A propósito de Paulo Freire

Evelyn De Morgan (1855–1919), AZ cadência do outono, 1905.
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Por LUIZ COSTA LIMA*

Memórias e considerações sobre o educador e filósofo brasileiro

Sempre que penso em Paulo, recordo os anos em que fomos vizinhos na rua D. Rita de Souza, no Bairro Alto, depois da praça e da igreja de Casa Forte. Assim sucedeu entre 1953 e 1954, quando teria de 16 a 17 anos. Nosso encontro se deveu à iniciativa de minha mãe, Elza Lisboa de Moraes Rego Costa Lima. Ela me contava que, na volta de ambos da missa do domingo – católicos praticantes que eram –, lhe pedira que me orientasse nos anos de adolescência, porque ela não se sentia capaz de fazê-lo.

Por sua iniciativa, passei a frequentar o escritório de Paulo. Foi de sua biblioteca que li os autores salientes da poesia moderna brasileira, assim como intérpretes sociais do país. Ou seja, nela encontrei os fundamentos que me seriam básicos.

Minha lembrança, não se exercitando com frequência no período, é bastante vaga. Recordo que o casarão de meus pais – hoje, destruído por um edifício indistinto – tinha enormes janelas que davam para a rua sem asfalto. Muitas vezes, à noite, saltava por uma delas e, mesmo de pijama, corria para o escritório de Paulo, onde conversávamos por horas e/ou lhe mostrava meus primeiros ensaios. Paulo, que havia sido professor de português, devia corrigir meus erros de principiante. A outra lembrança é de poucos anos depois. Como cumpria meu serviço militar, cursando o ano de CPOR em um quartel próximo de onde morávamos, ao terminar o expediente, passava em frente de sua casa e, ainda com a farda, se estivesse em seu escritório, passava horas em uma conversa infindável.

A recordação agora dá um salto por anos. Nos fins de 1961, havendo terminado meu curso na Faculdade de Direito, tive uma bolsa de estudos do Instituto de Cultura Hispânica. Minha escolha não era essa, mas não cabe aqui explicar por que fui parar em Madri. O curso não me entusiasmou e, ao contrário do que me ofereciam, não aceitei fazer ali minha pós. Não discuto o que ganhei, aprendendo uma língua, passando a conhecer, por influência de João Cabral – que foi meu verdadeiro mestre –, a poesia castelhana, e tendo contatos que minha reclusão no Recife não me permitia. Talvez a maior vantagem tenha sido a de me obrigar a descobrir meu caminho por conta própria. Também não cabe aqui me estender a propósito – apenas observo que esse “por conta própria” não há de omitir o que deverei a influência bem posterior da Escola de Konstanz, na Alemanha.

Ao voltar ao país no final de 1962, encontrei o Recife como uma das cidades em que mais intensamente se sentia o ânimo de mudanças sociais que sacudia o governo de João Goulart, pela influência profunda de Darci Ribeiro. O reitor da Universidade Federal (então chamada) do Recife, decidido a romper a morosidade da instituição, promovera a constituição do Serviço de Extensão Cultural (SEC), dirigido por Paulo Freire, a que se subordinavam uma rádio universitária, dirigida por José Laurênio de Melo, com prática durante anos na BBC de Londres, e a revista Estudos Universitários, de que eu era secretário. Como ao mesmo tempo era assistente do professor Evaldo Coutinho, todo meu tempo era ocupado pela universidade. O SEC era a sede em que se preparavam os instrutores que iriam aplicar o sistema de alfabetização concebido por Paulo. Sendo costumeiro supor-se que o sistema de Paulo implicava o uso de uma cartilha, vale lembrar que nada lhe seria mais antagônico. Em seu lugar, projetava-se em um quadro-negro uma ou mais palavras e, depois de ser ensinada a identificação das letras, pedia-se ao alfabetizando que, a partir dela/s, pela mudança de letras ou sílabas, se formulassem outras palavras. Ou seja, incentiva-se a capacidade de combinação do aprendiz, sua imaginação ideativa e não simplesmente sua memorização visual. Como desenvolverei a seguir, esse princípio básico me leva a pensar que o método de Paulo ia além de um processo de alfabetização. A projeção era feita a princípio de maneira bem tosca, que não recordo bem; mas logo ela contou com um aparelho simples, concebido por Francisco Brennand. Paralelamente a meu trabalho na revista, eu participava, por aulas de cultura brasileira, da formação dos instrutores. Foi assim que se constituiu a primeira experiência, realizada em Angicos, Rio Grande do Norte.

Por interferência creio que de Darci Ribeiro, o projeto de Paulo Freire se tornou nacional. Seu êxito e extensão aumentaram sensivelmente a ira dos setores reacionários da cidade. Acusava-se Paulo e sua equipe de, a pretexto de alfabetizar a população marginalizada, pretender formar uma massa de votantes para candidatos comunistas. Poucas ignomínias podiam ser mais absurdas. Não só Paulo Freire era um católico praticante, como o próprio Partido Comunista não aprovava o clima de agitação instalado no país, em consequência muito menos o projeto de Paulo, sob a alegação, que logo se revelaria justa, de que o país não estava preparado para mudanças de alguma profundidade. O golpe militar de abril de 1964 mostraria que a força optava pela manutenção da estrutura da desigualdade que secularmente tem sido a marca do país. Contra o poder das armas que pode a ilusão de sonhos? O SEC é desfeito, seus membros são demitidos, muitos foram presos ou, meses depois, incluídos no AI/1. O golpe acentuava que a sobrevivência de cada um dos atingidos obrigava que procurassem outros ares.

Não devo terminar esse pequeno retrospecto sem ainda chamar a atenção para o projeto de Paulo. Parece-me ingênuo que ele se restrinja a ser um método, ainda que diversificado, de alfabetização. Não duvido que assim parecia a seu próprio criador e aos que tentavam implantá-lo. Mas também creio que seus adversários mais astutos intuíam que eram atacados em uma frente mais profunda. Isso não só não tem sido notado como pertence a uma área de estudos ainda quase inexistente. Não me cabe aqui mais do que apontar para sua possibilidade. Ou seja, delineá-la grosseiramente.

Tomo como exemplo o número mais recente da revista universitária norte-americana Critical inquiry (verão de 2021). Nele, se encontra artigo assinado por Anna Schatman, sob o título de “Command of media metaphors”. O ensaio não se destaca por sua qualidade; é antes bastante fraco, limitando-se a uma ampla resenha que, a partir do “Seminar Tamiment”, realizado em 1959, vindo atrás e adiante, restringe-se a assinalar o papel da metáfora como supradeterminação (“over-determination”) do texto mediático: “O que as conversações de Tamiment finalmente revelam é que quando os mídias entraram na linguagem corrente já eram associados a muitas definições”. A pormenorização do argumento da autora seria de valia tão só pouco maior do que a passagem acima. Ainda que seu desenvolvimento não abandone a mediocridade, o ensaio alerta para a necessidade de penetrar-se no que chamaríamos de composição textual. Ou seja, para a necessidade de verificar-se que o uso da língua sofre modificações significativas conforme a maneira como é feito. O uso do português na explicação de uma questão de ciência exata (melhor seria dizer “hard”, dura), em um best-seller, em um texto sociológico ou em um poema sofre mudanças que independem do propósito ou da intenção de seu autor. Ou seja, cada um deles constitui um bloco discursivo, cujas propriedades precisam ser caracterizadas. Não se diz com isso que cada bloco contenha fronteiras rígidas. Muito ao contrário. De um texto mediático banal até um poema refinado, as diferenças concernem a graus de complexidade crescente, resultantes de diferenças de frames (molduras) que particularizam cada discurso.

Daí a intuição que provoca esse desenvolvimento. Creio que a ira que o método de Paulo Freire provocava decorria de que ele, mesmo sem o propósito consciente de seu promotor, atacava a constituição estabelecida nacionalmente do discurso sociológico, formulado de maneira a deixá-lo próximo do frame antes próximo do mediático, ou seja, a formulação cotidiana. A diminuição então alcançada das formas discursivas seria louvável se não se fizesse em detrimento do intercâmbio entre conceitos e a plurivocidade metafórica, sem o qual os discursos, com exceção da formulação rigorosamente matemática, podem ser interessantes, sem que se tornem efetivamente novos. Como dizia Freud, a pesquisa e a reflexão posteriores por certo trarão a luz decisiva.

Se não sou eu que indevidamente extrapolo, as conversas mantidas na rua Rita de Sousa continuam a ecoar em minha mente. Sem ser responsável pelo que elas geram, devo a Paulo sua longa fermentação.

*Luiz Costa Lima é Professor Emérito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ) e crítico literário. Autor, entre outros livros, de O chão da mente: a pergunta pela ficção (Unesp).

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