimentos revolucionários do ano de 1968 (além de questões pessoais), o mítico Maio francês. Uma das ideias que o texto do diretor em voz over e a sua montagem transmitem é que o movimento não teve os frutos que se esperariam (inclusive, levando-se em conta a presença de Maio de 1968 como ideal de revolução no imaginário geral), que foi algo intenso, mas naquele agora, como uma fagulha que se dissipou assim que chegou o verão europeu e a retomada da ordem.
Não se pode deixar de pensar no momento atual brasileiro em que esse filme foi produzido, a sensação de fracasso deixada em consequência de todos os acontecimentos políticos após as Jornadas de Junho de 2013. Embora João Moreira Salles tenha dito em entrevista (KACHANI, 2017) que o filme tenha começado bem antes de junho de 2013, reconhece que os paralelos são inevitáveis pelo fato que No intenso agora “fala de engajamento político, de intensidade e de dissipação”.
Em relação ao Maio de 1968 francês, a sensação de fracasso/dissipação fora investigada já no próprio verão seguinte ao acontecimento por Jean-Luc Godard: em Un film comme les autres (Um filme como os outros, 1968), o diretor reuniu estudantes e operários num descampado em frente aos prédios de um subúrbio parisiense, alternando a conversa deles com imagens de arquivo dos recentes acontecimentos e textos em voz over. Para além da montagem audiovisual bem arrojada, com sons de várias vozes se sobrepondo, é apontada pelos operários, na conversa filmada, a complicada união com os estudantes, tendo em vista as perspectivas de futuro tão díspares. Tal como os franceses que saem de Paris em massa com a chegada do verão e das férias, o espírito de maio parecia ter se esvaído naquele momento.
Na mesma época, no Brasil, a sensação de fracasso e, mais ainda, de catástrofe, é bem mais evidente pela instalação da Ditadura Militar em 1964 e pelo acirramento dela a partir de 1968, com a promulgação do Ato Institucional n.º 5. Para Ismail Xavier (2016a), o filme Terra em transe (Glauber Rocha, 1967) pode ser considerado um marco nessa sensação de desastre que se instala no ambiente cultural brasileiro. Em seu artigo, Xavier (2016a) se baseia principalmente nos conceitos de Walter Benjamin contidos no livro A origem do drama barroco alemão (1984), como a ideia de que a configuração cultural da modernidade poderia ser aproximada à evocada por tais peças teatrais da era barroca e seria caracterizada por um sentimento de crise profunda. Portanto, não é algo que aparece somente agora e de que o filme de João Moreira Salles seria um exemplo, mas um sentimento que já perpassava os filmes feitos no Brasil da época da ditadura.
Não se deve pensar, de toda maneira, em “origem” como gênese de algo, pois, no modo de ver benjaminiano essencialmente anacrônico da História, “origem não designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser e da extinção. A origem se localiza no fluxo do vir-a-ser como um torvelinho e arrasta em sua corrente o material produzido pela gênese. O originário não se encontra nunca no mundo dos fatos brutos e manifestos e seu ritmo só se revela a uma visão dupla, que o reconhece, por um lado, como restauração e reprodução, e por outro lado, e por isso mesmo, como incompleto e inacabado” (BENJAMIN, 1984, p. 67-68).
É o que permite associar a um mesmo sentimento de catástrofe os dramas barrocos do século XVII a época de 1968 em diversos países e o momento atual brasileiro pós-junho de 2013. Passado e presente que apontam para o futuro.
Xavier (2016a) considera esse sentimento de catástrofe em Terra em transe e decidimos ampliar essa análise, incluindo, além desse filme, outros dois do Cinema Novo brasileiro: O desafio (Paulo César Saraceni, 1965) e Os herdeiros (Carlos Diegues, 1970). Embora feitos em momentos diferentes da Ditadura Militar Brasileira, todos os três têm em comum esse aspecto da história como catástrofe e personagens idealistas que sofrem com essa constatação.
Além disso, outros dois elementos em comum nesses três filmes nos fez reuni-los: a música de Villa-Lobos e as referências feitas, seja pela própria música, seja por elementos da linguagem cinematográfica como o travelling, ao longa-metragem anterior de Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do sol (1964), realizado ainda antes da instauração da ditadura e que terminava com um sentimento de utopia na corrida do protagonista em direção ao mar.
É preciso que não vejamos o sentimento de catástrofe como negativo, tal como explica Xavier (2016a) a partir de Benjamin: afinal, ver a história como ruína é ficar do lado dos vencidos e não dos vencedores. Nas palavras de Benjamin (2008, p. 225), “os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes” e “[a] tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral” (BENJAMIN, 2008, p. 226). Contrariamente à tradição histórica de empatia com o vencedor, para Benjamin, é nossa tarefa “construir um conceito de história que corresponda a essa verdade” (BENJAMIN, 2008, p. 226) do estado de exceção. Longe de ser um conformismo, é a catástrofe como potência.
O uso da música de Villa-Lobos nos filmes do Cinema Novo é também um aspecto de um passado que aponta para um presente e mesmo para o futuro daqueles anos 1960. Villa-Lobos já tinha morrido na época daqueles filmes e, embora tenha trabalhado diretamente com Humberto Mauro na trilha musical de O descobrimento do Brasil (1937), tinha ficado por muitos anos malvisto pelo cinema por ser associado ao Estado Novo de Vargas. No entanto, o Cinema Novo faz um resgate da música do compositor, pois, entre outros motivos, seus diretores nela viram um projeto de busca da identidade brasileira que se assemelhava aos ideais do movimento.
Com efeito, Guerrini Júnior (2009) observou que a música de Villa-Lobos funcionou em muitos desses filmes como uma “alegoria da pátria” até se tornar, como considerou o diretor Carlos Diegues (em entrevista a Guerrini Júnior), “uma espécie de ícone musical, de som típico do Cinema Novo” (GUERRINI JÚNIOR, 2009, p. 167). Além disso, Diegues observa que a música do compositor foi utilizada como ilustração de todo um contexto cultural e ideológico que esses diretores do Cinema Novo queriam transmitir, diferentemente dos usos dramáticos e narrativos mais comuns da música para cinema:
“No Cinema Novo a música deixa de ser um elemento constitutivo da narração dramática, mas passa a ser um elemento constitutivo da própria origem cultural, ideológica do filme. […] [No] Cinema Novo, mesmo quando a música tem um caráter sinfônico, orquestral, ela é muito mais detonadora de um universo cultural a que aquele filme pertence do que propriamente um suplemento da narração. […] Quando o Glauber usa a Bachiana em Deus e o diabo, ele está querendo dizer mais alguma coisa do que simplesmente sublinhar a imagem que nós estamos vendo. Está realmente transferindo certas ideias sobre cultura brasileira para a imagem que você está vendo” (GUERRINI JÚNIOR, 2009, p. 168).
Vamos, a seguir, a partir da análise fílmica das sequências com peças de Villa-Lobos nesses três filmes, considerar o sentimento de catástrofe no sentido benjaminiano neles contido, além de associá-los ao filme Deus e o diabo na terra do sol, com o qual, de um modo ou de outro, os três se relacionam. Nosso objetivo, dentro dos limites exíguos de um artigo, não é esmiuçar com profundidade os conceitos benjaminianos. Além disso, embora tais filmes sejam bastante ricos em diversas outras peças e gêneros musicais[1], nós nos limitamos ao que eles têm em comum, ou seja, a música de Villa-Lobos, além de mencionarmos outros elementos sonoros (tiros, sirenes, voz in e over, silêncio etc.) presentes nas sequências consideradas. Também por ser uma análise em que elementos puramente visuais, como o enquadramento e o travelling, sejam destacados, a análise musical não será aprofundada nos elementos intrínsecos da estrutura musical e/ou da partitura.
Tais restrições não são apenas em função de falta de espaço para desenvolvimento, mas de uma escolha de aproximar e comparar, de maneira suficientemente clara para o leitor, um certo número de elementos distintos – filosófico: o sentimento de catástrofe; sonoro: a música de Villa-Lobos; imagético: características de travelling e de enquadramento, como observadas em análises de Ismail Xavier (2016a, 2016b) em filmes de Glauber Rocha e aqui estudadas nos três filmes a seguir.
O desafio e as Bachianas Brasileiras: pegar em armas?
No filme O desafio, o jornalista e escritor de esquerda Marcelo tem um relacionamento com Ada, mulher casada com um rico industrial. O fato de o tempo diegético ser o momento de pós-Golpe Militar traz um sentimento de desesperança e de falta de perspectiva para Marcelo – ele diz logo no início do filme: “Eu como os outros estava acreditando no processo revolucionário brasileiro” (O DESAFIO, 1965) –, diferentemente do messianismo ao final de Deus e o diabo na terra do sol[2], em que, ao som extradiegético de “O sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”[3] (DEUS…, 1964), cantado por Sérgio Ricardo, o protagonista Manuel corria em direção ao mar, com a imagem em travelling para a direita. Embora Manuel não chegue ao mar – ele aparece nos últimos planos do filme, mas, como explica Ismail Xavier (informação verbal)[4], é por uma operação de montagem –, o filme tem um sentido otimista e o travelling para o mar prefigura a revolução em sentido teleológico, ainda que ela apareça apenas como uma utopia[5].
Já durante todo o filme de Saraceni, Marcelo se questiona sobre o que fazer diante da conjuntura política. Na primeira conversa com Ada, no início do filme, ele afirma que o Golpe Militar impede que os dois estejam do mesmo lado, mas a música de Villa-Lobos fará, pouco depois, uma ponte entre eles. Após essa conversa tensa, vemos Marcelo com Ada no quarto dele. Acima da cama, uma reprodução de Guernica de Picasso e, na parede ao lado, um cartaz de Deus e o diabo na terra do sol com o personagem do cangaceiro Corisco, que, como considera Xavier (informação verbal)[6], é um “proto-revolucionário”. Ou seja, os pôsteres evocam revolução e violência.
Durante a conversa, Marcelo coloca um disco com a Sonata para violino e piano K378 de Mozart. Ele pede, então, a Ada que fale de si. Após um corte, vemos o rosto de Ada em plano frontal, em frente ao cartaz de Deus e o diabo na terra do sol, com a figura de Corisco (Figura 1) e começamos a ouvir, subitamente, a “Cantilena” das Bachianas Brasileiras n. 5 de Villa-Lobos, como se saíssemos por um momento do espaço diegético onde toca a música de Mozart para um outro espaço: o do pensamento de Ada ou mesmo o espaço da instância autoral de Saraceni tornando a conexão intertextual mais evidente com o filme de Glauber.
Figura 1: Plano de O desafio.
Com efeito, a “Cantilena” das Bachianas n. 5 está em Deus e o diabo na terra do sol, na sequência das carícias entre Corisco e Rosa, mulher do protagonista Manuel. É, portanto, um momento de leveza num filme marcado pela violência, que é evocado em O desafio no encontro amoroso de Ada e Marcelo. No entanto, diferentemente do plano fixo de Ada em O desafio, no filme de Glauber há uma série de travellings circulares (e, nesse momento de idílio, é significativo que o movimento seja circular e não o travelling contínuo e numa só direção, como no final do filme) em torno dos corpos de Corisco e Rosa, desencadeados por cada inflexão do canto do soprano.
Em seu monólogo, Ada fala que, longe de Marcelo, só se sente bem ao lado do filho em contraste com o sentimento de estranheza na presença do marido, e que somente a possibilidade de se encontrar com Marcelo lhe permite viver sem se desesperar. Depois do monólogo, há um corte súbito de imagem e som: vemos Ada e Marcelo juntos em outro local do quarto, novamente ao som da Sonata de Mozart, o que reforça o caráter distinto do plano anterior[7].
A segunda incursão musical das Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos acontece em outro encontro de Marcelo e Ada e, mais uma vez, relacionada a uma fala da moça. Dessa vez, é o “Prelúdio” das Bachianas Brasileiras n. 4 em versão para piano. Embora esse trecho específico das Bachianas n. 4 não esteja em Deus e o diabo na terra do sol, em que ouvimos trechos dos outros três movimentos da versão orquestral dessa Bachiana, não deixa de ser uma alusão a ela e ao filme de Glauber[8].
Na sequência de O desafio, Ada e Marcelo estão sozinhos na casa de uma amiga. Ada relembra o início da relação dos dois e, assim que vemos um close do rosto dela, ouvimos o “Prelúdio” das Bachianas n. 4, como se a música de Villa-Lobos evocasse, mais uma vez, a vida interior de Ada. A música continua no plano seguinte, em que vemos Ada e Marcelo andando nos arredores da casa. Chegam às ruínas de uma antiga pensão abandonada, que fora incendiada pelo próprio dono, um poeta. Durante toda a continuação da música extradiegética até o fim, Ada e Marcelo passeiam pela casa vazia.
Embora aqui não haja uma associação tão óbvia ao tema da revolução, as ruínas, o vazio, a violência do incêndio e o fato de ter sido o dono um escritor, tal como Marcelo e o protagonista de Terra em transe (Paulo Martins) – e, provavelmente em crise, já que incendeia a sua propriedade –, evocam um mundo sem esperança. A relação mais evidente entre poesia e incêndio acontece logo depois do término da música, quando Marcelo encontra e lê versos contidos numa folha queimada de Invenção de Orfeu, poemas de Jorge de Lima.
As ruínas dessa sequência de O desafio e o sentimento de desesperança do filme como um todo também evocam uma atmosfera semelhante ao Trauerspiel (traduzido como “drama” no título em português, mas cuja palavra na língua original contém em si o luto, Trauer) alemão do século XVII, estudado por Walter Benjamin (1984). A ruína no Barroco marca a transitoriedade e, sob sua forma, “a história não constitui um processo de vida eterna, mas de inevitável declínio” (BENJAMIN, 1984, p. 200).
Terra em transe e as Bachianas Brasileiras: sim, pegar em armas!
Gustavo Dahl, referindo-se a seu filme O Bravo Guerreiro (1968), observa: “Em O desafio, Terra em transe e Bravo Guerreiro, sempre perambula o mesmo personagem – um intelectual pequeno-burguês, emaranhado em dúvidas, um desgraçado em crise. Ele pode ser um jornalista, um poeta, um legislador, em todo caso ele está sempre perplexo, hesitante, é uma pessoa frágil que gostaria de transcender sua condição” (DAHL [1968?[9]] apud JOHNSON; STAM, 1995, p. 35, tradução nossa).
Como o Marcelo de O desafio, o poeta Paulo Martins de Terra em transe está imerso em dúvidas sobre o que fazer diante do iminente golpe no fictício país de Eldorado, se deve ou não pegar em armas, decisão que toma diante do golpe consumado logo na primeira sequência após os créditos.
A relação do filme também é evidente com o longa-metragem anterior de Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do sol, que, como vimos, termina com as imagens do mar, utopia da revolução. Terra em transe abre com imagens do mar nos créditos, ao som de um canto de candomblé para a orixá Ewá, porém, aqui, não foi a prometida revolução que chegou, mas sim um golpe de Estado. Filmado durante a primeira fase da Ditadura Militar Brasileira, o filme lança mão de elementos alegóricos já a partir do nome “Eldorado”: sua província Alecrim, governada pelo populista Vieira, é tomada pelas forças de Porfirio Diaz, antigo mentor do poeta Paulo Martins.
O próprio Glauber Rocha (1981, p. 87) evocou uma continuidade entre os dois filmes pelo mar: “Terra em transe é o desenvolvimento natural de Deus e o diabo: as pessoas chegam ao mar. Chega-se pelo mar à cidade”; ao mesmo tempo, há também uma mudança: diferentemente da música da esperança do filme antes do golpe, os ruídos de metralhadora sobressairão em 1967.
Para Ismail Xavier (2016a), com a derrota dos projetos revolucionários de esquerda, a alegoria moderna, pensada por Benjamin (1984)[10] como marcada pelo desencantamento e pela visão da história fundada na catástrofe, campo de conflitos e violência permanentes, passa a ser central no debate cultural brasileiro, diferentemente da alegoria cristã, marcada pela teleologia (entendida, muitas vezes, como o termo final na salvação) e pela crença no progresso, presente no longa-metragem anterior, Deus e o diabo na terra do sol.
Depois dos créditos e das imagens aéreas do mar de Terra em transe, a primeira sequência é a do golpe de Estado. Desiludido e revoltado com a capitulação do governador Vieira, Paulo Martins foge com a namorada Sara de carro, não para diante da polícia na estrada e é atingido. Começamos a ouvir um longo monólogo do protagonista (em parte voz in e, depois, voz over) e, a partir da fala de Paulo, “a impotência da fé” (TERRA…, 1967), começa o “Prelúdio” (“Ponteio”) das Bachianas n. 3 de Villa-Lobos.
Vemos, então, Paulo empunhando um fuzil apontado para cima, em sua agonia de morte, e todo o filme vai ser um grande flashback do personagem. Justamente, a primeira imagem que Paulo evoca – “onde estará o meu deus da juventude, Dom Porfirio Diaz?” (TERRA…, 1967) –, ao som de atabaques de música afro-brasileira que calam a peça de Villa-Lobos, é completamente alegórica: Porfírio Diaz com um estandarte, representando os primeiros europeus que chegaram ao Novo Mundo, junto de figuras carnavalescas (entre elas, Clóvis Bornay) representando portugueses colonizadores e índios, numa evocação da Primeira Missa.
Durante o filme, teremos mais duas incursões musicais diferentes de Villa- Lobos. Na primeira, ouvimos a “Fantasia” (“Devaneio”), das Bachianas n. 3, enquanto Paulo se questiona, junto a Sara, sobre o papel da poesia no mundo político. Ele recita poemas para Sara recheados de violência, como nos versos “Não anuncio cantos de paz” ou em “Devolvo tranquilo à paisagem∕ os vômitos da experiência” (TERRA…, 1967). A fantasia do título da peça de Villa-Lobos pode estar relacionada ao sonho de Paulo de unir a poesia à política, o que ele conclui, ao final da sequência, ser um mero devaneio: “A poesia não tem sentido […]. As palavras são inúteis” (TERRA…, 1967). Um sentimento catastrófico.
O outro momento é durante a sequência do comício de Vieira, que tem início com o batuque de uma escola de samba presente em cena. Aí, o volume sonoro do samba diminui até cessar, enquanto a câmera se aproxima de Paulo e Sara e passamos a ouvir a “Fuga” das Bachianas Brasileiras n. 9 de Villa-Lobos, como uma alusão literal à tentativa de saída deles do meio da multidão. É como se, nesse momento, a música criasse ali o espaço do casal (MAGALHÃES; STAM, 1977) e nos permitisse entrar no mundo subjetivo do poeta, expresso em sua voz over. Com efeito, em todo o filme, a música de Villa-Lobos se associa a Paulo e a Sara, diferentemente de outras peças do repertório de concerto (por exemplo, de Verdi e Carlos Gomes), associadas a Porfirio Diaz e outros “vilões”.
Há movimentos circulares presentes durante a primeira parte do trecho da “Fuga” de Villa-Lobos, que têm semelhança com os da cena de amor de Rosa e Corisco em Deus e o diabo, por sua vez, evocada por Ada em O desafio de Saraceni. Porém, aqui, os movimentos são menos da câmera (embora ela não deixe de ter alguns travellings circulares) e mais de Paulo e Sara, que também giram e, depois, tentam se afastar da multidão.
Já na segunda parte do trecho da “Fuga”, estando Paulo e Sara junto à balaustrada, fora do cerco da multidão, voltamos a ouvir o samba e os ruídos diegéticos, ao passo que a voz over de Paulo dá lugar ao seu diálogo com Sara. Ela, ainda acreditando numa saída política para a crise, pede ao líder sindical Jerônimo que se manifeste. Então, conforme observado por Magalhães e Stam (1977), a música de Villa-Lobos volta a adquirir uma dimensão trágica durante a hesitação dele. Uma tragicidade ainda mais destacada pelo silêncio que se segue ao corte súbito a seguir de todos os elementos sonoros. Como observa Wisnik (1983, p. 177), “entre a guerrilha e a festa, o carnaval político do ciclo populista, que marca a música de Villa-Lobos, atravessa e potencia, recupera a sua dimensão subjacente, que é a dimensão trágica”.
No final do filme, a sequência da morte de Paulo é reencenada ao som do mesmo “Prelúdio” (“Ponteio”) das Bachianas n. 3 de Villa-Lobos: em toda a sequência há a retomada de planos, embora não exatamente os mesmos, e até com sentidos contraditórios, como vemos na análise de Xavier (1993). A música também é repetida, mas com variações em relação ao início do filme (interrompida e retomada mais adiante na partitura até o fim).
Nesse final do filme, “a montagem não interrompe o fluxo delirante de Paulo no momento exato em que é ferido […]. Ao contrário, preenchemos agora o que lá foi suprimido pela montagem elíptica, seguimos suas associações em vertigem na primeira hora da agonia” (XAVIER, 1993, p. 32). Agora, a música começa já enquanto Paulo é baleado no carro, nas palavras “Não é possível esta festa de medalhas” (TERRA…, 1967) da voz over dele.
Diferentemente também do início do filme, aqui, a música e a voz over de Paulo serão sempre acompanhadas por ruídos de tiros e sirene, com exceção do momento em que todos os sons são silenciados para ouvirmos o discurso inflamado de Diaz no meio do delírio de Paulo. Ele imagina que teria invadido o palácio e que lutara contra Diaz, porém, este vence, sendo coroado e fazendo o seu discurso. Para Xavier (informação verbal)[11], é um discurso bastante barroco, em diálogo com o contexto do Trauerspiel alemão evocado por Benjamin (1984).
Os tiros, além de evocarem, no delírio de Paulo, a sua luta contra Diaz, são também símbolo da violência de todo o filme, numa justaposição sonora explicada pelo próprio Glauber: “Música e metralhadoras, e em seguida ruídos de guerra […]. Não é uma canção no estilo ‘realismo socialista’, não é o sentimento da revolução, é algo mais duro e mais grave” (ROCHA, 1981, p. 87).
Paulo Martins é um Marcelo que pegou em armas. Mas o sentimento é também de catástrofe, culminando com a morte do protagonista.
Os herdeiros e “Invocação em defesa da pátria”: a capitulação
Os herdeiros foi filmado em 1968-1969, mas, por problemas com a censura, foi lançado somente em 1970. Pertence ao período de acirramento da Ditadura Militar Brasileira, muitas vezes referido como “o golpe dentro do golpe”. O filme, na verdade, tem um escopo temporal bem maior, indo de 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas, até a tomada do poder pelos militares em 1964[12].
Seu personagem principal é Jorge Ramos, um jornalista que se casa com a filha de um fazendeiro durante o Estado Novo de Getúlio Vargas e, depois, a partir da volta de Vargas à Presidência, em 1951, permanece sempre ligado ao poder, apesar das mudanças políticas, fazendo todo tipo de aliança e traições. O filme tem em sua trilha musical muitas canções populares, mas a peça de Villa-Lobos “Invocação em defesa da pátria” está presente desde seus créditos até o final, em vários momentos do filme.
Diferentemente dos dois filmes anteriores, o protagonista de Os herdeiros não é um revolucionário, embora na juventude tenha pertencido ao Partido Comunista e acredite no governo republicano de Getúlio nos anos 1950, mesmo tendo sido preso por ele durante o Estado Novo. Além disso, o filme começa com a narração over do velho fazendeiro monarquista, sendo, de certo modo, também descrito do ponto de vista dele nesse e em outros momentos. Essa diferença em relação aos filmes anteriores e as ambiguidades do personagem Jorge Ramos são corroboradas por aspectos da peça de Villa-Lobos escolhida, como veremos.
Há também relações intertextuais com os filmes de Glauber Rocha citados. Por um lado, é um personagem secundário, o filho mais velho de Jorge Ramos (Joaquim), um dos “herdeiros”, que vai mostrar um ímpeto revolucionário, evocado também pela figura do travelling, lembrando, nesse aspecto, a corrida de Manuel em Deus e o diabo na terra do sol (essa associação de Joaquim com Manuel por meio do travelling será desenvolvida mais adiante). Por outro lado, o filme é permeado tanto pelo sentimento catastrófico quanto por momentos de alegoria moderna, como acontece em Terra em transe.
A peça “Invocação em defesa da pátria”, para soprano, coro misto e orquestra, foi escrita por Villa-Lobos em 1943, portanto, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, para quem o compositor trabalhava. É uma música definida como um “canto cívico e religioso” e a letra é do poeta Manuel Bandeira, na qual podemos observar o louvor à natureza e à liberdade, com uma prece contra os horrores da guerra (o governo de Getúlio já havia declarado guerra contra os países do Eixo), além de uma evocação de Canaã, a terra prometida do povo judeu, resvalando um sentido messiânico mais próximo da alegoria cristã, observada por Xavier (2016a) em Deus e o diabo.
“Ah, ó natureza, do meu Brasil!
Mãe altiva de uma raça livre,
Tua existência será eterna,
E teus filhos velam tua grandeza (2x)
Ó meu Brasil!
És a Canaã,
És um paraíso para o estrangeiro amigo.
Clarins da aurora!
Cantai vibrantes a glória do nosso Brasil.
Ó Divino Onipotente!
Permiti que a nossa terra
Viva em paz alegremente.
Preservai-lhe o horror da guerra.
Zelai pelas campinas, céus e mares do Brasil,
Tão amados de seus filhos.
Que estes sejam como irmãos
Sempre unidos, sempre amigos.
Inspirai-lhes o sagrado,
Santo amor da liberdade,
Concedei a essa pátria querida,
Prosperidade e fartura.
Ó Divino Onipotente!
Permiti que a nossa terra
Viva em paz, alegremente,
Preservai-lhe o horror da guerra.
Dai a glória do… (soprano)
Clarins da aurora! Cantai vibrantes a glória do… (coro)
……………………………………………………………………….… nosso Brasil! (tutti)”[13]
(GUERRINI JÚNIOR, 2009, p. 139)
Embora grande parte do filme se passe na Era Vargas (a rigor, de 1930 a 1945, mas também durante o governo de 1951 a 1954), tal como observa Guerrini Júnior (2009), Carlos Diegues não utiliza a peça nessa parte do filme, em que se daria uma função referencial mais simplista da música ao tempo da ação diegética. Depois de sua presença nos créditos iniciais, a próxima incursão da música de Villa-Lobos só acontece sobre a cartela “21 de abril de 1960”, data da fundação de Brasília. A partir daí até os créditos finais, há várias incursões dela.
Como observamos anteriormente, Villa-Lobos foi malvisto por ter trabalhado para Vargas (era o “som do Getúlio”, como afirmou Carlos Diegues em entrevista a Guerrini Júnior) e, nos anos 1970, seguindo uma lógica semelhante, ficou associado à Ditadura Militar, que utilizou sua música em propagandas (GUERRINI JÚNIOR, 2009, p. 170-171).
Assim, sendo retirada do seu contexto original, a música adquire cores épicas e, ao mesmo tempo, vira um apelo de socorro pelo que acontecia no Brasil desde o Império (referido na fala do fazendeiro do início do filme), sempre em prol dos interesses de oligarquias poderosas e inescrupulosas, tal como confirma Diegues: “A música de Villa-Lobos entrava aí exatamente como você disse: de modo metalinguístico mesmo. Era como uma declaração de socorro… Que era exatamente o que eu queria dizer: só Deus pode resolver essa parada aqui. Eu acho lindo esse texto do Manuel Bandeira, um texto hiperbólico que não é muito o estilo do Manuel Bandeira, excessivo, mas que tem esse caráter excessivo que o filme precisava ter. Quase como um apelo dramático a alguém que nos salve dessa cagada [sic] toda que nós estamos vivendo… A Invocação em defesa da pátria era muito ligada àquele momento mais nacionalista e mais parafascista do governo Getúlio Vargas. A gente sabia disso. Não há nenhum erro nisso. É metalinguístico, é uma coisa muito tropicalista nesse sentido: o uso de certos elementos que originalmente têm um valor e que você transforma num contexto novo em que você está colocando” (GUERRINI JÚNIOR, 2009, p. 140).
Depois da segunda incursão musical de “Invocação em defesa da pátria” no filme, por ocasião da fundação de Brasília, que contém o início da letra da música até “Cantai vibrantes a glória do nosso Brasil” (OS HERDEIROS, 1970), há uma breve interrupção e a terceira incursão da música vem logo a seguir, quando vemos Jorge Ramos, de costas, com as mãos dadas com a amante, andando em direção ao Palácio da Alvorada (sede da Presidência da República), enquanto ouvimos as exortações do antigo patrão de Jorge, Alfredo Medeiros (fora de campo), em prol de que eles juntem forças. A câmera inicialmente acompanha Jorge e a amante (interpretada por Odete Lara), até que, num corte, um plano conjunto (fixo, mas com alguns ajustes durante o plano) mostra os dois à direita do quadro. Medeiros aparece à esquerda, olha para o público, continuando sua argumentação, num modo de encenação brechtiano, semelhante à realizada por Glauber Rocha em Terra em transe. Depois disso, Medeiros se junta ao casal ao fundo, ficando à direita deles. Pela esquerda, na mesma linha, vem o personagem interpretado pelo ator francês Jean-Pierre Léaud[14], que recita um texto em francês e anda até parar de costas à esquerda do plano (Figura 2). A letra da música, cantada pelo soprano, vai de “Tão amado de seus filhos” até o fim.
Figura 2: Imagem de Os herdeiros.
Tal enquadramento fixo nos lembra os que Ismail Xavier (2016a) associa à alegoria moderna em filmes de Glauber Rocha, como Terra em transe – e, como explica o autor, a alegoria é tradicionalmente um modo de denunciar os códigos da representação, havendo uma tendência ao excesso e a justaposições grotescas. Com efeito, tudo nessa encenação de Os herdeiros remete à alegoria: a roupa verde e amarelo de Odete Lara entre os dois homens (Jorge e Medeiros) de smoking, num indício de conciliação entre os dois; a presença do francês (como o “estrangeiro amigo” da letra da música), personagem excessivo, numa declamação inflamada de um texto que termina com “la capitale de l´espoir” (“a capital da esperança”), enquanto, na música, soprano e coro terminam junto cantando “a glória do nosso Brasil”, isso tudo num filme realizado numa época de extrema desesperança com o acirramento da Ditadura Militar.
Vemos também, aqui, uma teatralidade semelhante à considerada por Xavier (2016a) nos filmes de Glauber Rocha, em que há uma delimitação da cena, separando-a de seus arredores, “para que ela possa constituir ‘o lugar alegórico’ acolhendo as forças especiais que nela agem e se condensam” (XAVIER, 2016a, p. 7, tradução nossa). Da mesma maneira como Xavier (2016a) observa quanto a Terra em transe, em Os herdeiros a cena política se organiza a partir de traições e intrigas de gabinete, tal como no drama barroco analisado por Benjamin (1984), e muitos desses momentos são marcados por tais enquadramentos e delimitações da cena. Benjamin (1984, p. 115) explica que, no drama barroco, a “história migra para a cena teatral” e esta é, em geral, ligada à corte, sendo que, nessa cena delimitada, “o movimento temporal é captado e analisado em uma imagem espacial”.
Um enquadramento semelhante e demarcação da cena estão também ao som da música de Villa-Lobos no final do filme, no velório de Jorge Ramos: em plano frontal e fixo, com o caixão no meio, Joaquim de um lado, a namorada do outro e a amante do pai chega (vinda do fundo) até o centro, num arranjo bem geométrico (Figura 3). É interessante que, logo no plano seguinte, o personagem do conselheiro conseguirá cooptar Joaquim.
Figura 3: O enquadramento no velório de Jorge Ramos.
Além disso, outros momentos dessa peça musical marcam evocações dos dois filmes de Glauber (Terra em transe e Deus e o diabo na terra do sol). O primeiro se passa no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, utilizado como locação em Terra em transe, na coroação de Porfirio Diaz, momento em que Xavier (2016a) destaca a presença da alegoria barroca. Em Os herdeiros, é a sequência em que a viúva do professor Maia (intelectual de esquerda que havia pedido em vão a Jorge Ramos que lhe salvasse da prisão pela ditadura) mostra a Joaquim um revólver e, com toda a calma, atira à queima-roupa em David, o filho mais novo de Jorge. A viúva comete um ato de violência atingindo o pai, algo para que Joaquim (do filme de Diegues) e Paulo (do filme de Glauber) se sentem impotentes (no caso de Os herdeiros, o pai é atingido indiretamente, pelo assassinato do filho preferido; já em Terra em transe, Diaz é um pai espiritual para Paulo Martins). Logo depois do enquadramento fixo e do assassinato de David pela viúva, a música de Villa-Lobos se inicia. À música, são adicionados sons muito ruidosos de tiros e gritos, que funcionam como mais uma referência à sequência de Terra em transe.
Na continuação da música, vemos, em seu gabinete e também num enquadramento fixo, delimitando a cena, Jorge Ramos, sua mulher, a amante, Joaquim e o personagem do conselheiro, que lhe sugere se candidatar para uma vaga no Senado. É, mais uma vez, a figuração da política de portas fechadas, com exclusão do povo, como no drama barroco (BENJAMIN, 1984), tal como observado por Xavier (2016a) em Terra em transe.
Logo após o término da música, Jorge Ramos encontra Jorge Barros, seu velho companheiro do Partido Comunista, com quem discute uma possível aliança. A sequência termina com Jorge Barros dizendo “Você está certo, Jorge Ramos, mas, um dia, o povo…” (OS HERDEIROS, 1970) e levantando o braço com o dedo indicador apontado para cima. Quem retoma essa proposição messiânica, mas de forma totalmente atravessada, é Joaquim, que é visto correndo para a esquerda, acompanhado por um travelling, ao som da “Invocação”, de “E seus filhos velam tua grandeza” até “Cantai vibrantes a glória do nosso Brasil” (OS HERDEIROS, 1970): Carlos Diegues relembra, com isso, a proposição teleológica de Deus e o diabo na terra do sol e a corrida do protagonista Manuel. Porém, Manuel e seu travelling são para a direita e nos levam até o mar. Já o travelling de Joaquim é na direção contrária. O personagem, embora com algumas aspirações ideológicas, tem como real objetivo desmascarar seu pai, como constatamos em sua afirmação após a briga com Jorge Ramos: “É preciso que o filho triunfe sobre o pai para que o tempo flua e a história se faça” (OS HERDEIROS, 1970) – ainda que, mesmo sem uma atuação revolucionária clara, ao se posicionar contra o pai, Joaquim acaba desmascarando tudo o que ele representa, ou seja, uma maneira de se fazer política com associação às velhas oligarquias e aos poderosos do momento.
Como observa Guerrini Júnior (2009, p. 140), Os herdeiros é um filme marcado pela falta de esperança e que “não vislumbra a possibilidade de uma solução pela luta armada”, daí o contraste de todas as sequências – e dessa em especial – com as palavras da letra da música. Longe da alegoria cristã e da teleologia estão a corrida de Joaquim e o travelling que a acompanha. Pelo contrário, o sentimento de Joaquim está bem mais próximo ao de catástrofe, como o de Paulo Martins. Joaquim diz no bar, numa sequência seguinte, ao personagem de Léaud: “Eu vim pelo nojo da história. Como é possível viver…” (OS HERDEIROS, 1970). Outra sequência de “corrida” de Joaquim e travelling acontece após o suicídio do pai: ele corre para frente, em direção à câmera, marcando uma diferença fundamental em relação ao travelling de Deus e o diabo: não há aonde chegar ou qualquer expectativa. Mais do que a presença do sentimento catastrófico em Paulo Martins, Joaquim vai além em sua desesperança, capitulando perante o poder estabelecido, assumindo a herança do pai.
Considerações finais
Vimos que nos filmes O desafio, Terra em transe e Os herdeiros, feitos em momentos diferentes embora próximos da Ditadura Militar no Brasil, há em comum a presença de personagens idealistas e um sentimento frequente de catástrofe ou fracasso perante os acontecimentos políticos, diferente do messianismo presente no anterior Deus e o diabo na terra do sol, mas com o qual se relacionam seja pela música de Villa-Lobos, seja pela figura do travelling.
Embora tenhamos dividido nossas análises num movimento descendente em direção à capitulação perante os vencedores da história (da hesitação de Marcelo, passando pela decisão tardia de Paulo Martins de pegar em armas, chegando à capitulação de Jorge Ramos e Joaquim), devemos ver nesse sentido catastrófico uma potência. Nisso, a música de Villa-Lobos escapa às suas injunções originais e se torna trilha musical dessa força que emerge.
Se pensarmos também segundo a visão anacrônica da história de Benjamin, podemos entender o sentimento de “dissipação”, evocado por João Moreira Salles em seu recente filme No intenso agora, assim como na associação feita dos acontecimentos de Maio de 1968 do filme com as Jornadas de Junho de 2013 no Brasil, como um aspecto dessa ruína. Embora o filme de Moreira Salles não tenha sido objeto direto de nossas análises, achamos importante começar o artigo com a potência desse sentimento existente em tal objeto do presente, ele mesmo atravessado pelo passado e pelo futuro.
*Luíza Beatriz Alvim é doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ e em Música pela Unirio.
Publicado, sob o título “Revolucionários, ditadura e ruínas ao som de Villa-Lobos”, na Significação — revista de cultura audiovisual, v. 45, n. 50 (2018). Disponível em https://www.revistas.usp.br/significacao/article/view/141972
Referências
ALVIM, L. A música de Villa-Lobos nos filmes de Glauber Rocha dos anos 60: alegoria da pátria e retalho de colcha tropicalista. Significação, São Paulo, v. 42, n. 44, p. 100-119, 2015.
BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
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GUERRINI JÚNIOR, I. A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta. São Paulo: Terceira Margem, 2009.
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______. O travelling como figura de estilo na comparação entre filmes mexicanos e brasileiros voltados para a representação da violência na história: 1945-2001. In: AGUILERA, Y.; CAMPO, M. (Orgs.). Imagem, memória, resistência. São Paulo: Discurso Editorial, 2016b. p. 18-46.
Referências audiovisuais
O DESCOBRIMENTO do Brasil. Humberto Mauro, Brasil, 1937.
DEUS e o diabo na terra do sol. Glauber Rocha, Brasil, 1964.
O DESAFIO. Paulo Cezar Saraceni, Brasil, 1965.
TERRA em transe. Glauber Rocha, Brasil, 1967.
UN FILM comme les autres. Jean-Luc Godard, França, 1968.
OS HERDEIROS. Carlos Diegues, Brasil, 1970.
NO INTENSO agora. João Moreira Salles, Brasil, 2017.
Notas
[1] Em O desafio, o filme é pontuado do início ao fim por uma série de canções da MPB: “É de manhã” (Caetano Veloso), “Arrastão” (Edu Lobo e Vinicius de Moraes), “Eu vivo num tempo de guerra” (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri), “Carcará” (João do Vale e José Cândido), “Notícia de jornal” (Zé Keti), “A minha desventura” (Carlos Lira e Vinicius de Moraes). O protagonista chega a assistir ao show Opinião, em que vemos performances de Zé Keti e Maria Bethânia. Essa sequência, assim como as outras com canções, é extensivamente analisada por Guerrini Júnior (2009). Já a trilha musical de Terra em transe pode ser entendida como um apanhado de diversos gêneros musicais: além de Villa-Lobos, outras peças do repertório clássico (trechos das óperas O Guarani, de Carlos Gomes, e Otello, de Verdi), música de candomblé, solos de bateria, um solo de violoncelo, canções, samba, jazz etc.– para maiores detalhes ver nossa análise em artigo anterior (ALVIM, 2015). Finalmente, segundo o diretor Carlos Diegues, “Os herdeiros era um filme que você podia acompanhar de olhos fechados porque a trilha sonora […] é toda uma reprodução da mesma história contada pelas imagens” (GUERRINI JÚNIOR, 2009, p. 175). Assim, o filme contém um “resumo” da história da música popular brasileira, desde a Era do Rádio de Carmen Miranda e Dalva de Oliveira, passando por Odete Lara, chegando à Bossa Nova de Nara Leão e terminando com Caetano Veloso.
[2] Em Deus e o diabo na terra do sol, os protagonistas Manuel e Rosa são obrigados a deixarem suas terras e Manuel se envolve primeiro com o Beato Sebastião (figura que remete ao líder messiânico Antônio Conselheiro), depois com o cangaceiro Corisco e seu bando.
[3] Letra a partir da profecia de Antônio Conselheiro.
[4] Em palestra ministrada na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 4 de março de 2015, com o título “Diálogo transnacional Brasil-México: um procedimento (o travelling) e seu valor figurativo em três momentos: o clássico, o moderno e o contemporâneo”. A pesquisa foi publicada posteriormente com o título “O travelling como figura de estilo na comparação entre filmes mexicanos e brasileiros voltados para a representação da violência na história: 1945-2001” (XAVIER, 2016b).
[5] Em texto mais antigo, Xavier observa que, no final do filme, Manuel “projeta sua corrida para um futuro que permanece opaco e fora do seu alcance” (XAVIER, 2007, p. 90) e que “a descontinuidade entre a presença do mar e o trajeto de Manuel confirma o hiato entre esse futuro que virá e sua experiência particular” (XAVIER, 2007, p. 91), porém, essa mesma “brecha” faz com que a insurreição esteja “sempre no horizonte” (XAVIER, 2007, p. 110-111).
[6] Na palestra “Diálogo transnacional Brasil-México: um procedimento (o travelling) e seu valor figurativo em três momentos: o clássico, o moderno e o contemporâneo”, na UFRJ, em 4 de março de 2015.
[7] Momentos de inclusão de outra música no meio de uma música diegética, dando a impressão de uma interferência narrativa, são relativamente comuns no cinema e correspondem à grande liberdade do elemento musical, que frequentemente passa do espaço diegético para o extradiegético e vice-versa (STILWELL, 2007).
[8] Em Deus e o diabo na terra do sol, Glauber Rocha utilizou trechos (no total do filme, 11) de várias peças de Villa-Lobos: as Bachianas n. 2, as Bachianas n. 4 em versão orquestral, as Bachianas n. 5, a peça coral Magnificat Allelluia, o Quarteto de cordas n. 11 e o Choros n. 10 (ALVIM, 2015).
[9] Do material de distribuição da Difilm para O bravo guerreiro (1968).
[10] Xavier (2016a) explica, também a partir de Benjamin, que, como nos dramas barrocos, na cultura da modernidade tornavam-se fundamentais a questão do tempo histórico e a da legitimidade do poder.
[11] Observação feita na palestra “Alegoria e Teatralidade no Cinema de Glauber Rocha”, em 14 de agosto de 2017, na Universidade Federal Fluminense.
[12] Não há menção a essa data no filme, nem a maiores detalhes, provavelmente por censura ou autocensura. De todo modo, a deposição do presidente João Goulart em 1964 pode ser inferida da fala de um amigo do personagem Joaquim: “o presidente foi deposto e já deixou o país” (OS HERDEIROS, 1970).
[13] Aqui e nas análises seguintes desse filme, optamos por evidenciar a letra da música com suas associações semânticas às imagens e ao contexto das sequências em que estão presentes, destacando também a utilização de partes repetidas e variadas ao longo do filme.
[14] Tanto Léaud quanto Odete Lara trabalharam em filmes de Glauber Rocha da época.