Por MARIANA SOUTO & MATEUS ARAÚJO*
Notas sobre filme “Meio-dia”, de Helena Solberg
Primeiro filme de ficção de Helena Solberg, o curta Meio-dia (1970) permaneceu na sombra até muito recentemente, a exemplo de boa parte da sólida filmografia da cineasta, que privilegiou o terreno do documentário ao longo de mais de cinquenta anos de um trabalho ainda em curso.[i] A circulação mais ampla de seus filmes, para além de alguns mais conhecidos como A entrevista (1966), The emerging woman (1975) e Carmen Miranda: Banana is my business (1995), provavelmente levará a historiografia a incluí-la no cânone do melhor cinema brasileiro moderno, junto dos cinemanovistas, dos seus radicalizadores ou dissidentes e de um punhado de cineastas que passam ao largo de movimentos.
Ora, se sua obra permaneceu largamente desconhecida, Meio-dia parece ter sido ainda mais esquecido do que os outros filmes, e até mesmo, ao que consta, pela própria Solberg. Talvez por isto tenha recebido tão pouca atenção no estudo pioneiro de Mariana Tavares sobre o itinerário da cineasta, Helena Solberg: do cinema novo ao documentário contemporâneo[ii], que o menciona de passagem à p. 35 e não lhe dedica maiores considerações. Seja como for, a discussão mais atenta que conhecemos sobre o filme é o texto de Camila Vieira, “Rebeldia e desobediência: em torno de Meio-Dia (1970)”[iii], ao qual estas notas devem bastante.
Diante deste persistente silêncio crítico, e de um clima sufocante de retrocesso político que assola o Brasil,[iv] vale particularmente a pena voltar ao curta de Solberg. Realizado em São Paulo com orçamento baixíssimo e atores não-profissionais, ele reata, em 1970, com o espírito de 1968 ao revisitar uma tradição mais antiga de filmes sobre a rebeldia infantil, da qual Zero de conduta (Jean Vigo, 1933) e Os incompreendidos (François Truffaut, 1958) seguem sendo momentos altos.
Uma insurreição em dez minutos
Em 10 minutos e 18 cenas, sem recorrer a diálogos nem nomear personagem algum, o filme figura uma insurreição contra a ordem instituída, de que a escola aparece como microcosmo e emblema. A revolta é infantil, mas não se trata de brincadeira ou movimento que se encerre no âmbito do lúdico. A violência é explícita e o levante, destruidor. A operação básica do filme é a de projetar a revolta escolar das crianças no contexto mais amplo de 1968.
Num breve prólogo com 4 cenas, o filme anuncia várias polaridades que organizarão seu fluxo de imagens e sons: entre o espaço da instituição escolar e o mundo das ruas, entre a expressão tutelada e a expressão livre, entre o discurso dos pais e a rebelião dos filhos, entre a contenção e o extravasamento irruptivo. No plano inicial de 10 segundos, vemos sobre um fundo indeterminado (escola? casa?) o rosto de um menino recitando a última estrofe de um soneto intitulado “Meu filho”, do poeta mineiro Djalma Andrade (1894-1977).
No poema, um pai exprime a convicção de conduzir bem os passos de um filho pequeno que ele caracteriza na primeira estrofe como doce, inocente e obediente, vencendo a “estranha angústia” de desorientá-lo, que aparece na segunda estrofe, antes que as duas últimas a conjurem, pela adoção da “rota mais segura” e da “firmeza em cada passo dado”.
Meu filho
O meu filho, que é doce, que é inocente,
Quando comigo sai, luz que fascina,
Põe seus claros pezinhos, brandamente,
Nas marcas dos meus pés, na areia fina.
Ele segue-me os passos, inconsciente,
Mas uma estranha angústia me domina,
E calcando os meus pés mais firmemente
Meu coração, aos poucos se ilumina.
Sem saber, tu me obrigas, filho amado,
A procurar a rota mais segura,
A ter firmeza em cada passo dado.
Nunca dirás – que horror n’alma me vai!
Que te perdeste numa estrada escura
Por seguires os passos de teu pai!
Ao lado de uma mulher (mãe? professora?) que mal entrevemos no quadro [Fig. 1], o menino recita a quarta e última estrofe, em que a obediência ao caminho traçado pelo pai aparece como garantia contra o risco de extravio do filho “numa estrada escura”. Finda a leitura, o menino se volta para a câmera e sorri aliviado, enquanto ouvimos palmas no som e vemos o braço da mulher atravessar o quadro e por a mão no ombro do recitante, aprovando assim sua performance [Fig. 2]. Ao dizer os versos de um pai que toma o filho como objeto e destinatário, o menino reproduz o discurso da tutela adulta, e a própria cena como um todo a reitera no gesto de aprovação daquele braço feminino. Assim se constrói e se fecha nos 10 segundos iniciais o círculo da ordem tutelar da família ou da escola (discurso do pai / reproduzido pelo filho / aprovado pela mãe ou professora), que o filme não cessará de atacar.
O plano seguinte elimina a presença adulta: um aluno, cujo rosto não vemos com clareza, mas o suficiente para perceber que masca chicletes, escreve na lousa de uma sala de aula, de costas para a câmera, o título do filme, que apaga em seguida para escrever os nomes de Helena Solberg, José Marreco e João Farkas, sem especificar suas funções respectivas de diretora, diretor de fotografia e ator principal. Com estes créditos iniciais sumários e lacônicos, e a lousa como claquete, Meio-dia se instala no espaço da sala de aula, que aparece de cara como o ponto de ancoragem de sua enunciação, mas por meio da ação de um aluno, sem tutela docente manifesta e sem hierarquia assumida no seio da equipe.
O terceiro plano mostra em close o rosto de outro adolescente, interpretado por João Farkas.[v] Num espaço novamente indeterminado, ele olha sério para a frente, como se observasse com circunspecção algo no extracampo: a lousa? o filme? Reforçando seu destaque, uma zoom-in fecha o quadro no seu rosto, enquanto irrompem no som alguns compassos instrumentais de uma música, que mais adiante descobriremos ser É proibido proibir (1968), de Caetano Veloso. Estes compassos prosseguem até a metade da cena seguinte, do mesmo adolescente concentrado na leitura de uma revista ao lado de três rapazes mais velhos, que conversam animados no quarto de uma casa sem que escutemos suas vozes.
De repente, o adolescente larga a revista na mesa, pega um saco plástico e enfia nele a cabeça, simulando uma situação de tortura por asfixia, destoante daquela animação. Nova zoom-in no rosto dele, selando o gesto de atenção do narrador ao personagem, que dali em diante assumirá de vez o protagonismo, sem contracenar com nenhuma figura de autoridade: nem seus pais nem seus professores darão o ar da graça no filme, e ele não seguirá os passos de ninguém, como se preferisse a “estrada escura” à “rota mais segura” referida no poema inicial.
*
O filme acompanha dali em diante um dia na sua vida e na da sua escola, cuja aula ele mata. Ou meio dia, como diz o título, sugerindo que a ação se concentra numa manhã. Depois de beber uma xícara de café, atravessar o portão de casa e ganhar a rua, ele chega até a porta da escola, em cujo muro se lê a pichação “A ditadura é foda”. Uns vinte alunos ali reunidos no passeio vão entrando aos poucos, só ele fica para fora e decide não entrar, trocando naquela manhã a rotina da aula pela aventura das ruas.
A partir daí, acompanhamos em cinco sequências (2’32”-5’40”) suas andanças solitárias por diversos espaços da cidade, de cuja dinâmica ele tenta participar. Vemo-lo andar por uma calçada movimentada, espiar ali os cartazes de um cinema e as revistas de uma banca, pegar um ônibus, chegar a um gramadão e se assentar perto de três trabalhadores que o capinavam, tentar participar de um bate-bola numa roda em que um adulto lhe rechaça, reagir a esse rechaço chutando sua blusa e depois um cachorro, fugir do adulto que o persegue pela agressão ao cachorro, chutar uma lata numa estrada e atirar seu material escolar – livros e cadernos – num rio (Tietê? Pinheiros?) em cuja margem se deitara.
Este périplo urbano é sucedido por um longo bloco paralelo no interior da escola (5’41”-9’6″), em que a rebelião se desenha. Dos cadernos jogados ao rio, migramos para cadernos abertos sobre as carteiras na sala de aula. Ali, a câmera passeia entre alunos e alunas obedientes, de cabeça baixa, enquanto o professor circula pela sala, inspecionando sua leitura. Um a um, eles levantam o olhar, vigiando furtivamente o professor [Fig. 3]. A cada corte, vemos uma ou duas novas crianças e pressentimos um levante iminente, que acabará encurralando o professor. Antes do confronto, os estudantes sacam suas armas, pondo lápis, régua e pedaços de pau sobre as mesas, dando à cena um tom de ameaça [Fig. 4].
Enquanto os olhares certeiros permanecem atentos ao seu alvo, as pequenas mãos batem os objetos nas carteiras, marcando um ritmo que acentua a tensão. O professor consegue arrancá-los das mãos de um dos alunos, mas a turma reage imediatamente e se põe de pé. Um momento de suspensão congela o impasse entre os dois lados: alunos e professores estão imóveis. A montagem dilata a tensa espera, salientando os olhares desafiadores dos alunos [Fig. 5 e 6] e acentuando a sensação de fechamento do cerco. Do olhar de um aluno, a câmera se desloca para o alto, revelando braços erguidos e punhos cerrados, referência a movimentos de resistência [Fig. 7 e 8]. As crianças, embora miúdas, assustam pela quantidade. São muitas, diante de um professor adulto, porém vulnerável por falta de pares. Os pequenos, geralmente fracos e submissos, invertem o jogo através da união de suas forças – e daí emerge uma possível analogia com a relação povo/poder
Quando o ataque ao professor é deflagrado, os alunos se lançam sobre ele, mas também derrubam mesas, quebram cadeiras, jogam livros e caixas para o alto [Fig. 9-12], ecoando o gesto que víramos pouco antes do protagonista arremessando seus livros escolares no rio. Como se as explosões inconsequentes do protagonista (de chutar a blusa, um cão e uma lata), ou aquela outra mais significativa de destruir seu material escolar, ganhassem agora uma expressão coletiva, muito mais clara, transformando-se em um gesto propriamente político contra a instituição escolar. Com efeito, a revolta dos alunos não atinge apenas o professor que encarna a autoridade, mas também o espaço da escola como instituição.
Atacado fisicamente pelos alunos, o professor consegue porém fugir para o pátio, esbaforido e cambaleante. Do lado de fora, depara-se com outras turmas que estão dispostas em pequenas rodas pelo pátio, provavelmente no recreio. Ele afrouxa ainda mais a gravata já mal ajambrada, resultado do sufoco anterior. Os alunos, dessa vez bem maiores, vão percebendo aos poucos sua presença e não demoram a cercá-lo, aproximando-se com paus e pedras que encontram no chão [Fig 13]. O novo ataque se precipita, capitaneado por um rapaz de bigode, com aparência de adulto [Fig. 14], e flagrado por uma outra professora que chega ao pátio, e vê seu colega no chão, inerte e ensanguentado. Morto? [Fig. 15].
Nos instantes que precederam este segundo ataque, surgem ruídos estranhos de um trecho instrumental da canção “É proibido proibir”, de Caetano Veloso, que já irrompera no início do filme sobre imagens do protagonista simulando no quarto uma tortura por asfixia. Agora, seu retorno no som volta a sugerir uma espécie de continuidade ou solidariedade entre a situação extra-escolar do protagonista e a ação intramuros dos alunos da sua escola. Consumado o ataque, desfilam imagens festivas de uma pequena multidão de alunos eufóricos (mais novos que os segundos agressores), correndo, brincando e dançando no pátio [Fig. 16-17], enquanto ouvimos a segunda estrofe da canção e seu refrão reiterativo:
É Proibido Proibir
Caetano Veloso
[…]
Me dê um beijo, meu amor
Eles estão nos esperando
Os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras
As estantes, as estátuas
As vidraças, louças, livros, sim…
E eu digo sim
E eu digo não ao não
E eu digo:
É! proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir…
Inspirada em reportagem sobre o movimento francês do maio de 1968, a canção empresta no título e no refrão um de seus slogans mais conhecidos[vi]. Nesta segunda estrofe, o eu que fala pede um beijo a seu amor no primeiro verso e observa no segundo que alguém lhes espera: “eles estão nos esperando”. O pronome “eles” permanece indeterminado: são os companheiros de rebelião ou os representantes da ordem que se quer contestar? E os esperam portanto para a aventura partilhada ou para o confronto, ao qual já alude o terceiro verso, sobre os automóveis incendiados pela rebelião? Os versos 4 a 6 parecem completar a frase do verso 2, ao sugerir que os outros os esperam (para) derrubar prateleiras, estantes, estátuas etc. Eles constituem assim uma convocação à destruição de bens simbólicos da ordem social (prateleiras, estantes), da cultura oficial (estátuas, livros), do espaço doméstico (louças), configurando um programa insurrecional abrangente, ao qual o eu da canção adere, dizendo sim, dizendo não ao não, e repetindo o slogan do maio francês (“é proibido proibir”).
A inserção desta canção sobre as imagens da criançada brincando eufórica no pátio da escola depois da rebelião na aula e da agressão ao professor tende a justapor aquele programa insurrecional à situação particular mostrada no filme, ampliando assim o universo social figurado na sua rebelião escolar, e conferindo-lhe um alcance muito mais vasto do que aquele presente na imagem. Numa palavra, tende a selar a alegoria política desenhada naqueles incidentes escolares de uma manhã paulistana, que viram a cifra das manifestações políticas e sociais de 1968 no mundo ou da luta contra a ditadura no Brasil (já referida na pichação da fachada da escola, segundo a qual “ditadura é foda”).
Se já víramos nas imagens do filme a destruição de livros (pelo protagonista, fora da escola) e de objetos escolares como mesas e carteiras, afins às prateleiras e estantes mencionadas na canção, a penúltima cena acrescenta o motivo sonoro das vidraças quebradas, que a cena final confirmará na imagem, ajudando a dar concretude às metáforas insurrecionais mobilizadas nos versos de Caetano. Depois da explosão de liberdade no pátio, vemos um menino pequeno correndo do fundo de um longo corredor da escola em direção à câmera. Ao final de seu trajeto, ouvimos o barulho estridente de vidros quebrando. Um raccord nos leva ao protagonista também correndo em direção à câmera, centralizado no quadro como o primeiro menino, mas agora na rua.
A composição semelhante do quadro e o raccord de movimento tendem a assimilar, ou ao menos a solidarizar visualmente as duas corridas, uma dentro, outra fora da escola. O protagonista está retornando à escola depois do seu périplo pela cidade, e em sua chegada volta a irromper no som o refrão da canção de Caetano (“E eu digo sim / e eu digo não ao não / E eu digo é: proibido proibir / É proibido proibir / É proibido proibir / É proibido proibir / É proibido proibir”), o mesmo que embalara a celebração eufórica da criançada no pátio, que exalava uma potente sensação de liberdade. O refrão comum às duas cenas reforça ainda mais a solidariedade entre as duas aventuras (intra e extra-muros), à qual voltaremos.
Abrindo o portão, ele observa, numa panorâmica lateral que reproduz seu ponto de vista, várias vidraças do prédio destruídas, provavelmente pela rebelião dos alunos mostrada pouco antes. Seu semblante é sério e ambíguo. Ele olha para a esquerda, olha para a direita, e parece hesitar: entrará enfim na escola? Voltará para a rua? No close do seu rosto pensativo, o filme se encerra.
Da rebelião infantil ao emblema de 1968: diálogos e expansões
Como vimos em nossa breve análise, Meio-dia não só mostra como procura articular duas formas de oposição à instituição escolar, metonímia da ordem social do Brasil de 1970 contra a qual ele se posiciona de modo resoluto: por um lado, a fuga, o abandono, a deserção – saída individual; por outro, a organização e o enfrentamento – saída coletiva. Embora se concretizem em sequências distintas, com personagens e situações diferentes, as duas posturas vão se solidarizando, por assim dizer, nas imagens e nos sons do filme – nos gestos comuns dos personagens (de extravasar, destruir objetos), no comentário musical da canção de Caetano que irrompe em sequências tanto do protagonista absenteísta quanto dos alunos revoltosos, no raccord que une uma corrida de aluno num corredor da escola com o retorno do protagonista ao seu portão de entrada. Sem se confundirem, uma postura ecoa na outra, como se constituíssem duas faces da mesma recusa de obedecer àquela Ordem.
Esta articulação mobiliza um diálogo com dois momentos fortes de uma linhagem cinematográfica de rebeldia infantil, ambos assumidos e reivindicados pela cineasta em suas declarações sobre o filme: Zero de conduta (Jean Vigo, 1933) e Os incompreendidos (François Truffaut, 1959). O primeiro funciona como uma espécie de modelo da rebelião escolar levada a cabo pelas crianças. O segundo, da evasão da escola em prol da aventura das ruas, levada a cabo pelo protagonista flâneur.
O filme de Vigo apresenta, em sua história de rebelião escolar, um protagonismo disperso entre, ao menos, quatro meninos (Caussat, Colin, Bruel e Tabard), capitães de uma baderna generalizada, um “complô de crianças”, concentrado no espaço da escola. Embora não resulte em violências graves, tal complô mobiliza palavras de ordem extraídas do léxico revolucionário. Um dos meninos brada em tom de manifesto: “A guerra está declarada! Abaixo os professores! Abaixo os castigos! Viva a revolta! Liberdade ou morte! Hasteemos nossa bandeira! […] Amanhã combateremos a golpes de livros velhos!”.
O filme de Truffaut traz todo um elenco juvenil, mas se ancora fortemente num protagonista, Antoine Doinel.[vii] A vida do garoto se divide entre, de um lado, a rotina familiar / escolar e, de outro, concorrendo com ela, sua aventura das ruas e atrações populares de Paris (cinema à frente), partilhada basicamente com um amigo. Concentrada em cenas externas, tal aventura é vivida como uma experiência de liberdade, deriva e errância, acentuadas nos momentos filmados com câmera na mão. Ao longo do filme, a rebeldia do personagem se traduz em pequenas infrações morais, na escola, em casa e nas ruas[viii], mas acaba lhe custando uma internação em casa de correção – da qual ele foge no fim.
Meio-dia conjuga elementos de ambos os modelos. De um lado, a errância do protagonista que troca os bancos escolares pelas ruas da cidade; de outro, a rebelião coletiva na escola – com resultado mais violento do que no filme de Vigo, apesar da atmosfera igualmente pueril de sua alegre celebração. As duas linhas se encontram ao final, quando João retorna à escola e se depara com sua entrada vazia e suas vidraças estilhaçadas. Terá perdido o bonde da revolta, ou estará vindo alargar-lhe o campo de possibilidades, a partir de sua experiência das ruas?
Ao mesmo tempo, o filme de Solberg retoma as lições daqueles dois filmes em outro contexto e introduz diferenças. Ao contrário daquelas mostradas por Vigo e Truffaut, sua escola agora é mista, e as meninas também tomam parte ativa na revolta, que vitima um professor do sexo masculino mas poupa sua colega. E as figuras da autoridade tendem a desaparecer ou a perder agência. Os pais do protagonista, assim como os dos demais alunos, nunca aparecem, o único professor que vemos em ação é massacrado pelos alunos (a outra que flagra a cena não age nem reaparece depois), nenhum policial dá o ar da graça na rua ou na escola. Nenhuma transgressão é punida, desde as mais brandas (o ato de matar a aula, o chute no cachorro alheio, o descarte dos livros e cadernos jogados no rio) até as mais graves (agressão e assassinato do professor na escola).
As crianças parecem reinar livres, impunes e vencedoras. Mas as marcas dos nossos anos de chumbo estão lá, imantando o filme inteiro, desde a simulação pelo protagonista da tortura por asfixia [Fig. 18] e da pichação no muro da escola segundo a qual “ditadura é foda” [Fig. 19] até a iconografia já comentada dos punhos cerrados [Fig. 7-8] ou do arremesso de projéteis (livros, objetos escolares, caixas) [Fig. 10-11] que exprimem o ímpeto revoltoso dos jovens. Além disso, a banda-sonora do filme era dominada pela canção inspirada no 1968 francês de Caetano Veloso, então exilado pela ditadura, depois de preso com Gilberto Gil.
Este conjunto de remissões a 1968 e, mais particularmente, à ditadura civil-militar no Brasil nos conduz à segunda constelação de filmes com os quais Meio-dia entretém um diálogo. Menos evidente, não reinvindicado pela cineasta, este diálogo porém não é menos efetivo, e seu exame nos parece uma tarefa importante da exegese vindoura do filme de Solberg. De que constelação se trata aqui? A do cinema insurrecional em torno de 1968. Cinema diverso e variado que, no Brasil, passa por filmes políticos figurando diretamente a mobilização dos jovens, os confrontos entre manifestantes de oposição e forças da repressão, ou a violência de estado na prática sistemática da tortura institucionalizada pela ditadura civil-militar.
Tratando destas questões, criando uma dramaturgia ou uma iconografia a elas relacionadas, uma série de filmes brasileiros sucedia o retrospecto radical de Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967), cuja alegoria se concentrava no período que precedeu o golpe de 1964, para figurar agora seus efeitos imediatos: Vida provisória (Maurício Gomes Leite, 1968), 1968 (Glauber Rocha e Affonso Beato, 1968), Hitler 3o Mundo (José Agrippino de Paulo, 1968), Matou a família e foi ao cinema (Julio Bressane, 1969), Contestação (João Silvério Trevisan, 1969), Manhã cinzenta (Olney São Paulo, 1969), Jardim de guerra (Neville d’Almeida, 1970), entre outros.
Informado ou não por tais filmes à época, o curta de Solberg se inscreve, aos olhos do historiador de hoje, em sua constelação, na qual assume um timbre singular. A escolha de crianças e jovens de várias idades (protagonista adolescente, alunos menores na sala e no recreio, alunos maiores no massacre do professor no pátio), a conjugação do enfrentamento físico na escola (= luta armada?) e da descoberta do mundo pela evasão escolar (= desbunde?), o uso de uma canção política que afrontava a ditadura mas desagradava ao mesmo tempo a juventude ortodoxa de esquerda que a combatia, tudo no filme sugere e aponta para uma frente ampla, ao mesmo tempo política e existencial, contra a ordem repressiva.
Um dado porém singulariza tal frente ampla: não são os adultos engajados e militantes dos outros filmes do período, mas as crianças rebeldes e alegres que a encarnam, num vislumbre talvez de uma luta de longa duração, que se projetará no tempo, com um horizonte de transformação propriamente geracional das instituições. Sem dizê-lo explicitamente, sem figurar nenhum projeto de longo prazo, sem sair da urgência dos gestos imediatos, Meio-dia acaba assim por sugerir que a luta contra a opressão será levada a cabo pela juventude. O rosto circunspecto do protagonista, cujo close ritma todo o filme, parece exprimir a dúvida sobre os seus caminhos: fuga, festa ou luta? Diante da escola, da cidade (e do país): amá-los, deixá-los ou tomá-los de assalto?
*Mariana Souto é professora do Departamento de Audiovisuais e Publicidade da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC-UnB).
*Mateus Araújo é professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
Publicado originalmente, sob o título “Um 1968 mirim? notas sobre Meio Dia, de Helena Solberg”, na revista Eco-Pós (on-line), Vol. 21, n.1, 2018 (Dossiê “50 anos de 1968”), p.263-276.
Notas
[i] Nestes 50 anos de carreira, Solberg já nos deixou 16 filmes, dos quais 14 documentários e 2 ficções.
[ii] São Paulo, É Tudo verdade, 2014.
[iii] Incluído no precioso catálogo da Retrospectiva Helena Solberg (Belo Horizonte / São Paulo: Filmes de Quintal / CCBB, 2018, p.46-49), organizado por Leonardo Amaral e Carla Italiano.
[iv] E parece resignadamente integrado (na chave da melancolia) até mesmo num filme que tematiza 1968, como o último documentário de João Moreira Salles, No Intenso agora (2017).
[v] Filho de Thomaz Farkas (de cuja família Helena se aproximara), então com 15 anos.
[vi] Sobre a gênese e o sentido desta canção, que lhe foi pedida por Guilherme Araújo em 1968 para servir de comentário ao maio francês, veja-se as considerações do próprio Caetano Veloso em Verdade Tropical (3a Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p.305-314), além das informações trazidas por Carlos Calado em Tropicália: a história de uma revolução musical (4a Ed., São Paulo: Ed. 34, 1997, p.216-38)
[vii] Tão expressivo e potente para a história do cinema que ultrapassa o filme e reaparece em obras posteriores de Truffaut, em sua próspera parceria com o ator Jean-Pierre Léaud.
[viii] Palhaçadas e assovios nas costas do professor, cumprimentos insolentes a um padre, mentiras aos pais e às autoridades escolares para encobrir suas ausências na escola, furto de dinheiro ou de uma máquina de escrever, logo devolvida.