Borba Gato, Aldo Rebelo e Rui Costa Pimenta

Charles Sheeler (1883–1965), Manhattan.
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Por LEONARDO SACRAMENTO*

Considerações sobe a esquerda e o identitarismo branco

O nacionalismo paulista

No dia dos atos contra Bolsonaro, em 24 de julho, a estátua de Borba Gato foi queimada por um Coletivo chamado Revolução Periférica. O ato organizado com aproximadamente 30 pessoas foi assumido pelo grupo. Paulo Galo foi preso arbitrariamente em uma sentença que explicita a relação entre prisão, tortura e delação, ou seja, preso justamente por não delatar os companheiros do Coletivo.

Contudo, um segmento minoritário da esquerda empreendeu uma cruzada contra a organização, classificando-a de “identitária”, o novo jargão da esquerda para atacar o que não compreende ou o que colide com os interesses do grupo político, com destaque para a eleição de 2022, em que nada pode sair do planejado para o retorno de Lula, inclusive revoltas populares, mesmo que pontuais, mas com grande alcance midiático. Em outro sentido, o ataque de “identitário” ao Coletivo também se expressou através da defesa da estátua e da figura do Borba Gato, transformado em herói, sobretudo na fala de Aldo Rebelo e Rui Costa Pimenta, apresentados com grande destaque pelo Portal 247, que (re)transmitiu, de forma contínua e abnegada, as entrevistas em reportagens ao longo da semana.

Podemos dividir esse tema entre o simbolismo da estátua e a defesa dos “anti-identitários”. Para compreender ambos, é necessário fazer um mergulho no que convencionaram conceituar de nacionalismo. Borba Gato, como se sabe, viveu e morreu antes da Independência, dos ciclos cafeeiro e escravagista em São Paulo, da Revolução de 1930 e da Revolta de 1932, em uma São Paulo que, na prática, não existia. Borba Gato morreu dois séculos antes de Afonso Taunay, responsável pelo Museu Paulista, aclamar, institucionalmente, em 1917, o sertanista como bandeirante e fundador paulista do Brasil. Não foi obra política de Taunay, ele apenas foi um meio de algo que já estava dado.

A estátua de Borba Gato somente seria inaugurada em 1963, em ampla ascensão da oposição a Jango e crescimento de organizações golpistas de extrema-direita, como o IPES, instaladas e capitalizadas pela elite paulista. Por que Borba Gato foi escolhido para representar, nesse momento histórico, pré-golpe de 1964, os paulistas? Por que foi alçado a herói? Mais importante do que compreender a vida de Borba Gato, é compreender por que a elite paulista, no começo da década de 1920, passou a financiar a ideia de que justamente a elite paulista de 1920 era a herdeira dos sertanistas de três séculos antes, de uma São Paulo que não existia, completamente diferente da província da segunda metade do século XIX, quando concentrou quase todos os africanos escravizados por meio do tráfico interprovincial? Completamente diferente do estado de São Paulo de 1920? Mais importante é saber o porquê, para que e como.

Borba Gato surge no século XX, na prática, como resultado de uma construção supremacista dos paulistas não somente sobre os negros e nativos, mas sobre as outras elites regionais. A província de São Paulo só assumiria alguma relevância política em meados da segunda metade do século XIX. Em 1922, Júlio de Mesquita Filho, proprietário do jornal O Estado de São Paulo, publicou um manifesto na Revista do Brasil, dirigida por Monteiro Lobato, chamado A Comunhão Paulista.[1]

A Comunhão Paulista foi um movimento, infelizmente pouco conhecido pela esquerda, de formação de uma elite política que seria responsável por guiar o país ao desenvolvimento, por ser naturalmente superior às outras elites e aos outros estados. Mas onde entram os bandeirantes? Entram na ideia de que o Brasil teria sido fundado e alargado por eles, sendo a elite de 1920 a herdeira natural da “bravura” e da “inteligência” dos verdadeiros fundadores do país. Logo, o próprio grupo do O Estado, a quem caberia dirigir o país. Disse Júlio de Mesquita Filho no manifesto: “A realização deste legado do passado há de, por força, mobilizar-lhe todas as regiões. (…) Somos fortes, somos ainda dignos do passado das bandeiras, justamente porque às enganosas vitórias da política militante, sabemos ainda preferir as rudes vitórias que pontilham a história da nossa evolução. As sadias emoções da vida livre da lavoura, das tentativas audaciosas de que todos os dias temos notícias, empolgam a visão segura e afoita do paulista, desviando-o da estagnação acabrunhadoramente niveladora dos nossos partidos políticos. Nos momentos capitais da história nacional, de São Paulo sempre partiu a palavra que haveria de decidir dos destinos da nacionalidade”.[2]

A Província de São Paulo, fundado por Júlio de Mesquita, o pai, era escravocrata e sobrevivia com anúncios de vendas de escravizados e de capitães do mato. O filho acreditava que a abolição, da forma como foi feita, teria sido um erro que fez “circular no sistema arterial do nosso organismo político a massa impura e formidável de 2 milhões de negros subitamente investidos das prerrogativas constitucionais” (A Crise Nacional).[3]

Alberto Sales, irmão de Campos Sales, escrevera Pátria Paulista em 1887, obra separatista que confiava aos paulistas superioridade intelectual, política e evolutiva; propunha a separação do estado, na prática para manter o escravagismo, sobretudo na região de Campinas, para que o estado, depois de transformado em desenvolvido, sem as amarras dos não desenvolvidos, voltasse à nação para guiar as outras regiões ao desenvolvimento. Foi nesse período histórico que essa elite, após a Revolta de 1932 e a sua aproximação a Getúlio, se tornara a elite hegemônica do estado, substituindo politicamente a velha oligarquia cafeeira, combalida pela crise econômica de 1929. A USP foi criada em 1934 para criar essa elite intelectual paulista ou “paulistanizada” que dirigiria o país: “considerando que a formação das classes dirigentes, mormente em países de populações heterogêneas e costumes diversos, está condicionada à organização de um aparelho cultural e universitário, que ofereça oportunidade a todos e processe a seleção dos mais capazes; considerando que, em face do grau de cultura já atingido pelo Estado de São Paulo, com Escolas, Faculdades, Institutos, de formação profissional e de investigação científica, é necessário e oportuno elevar a um nível universitário a preparação do homem, do profissional e do cidadão”.[4]

Em 1926, Fernando de Azevedo havia publicado, financiado pelo grupo de O Estado, o Inquérito sobre a Educação Pública em São Paulo. Ele defendia que o sistema de ensino deveria ser dividido em duas partes: um em que os trabalhadores se adequavam ao mundo do trabalho e outro voltado para as elites. No subsistema voltado para as elites, haveria uma nova divisão, entre ensino secundário para as classes médias e ensino superior para a formação das elites. As elites produziriam “a verdade”, as classes médias transmitiriam aos trabalhadores, que trabalhariam nas funções ideais e corretas para o desenvolvimento urbano e industrial. Toda a referência de Fernando de Azevedo era a República platônica, em que uma elite guiaria e discricionaria sobre o conjunto orgânico da sociedade.

Foi nesse momento que essa elite passou a lutar bravamente contra a imigração de nordestinos, vistos como seres que “enegreceriam” o estado novamente, após a grande imigração europeia, financiada como Política de Estado justamente para substituir o “elemento africano”. Por isso, na falta de opções, preferiam os japoneses – e aqui há uma longa história desde o Congresso Agrícola de 1878 e a sinofobia, reverberada pelo bolsonarismo –, um meio-termo entre negros e brancos na visão supremacista e cientificista do liberalismo da época, sobretudo após a vitória japonesa sobre os russos, em 1905.

Em 1935, o deputado estadual paulista Alfredo Elis Júnior, sociólogo e ex-aluno de Taunay, que, no ano, escrevera Jaraguá: romance de penetração bandeirante e, em 1924,O bandeirismo paulista e o recuo do meridiano, promotor da ideia da produção da mestiçagem eugênica ocorrida apenas São Paulo, nos moldes formulados por Euclides da Cunha em Os Sertões, defendia a imigração japonesa ao invés da imigração nordestina nos seguintes termos: “O nordestino tem sangue preto, e tem conformação osteológica diferente da nossa, transparecendo em seus crânios chatos e largos, em sua cor de charuto a grande influência de índio. O nordestino não tem outro estoque racial, não se fixa, é volante. Felizmente o nosso sistema racial está livre de sofrer a influência dessa gente. O japonês é incalculavelmente melhor para nós e para o nosso corpo social, pois existe entre nós e os japoneses mais afinidades do que entre nós e os nordestinos”.[5]

Os negros e nordestinos (negros) eram fatores exógenos à mestiçagem eugênica paulista. Admitia-se o melhoramento. Para tanto, os imigrantes europeus vieram ao Brasil como fruto de uma política supremacista e segregacionista, em que o africano deveria ser substituído. Borba Gato é a expressão em monumento do mito da mestiçagem eugênica paulista, que produziria um branco. Quem lê o artigo e possui ascendência europeia, é importante que saiba que está aqui, no Brasil, especialmente no Sudeste e no Sul, por dois motivos: exportação/queima de capitais e de força de trabalho no continente europeu e supremacismo brasileiro, o qual financiou a vinda de sua família e concedeu auxílios financeiros para que São Paulo não “enegrecesse”.

Ou seja, na Europa foram repelidos/expulsos por não serem os tipos ideais ao desenvolvimento nacional, seja pela pobreza e miséria, seja pela racialização (raça) – é o caso, por exemplo, dos italianos do sul, considerados não brancos pelos italianos do norte –; já a elite brasileira, com grande protagonismo da paulista, considerava impossível desenvolver o país com negros, devendo o Estado imigrar europeus (mesmo os não brancos nacionais do sul da Itália, aqui considerados brancos) e desaparecer com o negro. Uma espécie de “solução final” evolucionista. E, segundo dados mais atuais das relações raciais no século XX, muito provavelmente os pais, avós e bisavósdos leitores tenham sido grandes promotores dessa racialização, garantindo a segregação de espaços, empregos e estudos.

A título de exemplo do que se possui hoje, Karl Monsma, historiador da UFSCar, constatou linchamentos, espancamentos e enforcamentos de negros por brasileiros brancos e imigrantes italianos em São Carlos (SP) com alusão a KuKluxKlan no começo do século XX. Segundo o historiador, “as semelhanças nos elementos rituais de linchamento”, como “a mutilação de corpos das vítimas e a tendência de pendurá-los de árvores nas praças centrais nas cidades do interior, sugerem que os linchamentos brasileiros imitavam os linchamentos norte-americanos descritos nos jornais”.[6]

Portanto, o racismo está longe de ser um resíduo da escravidão, ou um “identitarismo” indevido e importado, como defendeu Aldo Rebelo. No interior paulista – e na capital paulista –, havia, de fato, medidas segregacionistas que proibiam, oficialmente e extraoficialmente, a entrada de negros em clubes, escolas e salões, por exemplo, ao mesmo tempo que garantia uma espécie de cota fechada aos imigrantes europeus e brasileiros brancos sobre o capital e o trabalho, em que brancos empregavam brancos e imigrantes empregavam imigrantes – é o caso das indústrias Matarazzo, que iniciaram a contratação de negros no interior paulista apenas em 1970, quando da derrocada fiscal e da necessidade de rebaixamento salarial.

A imigração europeia fazia parte da construção do melhoramento da raça paulista, a mestiçagem eugênica paulista, que eliminava a passos largos o elemento africano.

Alfredo Elis Júnior, em Populações Paulistas, obra de 1934, compreendia que, nos tempos coloniais, “o negro era muito mais numeroso do que o branco”, que, mesmo com o término do “tráfico africano”, reproduziam-se “com grande fecundidade”. Todavia, “essas condições evoluíram em São Paulo”, pois “recebemos grandes massas imigratórias da Europa, e os negros com seus mestiços começaram então a minguar”. Com “a luta social, caíram em decadência”. Por fim, “a diminuição alarmante da natalidade e o aumento da mortalidade provocam seu desaparecimento”.[7] De fato, a população negra no começo do século XX registrou crescimento demográfico negativo.

Desde então, tudo deveria ser referenciado naquilo que foi criado para ser tipicamente paulista: os bandeirantes. Rodovias, escolas, rádios e TVs com essas referências são os detalhes desse processo. Estátuas, idem!Como complemento do bandeirantismo, o jesuitismo,uma paixão de Fernando de Azevedohomenageada pela escolha do nome da Fundação Padre Anchieta, fundado por Roberto Costa de Abreu Sodré, governador à época preocupado com a “continuidade revolucionária” de 1964.[8] Em certa medida, a ascensão dos bandeirantes deve-se a um processo semelhante de ascensão dos farroupilhas em Porto Alegre na mesma época. É uma obra de meia dúzia de autoproclamados intelectuais da genialidade e da raça paulistas(sic!).

Não há nada de popular, a despeito de sua propaganda oficial. Era o comum da época, pois todo Estado-Nação formado no século XIX teve e tem uma dimensão racial, como mostram Alemanha e os Estados Unidos. É o mesmo papel que o germanismo cumpriu para o nazismo e os peregrinos escolhidos cumpriram para os norte-americanos anglo-saxões, como evidencia Domenico Losurdo em A Contra-História do Liberalismo.

Portanto, queimar ou não estátuas é uma disputa de projeto de poder, uma disputa sobre a nacionalidade, da mesma forma que a sua construção e imposição, pois as estátuas, sobretudo a do Borba Gato, representam um projeto de poder e uma dada nacionalidade. Construir e destruir estátuas e representações sociais e simbólicas são expressões da luta de classes. Borba Gato é uma representação racializada e neocolonial. É realmente impressionante ver pessoas e organizações de esquerda, ou autoproclamadas, condenarem o ato pelo seu conteúdo, simplesmente o relegando ao identitarismo. Até poderia haver uma discussão (equivocada) sobre o dia, mas jamais sobre o conteúdo, especialmente com argumentos baseados na “arte” e na “memória”, como se fossem entes desprovidos de relações de poder.

Quando aconteceu, por óbvio, fui ver a posição do… Estadão. Afinal, o negócio queimado é, também, um legado familiar. Para a minha surpresa, à luz daquilo que se deve esperar, o Estadão não esperneou. Tampouco a Folha de São Paulo. Penso que ambos perceberam que não é mais possível manter o mito, e, de certa forma, disputam o agora com um discurso supostamente mais “plural”. Dória se restringiu a uma nota genérica sobre “vandalismos”. Entretanto, a julgar pela investigação e pelas decisões judiciais do Tribunal de Justiça, o comportamento talvez seja mais teatral.

Os bolsonaristas, segundo os críticos de esquerda alarmados, chamaram o ato de terrorista: é o esperado no jogo. Não preciso dizer que a posição pública dos descendentes dos pais da ideia me fez ficar ainda mais surpreso com os “defensores de esquerda” da estátua e da memória de Borba Gato. Esperava ouvir e ler algo semelhante vindo da família Mesquita.

Aldo Rebelo e o Integralismo

Publicamente, Aldo se notabiliza em defender os generais, baluartes do bolsonarismo e entranhados no orçamento federal, os grandes fiadores de Bolsonaro, de sua família e dos genocídios pandêmico e policial sobre os trabalhadores, sobretudo negros. Defende que os militares são nacionalistas, mesmo que tenham entregado a base de Alcântara para os EUA e as relações com as Forças Armadas e os serviços de espionagem norte-americanos sejam explícitas.

Quando deputado, foi o responsável pela alteração do Código Florestal, acusando todos os contrários de serem financiados por grandes potências, assim como faz o bolsonarismo com quem denuncia o desmatamento e as queimadas. Aldo faz coro, sobretudo em atividades mineradoras em terras indígenas e na acusação contra organizações que atuam na preservação do meio ambiente na Amazonia. Hoje também se notabiliza por criar uma pauta em concordância com movimentos integralistas, que, ao que tudo indica, depositam-no cada vez mais alguma estima. Guardadas as devidas proporções, Aldo é o nosso Policarpo Quaresma ao inverso, um nacionalista acrítico que enxerga Floriano Peixoto no identitarismo, não nos militares e no bolsonarismo.

Aldo milita em um movimento (ultra)nacionalista chamado O Quinto Movimento. Segundo esse movimento, em livro escrito pelo próprio Aldo, “o objetivo final deste identitarismo é a desconstrução da mestiçagem como expressão étnica do Brasil, que adotaria o modelo norte-americano de sociedade bicolor de pretos e brancos”.[9] A capa desse livro consiste em Aldo olhando para cima, com pose impositiva, lembrando a de Getúlio Vargas. O discurso não é só conservador, mas reacionário, com ampla concordância discursiva de Bolsonaro e de organizações da extrema-direita.

Ele continua: “o problema é que a mestiçagem no Brasil é muito mais que a promessa da raça cósmica na feliz expressão do filósofo mexicano José Vasconcelos”. A noção de “raça cósmica” foi utilizada em um Manifesto de 1929, uma das muitas dissidências da Semana de Arte Moderna de 1922. Essa dissidência, organizada no Manifesto Verde-Amarelo, foi liderada por Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo, com grande impacto em… Plínio Salgado e no movimento integralista. Esse movimento defendia que a nacionalidade estava dada no tupi, um brasileiro não radical, “antijacobino”, e não no tapuia, um índio não civilizado. O antijacobinoconsiste em estrangeirismos indevidos à índole nacional, como o comunismo e o socialismo, ou qualquer “radicalismo”. O tapuia, que significa inimigo, é um constructo elaborado por José de Alencar, em Iracema. Alencar também acreditava em uma nova raça, baseada nos estudos de Humboldt sobre o surgimento de uma nova língua na América, porém, para isso, haveria a necessidade de o negro desaparecer no novo homem americano, branco e superior. “A próxima civilização do universo será americana como a atual é europeia. Essa transfusão de todas as famílias humanas no solo virgem deste continente ficara incompleta se faltasse o sangue africano, que, no século VIII, afervorou o progresso da Europa”.[10]

Por isso Oswald de Andrade se pergunta “tupi or not tupi” no Manifesto Antropofágico e Gilberto Freyre narra os seus “estupros” de forma adocicada e, absolutamente, necessária. Esse movimento trabalhou ativamente no Estado Novo na perseguição a comunistas, considerado uma ideologia estrangeira, antibrasileira e antipovo. O Manifesto Verde-Amarelo se fundamentava na “opinião bem fundamentada do sociólogo mexicano Vasconcelos”, que defendia o surgimento, “entre as bacias do Amazonas e do Prata”, da “‘quinta raça’, a ‘raça cósmica’”, que realizaria “a concórdia universal”.[11]

Como se nota, Aldo está dialogando abertamente com a pauta fascista e integralista, de um manifesto feito em 1929 por protofascistas que trabalhariam no Estado Novo. Aldo está no fascismo. Se ele percebe ou não, é outra história. Ele está se referenciando em documentos importantes para o movimento integralista, sob uma noção abertamente protofascista. Diz Aldo em seu livro-manifesto: “Diante da ofensiva contra a mestiçagem por parte do mercado, da mídia e da academia cabe ao Estado a tarefa de defendê-la difundindo-a e valorizando-a no sistema educacional, nas Forças Armadas e nos espaços públicos ainda não dominados pelo identitarismo”.[12]

Em suma, caberia ao Estado, sobretudo às Forças Armadas e ao sistema educacional, combater o elemento anti-brasileiro, o identitarismo, ou, para usar o jargão da extrema-direita, o “marxismo cultural”. Salienta-se, a tarefa caberia a um Estado burguês. Inclui, além do mercado e da mídia, a academia, que estaria em conluio com as outras duas esferas. Mas, na esquerda, parece ser proibitivo constatar o óbvio em nome da tradição. Corramos o risco: Aldo está com os dois pés no protofascismo, em pontos de contato com o bolsonarismo.

O bandeirante Rui Costa Pimenta

Rui é um desbravador. Como tal, assim como Júlio de Mesquita Filho, a extrema-direita do IPES, proclamou-se bandeirante. Como para com Neymar, o menino Ney, Rui conceituou os bandeirantes símbolos nacionais anti-imperialistas. Diz o bandeirante temporão: “A construção da nação brasileira é produto, em um certo sentido, da luta de classes. É um progresso que foi alcançado apesar de toda a pressão contrária. Para o colonialismo e o imperialismo, o ideal é que as nações oprimidas sejam pequenininhas e fracas. Eles dividem os países como se fosse tirando uma fatia de bolo, como na Iugoslávia e na antiga União Soviética. Eles querem países pequenos e fracos. O Brasil é um país grande, e isso é um progresso muito grande”. (…) “Eles foram instrumentos do progresso econômico nacional e abriram o caminho para a construção do Brasil. Se o Brasil fosse dividido em cinco países, a América Latina seria muito mais oprimida do que hoje. O Brasil é um estorvo na dominação política, assim como a Índia e a China”.[13]

Walter Pomar pescou,[14] de sua intragável entrevista ao Portal Brasil 247, o dado essencial da personalidade de Rui na seguinte afirmação: “Eu sou paulista e paulistano, aqui em São Paulo o bandeirantismo é o símbolo do estado de São Paulo”. A dedução, se for possível, é a seguinte: Todo paulista é bandeirante. Rui é paulista, ou melhor, paulistano, porque paulista não basta. Logo, Rui é bandeirante. Como disse um grande amigo ao ler essa pérola, “pensei que Rui fosse operário, trabalhador e proletariado antes de ser paulista”.

A mistura sem sentido e bizarra de paulistanismo com luta anti-imperialista, misturando uma ideia apagada de Brics, tamanho do território e bandeirantismo, ainda cai na armadilha da falsificação histórica: os bandeirantes não tiveram relação alguma com a manutenção do território. Segundo Vitor Nunes Leal, em Coronelismo, Enxada e Voto,[15] a centralização se deu no Império após o golpe da maioridade e a introdução da Guarda Nacional para debelar as revoltas regenciais. Se houve algum momento que o Brasil poderia se desmembrar, foi quando as revoltas regenciais impuseram pautas consideradas deletérias aos escravagistas. O medo era que, se uma província se tornasse independente, os escravizados poderiam fugir, caso ela declarasse a abolição aos escravizados, provocando um desabastecimento de força de trabalho nas províncias escravagistas – irônica a análise culturalista e antimarxista de Rui.

Aconteceu algo similar entre Rio Grande do Sul e Uruguai, em que, inclusive, um dos pontos entre os farrapos e a coroa para o fim do conflito foi o da assinatura de acordos com o Uruguai para a extradição de africanos. Foram cinco ao todo – é a liberdade farroupilha. Borba Gato havia morrido mais de cem anos antes. Estaria Rui se contrapondo às revoltas regenciais, como a Revolta dos Malês, defendendo a unidade em favor do escravagismo, o único elemento, de fato, responsável pela manutenção do território nacional?

Estaria Rui defendendo a Guarda Nacional e a repressão aos movimentos libertadores da década de 1830, sobretudo os populares? O último estado a ameaçar com a independência ou a autonomia regional, para manter o escravagismo, foi justamente São Paulo, como prova A Pátria Paulista. Na Olímpiada de História, para as escolas de ensino fundamental e ensino médio, os paulistas costumam ter desempenho pífio. O protagonismo é dos cearenses, pernambucos e potiguares. Analisando-se Rui, o identitário paulista e paulistano, o fracasso dos estudantes paulistas fica explicado.

Eis o identitarismo branco

Mas o que permite que Aldo e Rui classifiquem o Coletivo de identitários? Rui chegou a dizer que “foi coisa de intelectuais pequeno-burgueses”. Aldo os chamou de “canalhas, bandidos, assassinos da memória nacional” e “filhinhos de papai de ‘esquerda’”. Essa conjuntura fluída e desconexa da realidade da esquerda permite indagações tão desconexas quanto, como a de Leonardo Avritzer, que questionou “a linguagem desse questionamento e se a utilização da violência como método é a linguagem correta da disputa histórica”.[16] O que permite Aldo Rebelo se identificar com a “raça cósmica” do Integralismo? O que permite Rui Pimenta Costa se identificar paulista? O que permite identificar bandeirantismo com nacionalidade? O que permite vincular identitarismo, como algo pejorativo, liberal e antirrevolucionário, somente à identidade africana e negra? Identitarismo branco, posicionando-o como unidade universal e indivisível. Criticar a fogueira pedagógica de Borba Gato não é só burrice, mas oportunismo com pitadas de identitarismo branco, liberalismo, racismo, neocolonialismo e protofascismo.

*Leonardo Sacramento é doutor em Educação pela UFSCar e presidente da Associação dos Profissionais de Ensino de Ribeirão Preto. Autor do livro A universidade mercantil: um estudo sobre a universidade pública e o capital privado (Appris).

Notas


[1] Sobre o tema, ver o excelente A universidade da Comunhão Paulista, de Irene Cardoso. CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. A universidade da Comunhão Paulista (o projeto de criação da Universidade de São Paulo). São Paulo: Editora Autores Associados/Cortez Editora, 1982.

[2]MESQUITA Filho, Júlio. A Comunhão Paulista. Revista do Brasil, 1922, ano VII, v. XXI, nº 84.

[3]MESQUITA FILHO, Júlio. A Crise Nacional. In:CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. A universidade da Comunhão Paulista (o projeto de criação da Universidade de São Paulo). São Paulo: Editora Autores Associados/Cortez Editora, 1982, p. 34.

[4] ESTADO DE SÃO PAULO, Decreto-Lei n. 6.283, de 25 de janeiro de 1934. Decreto-Lei de fundação da Universidade de São Paulo.

[5] BORGES, Selma Santos. O nordestino em São Paulo: desconstrução e reconstrução de uma identidade. Dissertação apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2007, p. 66.

[6] MONSMA, Karl. A reprodução do racismo: fazendeiros, negros e imigrantes no Oeste paulista, 1890-1914. São Carlos: EdUFSCar, 2016, p. 138.

[7] ELLIS JÚNIOR, Alfredo. Populações paulistas. São Paulo, Editora Nacional, 1934, p. 96.

[8] Sobre o governador, ver http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/roberto-costa-de-abreu-sodre.

[9] REBELO, Aldo O quinto movimento: propostas para uma construção inacabada. Porto Alegre: Jornal JÁ Editora, 2021, p. 10.

[10] ALENCAR, José de. Cartas ao imperador. In: Cartas de Erasmo/José de Alencar; organizador José Murilo de Carvalho. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2009, p. 293.

[11] MANIFESTO VERDE-AMARELO. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 1983.

[12]  REBELO, Aldo O quinto movimento: propostas para uma construção inacabada. Porto Alegre: Jornal JÁ Editora, 2021, p. 197-198.

[13] Disponível em https://www.brasil247.com/brasil/bandeirantes-foram-instrumento-do-progresso-nacional-diz-rui-costa-pimenta.

[14] Disponível em https://www.pagina13.org.br/rui-pimenta-e-borba-gato/.

[15] LEAL, Vitor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[16] Disponível em https://aterraeredonda.com.br/bastilha-e-borba-gato/.

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