Por OLGARIA MATOS*
Reflexões sobre a crise da Universidade contemporânea.
A Universidade contemporânea se encontra em crise genealógica e de transmissão de seus valores fundacionais, de sua autonomia e da solidariedade geracional que formavam as matrizes intersubjetivas da identidade profissional e institucional.
A desqualificação dos modos de ordenação anteriores de autodeterminação e avaliação acadêmica pela ideia de gestão e sua visão utilitária da instituição e do conhecimento que ela produz faz tabula rasa da passagem geracional: “ todos os atos profissionais são fragmentados, racionalizados e prescritos por outras instâncias que não são as dos próprios ofícios[…]. Práticas gestionárias são exigidas, devendo ser incorporadas aos atos profissionais”.[i]
Suas formas de chantagem se expressam na ideia que todas as reformas são para otimizar a produtividade, de maneira a que cada um deve produzir para “fazer melhor”, sem se interrogar sobre sua finalidade, perdendo-se a substância do que constitui um valor: “ o que conta é cumprir metas de avaliação, manter financiamentos e não o interesse da pesquisa, o que traz novas aberturas. Se o pesquisador não for citado, ele não é produtivo […]. Os mais bem-sucedidos não são avaliados pela coragem de pensar, mas pela publicidade e pelo espetáculo, como se, se não se avaliassem os pesquisadores, eles não seriam capazes de produzir”.[ii]
Tais circunstâncias operam como transtornos que afetam as Universidades e que se manifestam na permanente mudança de programas e projetos: “Em um movimento recursivo, a desinstitucionalização amplifica o deslocamento dos sujeitos de seus pertencimentos, e estes, por sua vez, amplificam os processos de desinstitucionalização […]. Confrontamo-nos a poderosos movimentos de deslegitimação [ dos saberes transmitidos, das formas de reconhecer competências, da autoridade intelectual] que tomam a forma da expropriação, pelo gerenciamento, e da gestão[…]. Estas modalidades de organização das relações no interior dos coletivos institucionais mobilizam a destruição da experiência anterior […], os processos de historicização sendo justamente a condição de apropriação subjetiva e de identificação”.[iii]
As reestruturações radicais na Universidade e a perda da centralidade do professor-pesquisador destroem os equilíbrios instituídos entre os membros da Universidade e sua cultura. A perda da autonomia resulta no eclipsamento da autoridade universitária. À distância das noções de poder, força e violência, a verdadeira autoridade não tem poder, ela suscita um sentimento de confiança e proteção, o sentimento, a experiência e o reconhecimento de um bem recebido, por isso sua natureza é espiritual. Por isso, onde se atesta poder, não poderia haver autoridade, pois esta evoca um misto, historicamente constituído, de civilidades tradicionais e disposições modernas que haviam permitido até agora uma neutralização de grande parte do “horror econômico”[iv].
O declínio da autonomia universitária pode ser encontrado no desaparecimento do ideário humanista que valorizava a formação cultural e política do Espírito. Hoje, a “formação continuada” do professor e o “acompanhamento docente” – à parte a ideia de nunca se atingir a maturidade, o estado de minoridade perpétua a que se é submetido – correspondem à subordinação a uma mudança incessante, a profissionalização formando paradoxalmente para a desprofissionalização, forçados que serão os indivíduos a trocar diversas vezes de profissão durante a vida, mudanças consideradas “aptidão para romper, sem pesar nem remorsos, todos os laços que podem unir um homem a um lugar, a uma cultura e a outros seres humanos.[…]. A incapacidade de amar e as disposições à ingratidão são a essência do que hoje se entende por ‘ liberdade’”.[v]
Mitigada a autonomia, a Escola e a Universidade perdem sua natureza de Bildung, de formação como processo geral de humanização da vida, o que não advém na solidão, mas justamente através de relações, de bons e maus encontros , a formação sendo propriamente dar forma aos encontros que fizemos na Escola e na Universidade, como também “faz parte da Bildung o abandonar a família, a língua que falamos em casa, aquela que a criança aprende com a mãe, a língua cheia de afetividade, sem universalidade, com respeito à qual dá-se um salto quando se entra na Escola, salto que é um trauma necessário à humanização, à desmaternalização da língua no encontro com a língua do alfabeto e da gramática[…]. A dificuldade de aprendizado nessa fase da vida é por vezes resistência contra este afastamento da ‘ língua materna’ da família até que se dê o corte simbólico, a necessidade de se separar de um saber próximo demais para aceder ao saber mais longo da língua alfabética. É essa perda que permite o acesso ao conhecimento”.[vi]
A educação humanista, formadora, encontrava na leitura o procedimento nobre por excelência. Atividade paciente, é experiência simbólica e temporal que trabalha nosso mundo interior. Que se pense em todas as experiências da cultura que requerem tempo, à distância do cronômetro do dia da produção, da gestão e do mercado. Em À Sombra das Raparigas em Flor, Proust narra como progressivamente foi‑se constituindo para ele a Sonata de Vinteuil, cujos compassos acompanham toda a obra Em Busca do Tempo Perdido: “esse tempo de que se necessita para penetrar em uma obra profunda é como um resumo e símbolo dos anos e às vezes dos séculos que têm de transcorrer até que o público possa amar uma obra-prima verdadeiramente nova. […] Foram os próprios quartetos de Beethoven que levaram cinqüenta anos para dar vida e número ao público dos quartetos de Beethoven, realizando o que seria impossível encontrar quando a obra-prima apareceu, isto é, criaturas capazes de amá‑las”.[vii]
Que se considere que as obras de pensamento são experiências do pensar e representam partes inteiras de uma vida e de toda uma existência constituídas de paradoxos, enganos e liberdade. É preciso gerações para recebê‑las e interpretá‑las – para decifrar a serenidade de Sócrates no momento de sua morte, os êxtases de Plotino, as noites atormentadas das Meditações Metafísicas de Descartes. Uma vida examinada nas obras de cultura requer tempo – à distância do taylorismo do espírito.
O mundo cultural é o da “civilização dos costumes”, que requer a iniciação ao simbólico. Em seu Racine et Shakespeare, Stendhal refere-se à história do soldado de Baltimore, encarregado da segurança do teatro em que se apresentava Otelo: “Este soldado foi escalado como vigia do teatro no qual ele nunca havia entrado antes. No momento em que Desdêmona foi ameaçada por Otelo no quinto ato da tragédia, [o segurança] o rendeu, puxou o gatilho e atirou no ator, e com isso a encenação foi suspensa. O ator acabou com um braço quebrado. Stendhal falava de ilusão perfeita e considerava ser ela rara e sobretudo efêmera, não durando mais que meio segundo ou um quarto–de-segundo”.[viii]
O mundo da ficção e da heurística filosófica, literária e histórica, necessita prolegômenos – à representação, à imagem, ao signo, à sublimação –, propiciadores da experiência da cultura e da cultura como experiência e conhecimento. Todo olhar cultural é um respeitar, um re-spectare, é “olhar de novo”, é cuidar, é um conservar o que já se viu, é uma repetição que acumula sentidos e novas reflexões, é uma experiência iniciática.
O encontro com o conhecimento é o encontro com a palavra do Mestre, com aquele que ensina, que grava em nós um sinal, que deixa uma marca, ao fazer o comentário de uma obra, comentário que clarifica o que se lê, que desfaz sua obscuridade inicial. O professor tem assim a custódia, não de um saber definitivo, mas do texto que parece escrito em uma língua estrangeira e que, pelo milagre da transmissão através de seu comentário, torna-se compreensível, considerando também o momento crucial de sua interrupção em um ponto de intensidade em que o Mestre diz: “’este aspecto, não é possível explicá-lo, não sabemos o que Platão quis dizer’, ou Santo Agostinho quando perguntava: ‘ mas o que fazia Deus antes da criação do mundo?’. A única resposta possível é ‘ não sei’. […]. Um Mestre é aquele de quem não esquecemos o nome, que deixou uma marca, que não é intelectual, pois podemos ter esquecido o conteúdo das aulas; o que não se esquece é o fascínio, a presença, o estilo, a voz […]. O encontro se faz na presença dos corpos, o livro nas mãos do professor e o giz que não é um ‘ toque’ em uma tela. Na mão do Mestre, o livro se torna um corpo, o professor sabe onde há uma vírgula, um ponto-e-vírgula, reticências, dando alma ao desejo de saber, transferindo-o aos alunos. Übertragung quer dizer: um transpor e um transportar no sentido erótico de um enamoramento, e esse encontro amplia a experiência do mundo”.[ix]
O professor é aquele que transforma um livro em corpo e um corpo em livro: “ a leitura é uma forma de relação que implica o tempo, o cuidado, a atenção, o amor pelo detalhe, pela pontuação, pela nota de rodapé. O corpo como livro é iniciação ao discurso amoroso. Não se trata de educação sexual, mas do erotismo do encontro em que se fazem transformações do corpo em livro; [esse encontro é iniciação] ao erotismo da leitura, não é consumo imediato, alucinatório do objeto, mas o caminho longo da leitura. Transformar o corpo em um livro é a definição do amor”.[x] Eis a importância dos textos clássicos, os que se tornam clássicos, aqueles que são inexauríveis, aos quais voltamos sempre porque não se desvenda nunca por inteiro seus arcanos e, assim, são sempre novos.
Se, na perspectiva humanista, as disciplinas são formadoras, na “cultura de massa” anti-humanista e anti-intelectual, elas são performáticas. A “indústria cultural” impregnou a educação, partindo do pressuposto de que “ a verdadeira cultura é elitista e assim inacessível à grande massa. Sob os auspícios da mídia, aprender foi decretado fastidioso, e o esforço intelectual proscrito. Indivíduos assim mobilizados, sentem-se instruídos quando capazes de opinar acerca dos assuntos do momento. Submetidos a uma servidão que se ignora a si mesma, o homem torna-se “lacaio do instante”, “escravo da manchete do dia”. Reduzido à condição de consumidor, aceita, sem resistência, a padronização da cultura.
O filósofo critica a indústria cultural não por ser democrática, mas por não o ser: “A luta contra a cultura de massa só pode ser levada adiante se mostrada a conexão entre a cultura massificada e a persistência da desigualdade social”. Em sentido preciso, a educação facilitada não democratizou o acesso aos bens culturais, e sim massificou a educação. Neste sentido Adorno anotou: “A abolição do privilégio educacional, por meio da venda de produtos culturais, não abre para as massas esferas das quais foram anteriormente excluídas (…); eles contribuem, ao contrário, para a decadência da educação e o progresso da barbárie”.
Nesse sentido, Adorno relata as dificuldades do exame geral de filosofia ao qual se prestavam os alunos no final de seus cursos em humanidades na Universidade de Hessen. Uma aluna escolheu ser examinada sobre Bergson e, acerca disso, o professor lhe perguntou se poderia estabelecer alguma inter-relação do filósofo com alguns pintores seus contemporâneos, artistas que tivessem alguma afinidade com o espírito da filosofia bergsoniana. Adorno observa a perplexidade da aluna que pretendia falar só de Bergson, não do impressionismo em suas relações com a filosofia do élan vital: “Mas uma cultura viva consiste justamente em reconhecer relações tais como aquela dada entre a filosofia do élan vital e a pintura impressionista. Quem não entender isso, tampouco entenderá Bergson”.[xi]
As Humanidades formadoras da sensibilidade e do pensamento são transculturais e transhistóricas, são políticas em sentido preciso: são heterofilia, são Eros. Com efeito, a educação, desde Sócrates e Platão, requer Eros, o Amor. Razão pela qual Adorno considera a atualidade educacional hoje como perda da delicadeza e o fim da aura da cultura: “pois a formação cultural […] é justamente aquilo para o qual não há usos adequados, ela deve ser obtida mediante esforços e interesse espontâneo, o que não se garante mediante cursos, mesmo os de Studium generale. Ou melhor, não se consegue mediante esforços, mas segundo a receptividade, a capacidade de permitir que o espiritual chegue até nós, recebendo-o ativamente na própria consciência, em vez de submeter-se a ele como mero aprendizado, como um clichê. Se não temesse incorrer em sentimentalismos, diria que para a formação cultural é requerido o amor; [falta de cultura] é, por certo, defeito na capacidade de amar”.[xii]
Olgaria Matos é professora titular de filosofia na Unifesp. Autora, entre outros livros, de Palíndromos filosóficos: entre mito e história (Unifesp).
Texto apresentado no Congresso acadêmico da Unifesp-2021.
Notas
[i] Gori, Rolan, La Fabrique des Imposteurs. Paris, Les Liens qui libèrent, 2013.
[ii] Gori, Rolan, op cit.
[iii] Gaillard, G., “L´Institution, le ‘Bien Commun’ et le ‘maletre’”: preserver une temporalité ouverte”. In: Crises et Truamas à l´épreuve du temps. Le travail psychique dnas les groups, les couples et les instituitions, org. R. Ka”es et allii. Paris, Dunod, 2015, p. 99.
[iv] Cf. Viviane Forrester. L´Horreur Économique. Paris, Fayard, 1997.
[v] Jean-Claude Michéa, L´Enseignement de l ´Ignorance et ses conditions modernes. Paris, Climats, 2006, p. 22.
[vi] Recalcati, Massimo, L´Ora di Lexzione.Per um´eritica dell´insegnamento. Turim, Einaudi, 2014, p.83.
[vii] Proust, À Sombra das Raparigas em Flor. Tradução: Mário Quintana. Porto Alegre, Globo, 1988, p. 96-97.
[viii] Compagnon, Antoine, Brisacier ou la Suspension de l´Incrédulité, Fabula, 1999. In: www.fabula.org.
[ix] Ricalcati, Massimo,A loibro aperto:uma vita è i suoi libri. Roma, Feltrinelli, 2010.
[x] Ricalcati, Massimo, op cit.
[xi] Adorno, “Filosofia e Mestre”, in Intervencione: nueve modelos de crítica, trad. Roberto J. Vernengo. Caracas, Monte Avila, 1969, p. 137.
[xii] Adorno, “ Filosofia e Mestres”, in Intervencione: nueve modelos de crítica, trad. Roberto J. Vernengo. Caracas, Monte Avila, 1969, p. 137.