Por CARLA TEIXEIRA*
As lideranças e os partidos de esquerda precisam discutir projetos para modernizar as três armadas e profissionalizar a formação a fim de afastar os militares da política
Ao discutir a possibilidade de Jair Bolsonaro efetivar um “golpe” contra as instituições, é importante considerar que isso já aconteceu, em 2016, quando a presidente Dilma Rousseff foi submetida a um fraudulento processo de impeachment. Dar um golpe é como abrir uma porta sem saber o que há do outro lado. No nosso caso, havia Bolsonaro.
Mau militar, bom miliciano e parlamentar medíocre, Jair ofereceu às Forças Armadas (FA) aquilo que elas jamais tiveram após o fim da ditadura militar: a legitimidade do voto para voltar ao poder. Contando com um sistema partidário fragmentado e uma classe política devastada pelas investidas do poder judiciário -a operação Lava Jato prendeu ilegalmente Lula, líder nas pesquisas -, Bolsonaro e os milicos voltaram à presidência sem precisar de tanques nas ruas. A “tutela militar”, instalada com a fundação da República (1889), parecia assegurada, com garantias de expansão sobre o Estado e as instituições.
No entanto, a pandemia do novo coronavírus escancarou o despreparo do Poder Executivo para lidar com a situação de crise. Generais e Oficiais, ocupantes dos principais cargos no governo, agiram com indiferença e incompetência em suas funções. O ministério da Saúde, comandado pelo general Pazuello, da Ativa, é o exemplo mais doloroso dos custos de ter militar sem expertise em cargo estratégico. Até aqui, foram quase 600 mil vidas de brasileiros e uma crise sem precedentes desde a redemocratização. Como a conta sempre chega, a última pesquisa Poder Data mostrou um aumento na parcela da população que avalia o trabalho das forças armadas como ruim/péssimo e uma queda nos índices de ótimo/bom. Tudo isso reflete também a ação da CPI do Genocídio, cujas revelações escancararam para o público “a banda podre das forças armadas”: Oficiais corruptos que tentaram lucrar com a compra de vacinas enquanto brasileiros morriam aos milhares todos os dias. Os Oficiais responsáveis foram chamados a dar explicações. Mentiram desbragadamente e jogaram na cara de toda a sociedade que a “palavra de fé pública”, garantida aos militares, não passa de licença para delinquir.
Daí que surgem as ameaças de golpe, estória de voto impresso e desfile de sucatas para ameaçar (?) a sociedade. Cedendo à “tutela militar”, o judiciário convidou integrantes das forças armadas para compor uma “Comissão de Transparência Eleitoral”, notícia que só veio a público por descuido de seu realizador, o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso- como se militares profissionais tivessem qualquer coisa a ver com processo eleitoral para terem a legitimidade de compor uma comissão dessa natureza(!). Tudo isso nos mostra que a união das instituições que deram o golpe, em 2016, apesar de abalada, não foi rompida. Prontamente, cinco ex-presidentes buscaram consultar os chefes militares sobre a possibilidade de um golpe que impeça as eleições de 2022. Os Oficiais afirmaram que o pleito irá acontecer e a posse será garantida. Minimizaram a participação de Bolsonaro em solenidades e formaturas militares com sinais de que não haverá quebra de hierarquia. Levantaram, todavia, a possibilidade de que o mesmo não ocorra com as Polícias Militares, contaminadas pelo bolsonarismo e a milícia, sujeitas a agitações que possam tumultuar o processo.
Convém lembrar que os militares estão assegurados em salários, cargos, benefícios e orçamento, de modo que há muito a perder ao sair do governo, principalmente agora que as instituições avançam para punir os milicos responsáveis pelos crimes da pandemia. Assim, não se pode descartar a possibilidade de que o plano seja insuflar Bolsonaro em suas ameaças golpistas, participando e sendo conivente com cada ato. Ampliar a tensão política até que seja inevitável o motim de milicianos e radicais neofascistas que querem fazer aqui o Novo Capitólio. Neste cenário, as forças armadas “profissionais e comprometidas com a Constituição e a democracia”, surgiriam como garantidoras “da lei e da ordem” (de acordo com o artigo 142 da Constituição) debelando os sublevados e carimbando para si o heroísmo do ato cívico que é premiado com outra saída conciliada do poder, sem que haja punições pelos crimes cometidos durante a pandemia. A tática política dos milicos é sempre a mesma: criar o problema para, em seguida, se apresentar como solução.
As Forças Armadas devem servir ao Brasil e não o contrário. As lideranças e os partidos de esquerda precisam discutir projetos para modernizar as três armadas e profissionalizar a formação a fim de afastar os militares da política, colocando um basta à secular “tutela militar”. Dado o inevitável desgaste de credibilidade das FA constatado junto à sociedade, o momento político nunca foi tão propício. A população precisa conhecer e adquirir consciência sobre as consequências nefastas da promiscuidade entre poder militar e poder político. Claro que há setores da sociedade civil que têm medo ou até mesmo apreciam a famigerada “tutela militar”, em muito por ela garantir seus interesses de grupo e classe. Mas o confronto é inevitável e, ao considerar o alerta que levou o general Braga Netto, advertido que poderia ser preso se tentasse impedir as eleições de 2022, pode ser que algo esteja mudando em nossa sociedade. Tomara.
*Carla Teixeira é doutoranda em história na UFMG.