Da arte de não enxergar o fogo

Ranjani Shettar (1977), Sete lagoas e algumas gotas de chuva, 2017.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por VLADIMIR SAFATLE*

Considerações finais sobre a discussão com Leonardo Avritzer

Termino minha participação na discussão com Leonardo Avritzer – travada em uma série de artigos postados no site A Terra é Redonda – com duas considerações.[1] A primeira diz respeito à sua incapacidade de simplesmente entender a natureza de um dissenso, o que é triste para um professor de ciência política. Segundo ele, eu teria me furtado a respondê-lo, já que: “A pergunta que fiz, e que Safatle não conseguiu responder, é se a lógica da violência que vem de um estado excludente e violento deve determinar a lógica de ação dos movimentos sociais”.

Avritzer não foi capaz de compreender que o problema era mais fundamental, a saber, seu conceito de “violência” é obscuro, vazio e impreciso e, se quiserem “não-político” ou simplesmente “ideológico”. Sob nenhum aspecto, designaria uma ação contra uma estátua, feita sem visar em absoluto ferir alguém, em um local se circulação de pedestre, como “violência”. Imaginava que o uso de aspas fosse algo imediatamente compreensível.

Descrever ações dessa natureza como “violência” apenas mostra certa incapacidade de compreender dinâmicas reais de luta social que não será compensada pelo clássico e batido cacoete acadêmico de citar aquilo que se entende pela “bibliografia mais recente” e citar textos clássicos dando interpretações simplesmente distorcidas (como ocorreu com o Crítica da violência, de Benjamin, em versão portenha e socialdemocrata light).

Logo, a pergunta feita por Avritzer perde completamente o sentido porque não estamos de acordo sequer a respeito do que “violência” efetivamente significa. Seria melhor ter discutido esse ponto ao invés de ter uma concepção completamente fetichista e mágica de certas palavras.

A segunda consideração é sobre certa capacidade de ver simplesmente o que se quer ver, mesmo que tudo mostre o contrário. Avritzer termina sua tréplica tecendo considerações sobre o recente processo de lutas do Chile e, para tanto, ele se demora diante do que ocorreu com a estátua do general Baquedano. Ela acabou por ser retirada do local. Segundo Avritzer, esse seria um exemplo de ação “não-violenta” já que a única ação que ele descreve seria a luta simbólica pelo significado da estátua. Luta feita através da colocação da bandeira Mapuche na estátua por manifestantes.

E Avrtizer traz então uma foto. Diga-se de passagem, uma foto onde vemos os manifestantes com a referida bandeira em meio ao fogo e à fumaça resultante das lutas nas ruas. Ou seja, tudo o que estava acontecendo ao redor não interessa a Avritzer porque o evento que ele selecionou de seu contexto ganhou uma explicação mágica que deve mostrar como: “A instituição do novo não se dá a partir da colocação do fogo, uma forma destrutiva de ação e sim da utilização da linguagem da política”.

Mas o mais aterrador, e isso espero que tenha sido resultado apenas de um desconhecimento da história concreta dos fatos, é que a estátua foi queimada por manifestantes. Ou seja, nesse caso preciso a “instituição do novo” apoiou-se sim na colocação do fogo, que não tem nada de simplesmente “destrutivo” (mais um fantasma conservador clássico ligado ao processo de desqualificação das manifestações de força soberana popular). Permita-me repetir: a estátua do general Baquedano foi queimada por manifestantes no dia 05 de março de 2021 (quem quiser pode encontrar o video em https://www.biobiochile.cl/noticias/nacional/region-metropolitana/2021/03/05/nuevo-viernes-de-manifestaciones-en-plaza-baquedano-desvios-provocan-gran-congestion.shtml).

Depois disso, ficou insustentável ao governo Piñera continuar a tentar preservá-la. Um mês depois, ela foi retirada. Ou seja, o exemplo escolhido por Avritzer foi construído mais ou menos da mesma maneira que se constrói essas falsas notícias criadas a partir de relações indevidas entre causa e efeito.

Termino apenas lembrando que as transformações no Chile foram feitas graças a um conceito alargado de política no qual se encontra: força popular, resistência heroica contra forças policiais que perpetraram mais de 40 assassinatos, ruas queimando e partidos capazes de não criminalizar tais processos, mas de escutar e estar ao lado dos manifestantes. No mundo mágico de Avritzer, nada disso existe.

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos – Lacan, política e emancipação (Autêntica).

Nota


[1] Eis a lista dos artigos, em ordem cronológica:

Vladimir Safatle, “A liberação do passado”: https://aterraeredonda.com.br/a-liberacao-do-passado/]

Leonardo Avritzer, “Bastilha e Borba Gato”: https://aterraeredonda.com.br/bastilha-e-borba-gato/

Vladimir Safatle, “Por favor, da próxima vez façam uma nota de repúdio”: https://aterraeredonda.com.br/por-favor-da-proxima-vez-facam-uma-nota-de-repudio/

Leonardo Avritzer, “Entre o fogo na estátua e soltar uma nota: a ressignificação do espaço público”: https://aterraeredonda.com.br/entre-o-fogo-na-estatua-e-soltar-uma-nota-a-ressignificacao-do-espaco-publico/

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Leonardo Avritzer Ricardo Musse Jorge Branco Vanderlei Tenório João Lanari Bo Airton Paschoa Eugênio Trivinho Annateresa Fabris Marilena Chauí Gilberto Lopes Antonino Infranca Julian Rodrigues Luiz Roberto Alves Anderson Alves Esteves Leda Maria Paulani Yuri Martins-Fontes Ronald Rocha Michel Goulart da Silva Marilia Pacheco Fiorillo Ronaldo Tadeu de Souza Francisco Fernandes Ladeira Gilberto Maringoni José Costa Júnior Luiz Marques Boaventura de Sousa Santos Henry Burnett Eleonora Albano Bruno Machado Alexandre de Lima Castro Tranjan Carlos Tautz Caio Bugiato Otaviano Helene Paulo Martins Andrew Korybko Luiz Eduardo Soares Eleutério F. S. Prado Priscila Figueiredo Marcos Aurélio da Silva Lorenzo Vitral Francisco de Oliveira Barros Júnior Gerson Almeida Marjorie C. Marona Afrânio Catani Mariarosaria Fabris Luiz Bernardo Pericás Jorge Luiz Souto Maior João Feres Júnior Lucas Fiaschetti Estevez Daniel Costa Flávio Aguiar Berenice Bento Sandra Bitencourt Elias Jabbour Marcus Ianoni João Adolfo Hansen Ladislau Dowbor Leonardo Sacramento Andrés del Río Walnice Nogueira Galvão Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Claudio Katz Bernardo Ricupero Flávio R. Kothe Ricardo Abramovay Chico Whitaker Eugênio Bucci José Machado Moita Neto Rafael R. Ioris Fernão Pessoa Ramos Celso Favaretto Paulo Nogueira Batista Jr Salem Nasser Alexandre Aragão de Albuquerque Fernando Nogueira da Costa Anselm Jappe André Márcio Neves Soares Luiz Renato Martins José Micaelson Lacerda Morais João Paulo Ayub Fonseca Plínio de Arruda Sampaio Jr. Atilio A. Boron Paulo Fernandes Silveira Michael Roberts Tadeu Valadares Juarez Guimarães André Singer Sergio Amadeu da Silveira Antonio Martins José Raimundo Trindade Igor Felippe Santos Leonardo Boff Lincoln Secco Dennis Oliveira Mário Maestri Luís Fernando Vitagliano Thomas Piketty Michael Löwy Benicio Viero Schmidt Luiz Carlos Bresser-Pereira Érico Andrade Osvaldo Coggiola Renato Dagnino Rubens Pinto Lyra Eduardo Borges Marcos Silva Paulo Sérgio Pinheiro Rodrigo de Faria Marcelo Módolo João Carlos Loebens Carla Teixeira José Dirceu Daniel Brazil Vladimir Safatle Celso Frederico Slavoj Žižek Eliziário Andrade Manuel Domingos Neto Ari Marcelo Solon Gabriel Cohn Paulo Capel Narvai Dênis de Moraes Manchetômetro Bento Prado Jr. Matheus Silveira de Souza Heraldo Campos Chico Alencar Alexandre de Freitas Barbosa Tarso Genro Luciano Nascimento Armando Boito Jean Marc Von Der Weid Henri Acselrad Ricardo Antunes Francisco Pereira de Farias Alysson Leandro Mascaro Valerio Arcary João Sette Whitaker Ferreira Remy José Fontana Denilson Cordeiro Jean Pierre Chauvin Daniel Afonso da Silva Ricardo Fabbrini Luis Felipe Miguel Tales Ab'Sáber Milton Pinheiro Ronald León Núñez João Carlos Salles Samuel Kilsztajn Vinício Carrilho Martinez Liszt Vieira Fábio Konder Comparato Maria Rita Kehl Kátia Gerab Baggio Bruno Fabricio Alcebino da Silva José Luís Fiori Marcelo Guimarães Lima Luiz Werneck Vianna José Geraldo Couto Antônio Sales Rios Neto Everaldo de Oliveira Andrade

NOVAS PUBLICAÇÕES