Por LUIZ ROBERTO ALVES*
Os possíveis candidatos para 2022 são presas da velha mansão liberal, que não tem o que dar à totalidade do país
Não se trata de ver os candidatos à direção da República como coisas. Trata-se, a despeito do uso do que em lugar de quem, de levar a sério um pequeno texto de Celso Furtado, publicado em 1984.[1] Nele, o economista símbolo da Sudene e amante da arte, começa o seu texto invocando um tempo de crise no qual as nossas identidades (ou identificações) são questionadas. Vale citá-lo: “Nos momentos de crise, quando todas as referências parecem incertas, cobra plena validade a velha pergunta ‘que somos’, como se o homem necessitasse de ser desafiado para tomar consciência de que em seu futuro sempre estará embutido um elemento de mistério, algo irredutível à sua experiência vivida. Se perguntamos ‘que somos’ é que estamos em crise de identidade, sentimo-nos incômodos na pele ou dentro da roupa que estamos usando”.
Furtado analisou as “certezas” dos anos de 1920 a 1950, com industrialização e impactos urbanísticos, a despeito de se manterem sempre com pés de barro, pois não satisfizeram senão as classes abastadas. Pior ainda é que a partir dos anos de 1980 ele viu ainda maior incômodo, a própria ruína do velho sistema. Furtado mostra que “a nova mansão criada naquele sistema de industrialização e urbanismo exibe gretas em todas as suas paredes”. Sintetiza: crescimento econômico não é desenvolvimento. Pode não ser nem parte dele. Em nosso caso, perfeito. Contemporaneamente, muito pior, consideradas as pouquíssimas riquezas e a enormidades das pobrezas em ritmo de exploração cibernética, vigilâncias de inteligências algorítmicas e acúmulos de poder impensados anteriormente. Furtado e outros-outras abriram os canais da análise e as gretas já se tornaram abismos.
Não se carece de fazer novas análises sociopolíticas, tão primorosamente vistas em A Terra é Redonda; basta saltar ao presente para afirmar que todos os fatores do tal crescimento econômico pressionam e violentam o lar comum, Gaia, e como mostram tanto os estudos internacionais quanto a ampla juventude ligada nos movimentos ambientalistas em suas redes. Para dar um exemplo forte, o agronegócio brasileiro, repleto de áulicos e puxa-sacos, mais o desmatamento e a violência sobre comunidades tradicionais, jogam e jogarão para cima todos os números que nos levarão a sucessivas destruições decorrentes do aquecimento local e global. Sobre isso, a impressão corrente é que preferimos as destruições à redenção ambiental. A ver. Ainda há quem ouça a senhora Teresa Cristina e sua trupe. Até quando?
O que são os candidatos? Importam menos os seus nomes. A julgar pelos comentários pontuais ouvidos e lidos aqui e ali, nenhum deles se sustenta em sua pele e em suas roupas. Sacolejados pela velha mansão e pelas novas, reais e virtuais, cheias de feridas sociais, não haverá neles discurso verdadeiro porque não há repertório de linguagem política capaz de compreender o Brasil real e profundo, inclusive em suas facetas cibernéticas para, em seguida, enunciá-lo ao povo dividido e reprimido nas combinações da velha Casa Grande e da nova.
Um repertório de linguagem política é constituído de forças históricas, éticas, estéticas e ecológico- ambientais, bem mais importantes do que os dados econômicos, que se lê e se houve em todo lugar. Quando aquelas forças voltam a visitar os dados econômicos em leitura histórica e os encaram, o repertório fica prenhe do impossível e não há verdade possível nas falas dessas pessoas que jamais tiveram uma compreensão excepcional da encrenca descomunal do país.
O caminho fácil e esperado (quer na bipolaridade, quer na presença do tertius) é o da busca mútua de defeitos, expectativa de tropeços e o do discurso ameno, que toque em pontos já há muito arranhados e que somente aumentaram as conhecidas desigualdades. Um jogo de espelhos e maquiagens até a definição das urnas.
Naquele texto, Furtado mostrou que o alto desempenho das forças estéticas e artísticas não significa avanço social e político no momento de seus duros embates, porque pode significar o brilho na decadência, embora seja um ponteiro do futuro. De fato, nada será possível sem tremenda vontade política coletiva que mova todas as forças criativas do povo, o que não está, nem de longe, visível. As forças históricas, éticas e ambientais não comporão o discurso político para 2022, porque iriam, se enunciadas, romper completamente com a velha mansão capitalista, muitas vezes dotada da competência de uma Fênix e, portanto, portadora de confiabilidade até daqueles que dizem o contrário da boca para fora.
Os possíveis candidatos para 2022 são presas da velha mansão liberal, que não tem o que dar à totalidade do país, mas parece que tem a dar a quem porta os mitos de interesse. O parecer virou enunciação definitiva no universo cibernético, sob a sanha algorítmica.
Talvez a fala política de 2022 seja a mais débil da República. Ninguém terá forças para saltar sobre o tsunami do horror e da mediocridade criado desde 2016. Enquanto o horror se estabelecia, o universo ciber-capitalista criava novas engenhocas de domínio, que superam o entendimento da grande maioria da população. Aquela vontade política a mover forças criativas das raças do país diverso precisa passar por um pessach político, a ressurreição. Isso Furtado não previu. Confiou na Cultura.
O que é mais plausível é que se proponham tabiques, fitas isolantes e esparadrapos a favor da Mansão desvairada. Com o devido apoio dos que se desmancham pelo poder. As grandes maiorias cumprirão o ritual, ainda que aqueles que estão mal em suas peles (a despeito de não confirmarem) façam o discurso dos esparadrapos da ordem liberal-capitalista. E encontrem boas justificativas para tal.
Que somos? Que são os candidatos para 2022?
A questão remete à reflexão profunda sobre a identidade. Se não, num primeiro momento, de todos os brasileiros e brasileiras, certamente das lideranças políticas. Ocorre que cada suposto líder político teria de encontrar e enunciar, em alto nível (para lembrar Celso outra vez), quais são os valores permanentes das nossas culturas, que se movem nas urdiduras da história, entre solavancos e sobressaltos? E se essas pessoas são de fato líderes, as respostas engatariam a imersão deles numa descoberta que levasse, ato contínuo, a aquilatar as vontades políticas para a transformação cultural criativa movida pelos valores revelados na busca mais sincera, a começar pela negação de qualquer remendo na Casa Grande que infelicitou incontáveis gerações e produziu, pela sua própria existência, milhões de senzalas.
Nenhuma expectativa, pois, diante do que são, hoje, os candidatos. Nem mesmo das eleições proporcionais. Talvez tenhamos de esperar décadas até que os atos eleitorais sejam atos ecológicos.
Abertas as fendas para justificativas, acordos, conformismos, aproximações sem norte e negócios, segue a Mansão avariada em seu brilho de neon, pronta a, novamente, encher de brilho a alcova dos vitoriosos. O país real continua a desafiar pela interpretação de suas culturas.
O Brasil não conhece o Brasil. E se horroriza de tentar um caminho novo.
*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.
Nota
[1] Celso Furtado. “Que somos?”. In: Revista do Brasil.