Por FELIPE MARUF QUINTAS*
Resposta à tréplica de Leonardo Sacramento
Deploro que o Leonardo Sacramento – em sua tréplica intitulada “Bandeirantes e bandeiritismos”, em resposta à minha réplica “Borba Gato e os bandeirantes” ao seu artigo “Borba Gato, Aldo Rebelo e Rui Costa Pimenta”– lance mão, reiteradas vezes, de uma tática infeliz cada vez mais recorrente, a tentativa (frustrada, nesse caso), de intimidação moral. Como todo militante, mais apaixonado do que reflexivo, ele se autoatribui uma superioridade moral e tenta passá-la como superioridade epistemológica. Porém, da mesma forma que nada indica que ele se posiciona “do lado certo da história”, também nada indica que ele tenha os melhores argumentos, como se verá ao longo deste artigo.
Sem qualquer compromisso com a factualidade, ele, no subtítulo, alcunha a minha réplica de “integralista”, esvaziando o conceito do seu significado histórico e transformando-o em instrumento casuístico de luta moral.
Ao longo do texto, ele faz o mesmo ao sugerir que eu e o Quinto Movimento seríamos adeptos do “eugenismo”, do “negacionismo”, do “protofascismo”, do “reacionarismo”, de todos esses “-ismos” que, no léxico sacramentiano, substituem os xingamentos vulgares, cujo calão o autor considera impróprios para alguém da sua titulação acadêmica.
Muito estranho em se tratando de alguém que, no mesmo subtítulo, reivindica o “materialismo”, uma proposta que pouco ou nada tem a ver com o seu texto. Mas não seria esse o único descompasso do autor com a metafísica por ele mesmo esposada. Tampouco com o próprio texto de sua autoria que iniciara a presente discussão.
Optei, nessa quadrúplica, por enumerar as observações conforme a ordem presente na tréplica de Sacramento. Por questão de economia textual, priorizo as questões concernentes ao debate histórico objetivo, deixando de lado, sempre que possível, os julgamentos morais diversionistas proferidos por Sacramento.
Quanto à existência de São Paulo, Sacramento é bem claro no seu primeiro artigo: “Borba Gato, como se sabe, viveu e morreu antes da Independência, dos ciclos cafeeiro e escravagista em São Paulo, da Revolução de 1930 e da Revolta de 1932, em uma São Paulo que, na prática, não existia […] Mais importante do que compreender a vida de Borba Gato, é compreender por que a elite paulista, no começo da década de 1920, passou a financiar a ideia de que justamente a elite paulista de 1920 era a herdeira dos sertanistas de três séculos antes, de uma São Paulo que não existia, completamente diferente da província da segunda metade do século XIX, quando concentrou quase todos os africanos escravizados por meio do tráfico interprovincial? Completamente diferente do estado de São Paulo de 1920?”
Demonstrei a ele, então, a existência de São Paulo anteriormente à sua modernização agroindustrial dos séculos XIX e XX e a sua relação não apenas com os bandeirantes/sertanistas, mas com o Brasil, de modo a evidenciar a importância das bandeiras paulistas para todo o Brasil, em sua inteireza histórica.
Enquanto Júlio de Mesquita pensava São Paulo acima do Brasil e as bandeiras como um fenômeno exclusivamente paulista no sentido do atual estado de São Paulo, eu assinalei a importância de São Paulo dentro do Brasil e as bandeiras paulistas como um fenômeno nacional, não limitado a um único estado. Por incrível que pareça, Sacramento toma as palavras de Júlio de Mesquita pelo seu valor de face para inverter o sinal e afirmar que o bandeirantismo não passa de um mito da elite paulista. Ironicamente, para o materialista Sacramento, a realidade material não importa, apenas as “narrativas”, como se fossem uma realidade à parte, mais real que o mundo material.
Como havia afirmado na minha réplica, é natural que, dada a importância do bandeirantismo, seu legado tenha sido disputado por diferentes grupos sociais e políticos. O que não é normal é o historiador ou qualquer outro estudioso ignorar a realidade em si e combatê-la em função das narrativas equivocadas e descontextualizadas criadas ao longo do tempo.
Em seguida, Sacramento afirma que eu ignoro “retumbantemente” o escravagismo e, por tabela, a “luta de classes” entre os escravos e os senhores. Ele não se dá conta, entretanto, que não foram os bandeirantes os responsáveis pelo escravagismo, tampouco era ou poderia ser a escravidão o modo de produção dominante nas bandeiras. Sendo elas nômades por definição e tendo praticado a policultura de subsistência em pequenos lotes de terra continente adentro, o escravismo, sedentário por definição e tendo sido adotado, sobretudo, em grandes unidades fundiárias voltadas à exportação, era impraticável no regime social das bandeiras.
Evidentemente, algumas bandeiras participaram do apresamento de negros fugidios e da destruição de quilombos. O que ressaltei, contudo, foi a complexidade do fenômeno. Nem as bandeiras eram “brancas”, nem os quilombos eram “negros” – havia pessoas de todas as cores e origens tanto em umas quanto em outras, como é amplamente conhecido. A bandeira de Domingos Jorge Velho responsável pelo esmagamento de Palmares, por exemplo, era composta em sua maioria de indígenas rivais daqueles que compunham o quilombo. A dicotomia racialista adotada por Sacramento para interpretar a história brasileira dos séculos XVI, XVII e XVIII é, assim, um anacronismo, anátema para o historiador.
Se o critério de “cancelamento” de todo um grupo histórico, como os sertanistas paulistas, se basear na participação de alguns dos seus exemplares na escravidão comercial transatlântica, teríamos que cometer a infelicidade de condenar, igualmente, os africanos, cujos chefes tribais vendiam seus subordinados para os traficantes de escravos. Negros alforriados também adquiriam escravos, como, por exemplo, Francisco Nazareth d’Etra, da nação jeje-mahi, que havia sido escravo de outro escravo alforriado antes dele, José Antonio D’Etra, “um dos africanos mais ricos da Bahia, que chegou a possuir um plantel de 50 negros escravizados; teve patente de capitão-mor de assaltos e entradas, escolhido para combater os quilombos que se reproduziam no recôncavo Baiano; e foi da irmandade negra do Bom Jesus das Necessidades, que tinha irmãos pretos envolvidos diretamente no comércio negreiro” (Risério, 2019, p. 114). O mais recente livro de Antônio Risério, sobre as sinhás pretas da Bahia, amplia ainda mais os estudos sobre a participação dos negros na escravidão.
Poderíamos, também, condenar in toto os indígenas, muitos dos quais participaram, como bandeirantes, da repressão aos quilombos, bem como os judeus cristãos-novos, alguns dos quais exerciam o controle da maior parte do comércio de escravos em todo o Atlântico.
Como se vê, o fenômeno da escravidão é muito mais complexo do que supõe o identitarismo racialista e não comporta uma divisão identitária entre uma etnia “boa” e outra “má”, entre uma “inocente” e uma “culpada”, entre uma “oprimida” e uma “opressora”. A História não é maniqueísta e comporta múltiplas facetas que precisam ser analisadas objetivamente em termos do seu significado e da sua importância para o conjunto do processo. Sendo o Brasil um país tão grande e multifacetado, seus processos formadores são igualmente complexos e não cabem em dicotomias morais anacrônicas.
Nenhum processo histórico pode, portanto, ser adequadamente compreendido pelo prisma repressão vs. liberdade. Ainda mais com esses termos sendo colocados em abstrato, como faz Sacramento, denotando mais a influência do idealismo iluminista à la Thomas Paine que do materialista histórico de Karl Marx. Repressão e liberdade, nesse sentido, são momentos subjetivos e inferiores de movimentações e tensões históricas objetivas, incapazes, portanto, de abarcar a totalidade histórica.
Causa espécie que um autodeclarado materialista, de verve marxista pela ênfase atribuída à luta de classes, demonize a violência na história e a julgue antes de compreendê-la na totalidade histórica. Não faz nenhum sentido a diferença que ele estabelece entre a “violência repressora”, considerada ruim, e a “violência revolucionária”, considerada boa. Em que a violência dos revolucionários franceses contra os camponeses da Vendéia teria sido “melhor” em relação à violência dos bandeirantes na sua luta contra as tropas holandesas invasoras? Não teria sido o bandeirantismo, formador de um dos maiores países do mundo, um fenômeno revolucionário, transformador, em sentido progressivo, de estruturas sociais?
Esse moralismo, idealista por definição e incompatível com qualquer materialismo digno do nome, leva Sacramento a pensar que faço mau juízo dos quilombolas que raptavam índias e que eu, por levantar esse dado, que o autor não consegue refutar (apenas utiliza uma falácia ad hominem contra Roquette-Pinto), estaria sendo racista e preconceituoso. Nada disso. Quem sou eu para condenar um evento de séculos atrás com os valores contemporâneos? A suposição de que os critérios morais atuais são universais e se aplicam a toda época e lugar é que constitui, verdadeiramente, racismo etnocêntrico, como afirmei em minha réplica.
Desse modo, é natural que ele não entenda a aproximação que faço entre Borba Gato e Zumbi dos Palmares. Ambos foram, ainda que inconscientemente, construtores da nação brasileira, cuja sedimentação histórica deve, em parte expressiva, à ação coletiva por eles perpetrada. Justamente por eu alçar Zumbi a essa posição, não faz sentido Sacramento afirmar que eu menosprezo a importância africana para a formação do Brasil e que eu aprecio negativamente os quilombos. Parece que, para Sacramento, ou se considera a africanidade o único elemento formador do Brasil ou se a despreza completamente, num maniqueísmo nada salutar para a análise científica.
Porém, o moralismo, o binarismo e o idealismo são os menores dos males no texto de Sacramento. Há traços relevantes de desonestidade, como quando, por exemplo, ele sequer considera as informações sobre a participação voluntária de negros e índios nas bandeiras, prontamente descartadas como simples “memorialismos”, como se tudo o que não se coadunasse com a sua dicotomia moralista e anacrônica fosse memorialismo.
Além disso, ele também desdenha da referência de Manoel Bomfim, considerando que “Bomfim deve ser lido como objeto a ser analisado, não como analista que, por si, refutaria qualquer argumento de um debate de agosto de 2021. Em suma, a citação de um autor de 1920 não pode ser meio para refutar um debate do qual não participa”.
Ora, por que Manoel Bomfim, um grande estudioso da história nacional, não pode ser utilizado como referência, apenas como “objeto de estudo”? Por que ele seria um “memorialista” e em que o “memorialismo” seria inferior à chamada “historiografia”, se grande parte dessa última foi feita tendo como referências bibliográficas o que Sacramento chama de “memorialismo”? Por que Bomfim não pode ser uma referência para demonstrar uma tese, mas Júlio de Mesquita pode? E não é do debate das primeiras décadas do século XX sobre a formação brasileira que estamos tratando, como o próprio Sacramento admite? Cito as palavras por ele utilizadas: “Ocorre que o texto tem por objeto exclusivamente a produção do século XX”. Como um autor do século XX não pode ser referenciado para uma discussão cujo objeto é o debate intelectual do século XX?
Mais ainda, Sacramento afirma que Bomfim não poderia ser uma referência política para o campo progressista por ter escrito um livro com o “eugenista” (voltarei mais tarde a essa questão) Olavo Bilac, fundador da Liga Nacionalista de São Paulo, que “defendia a tríade escola, voto e serviço militar”. Ora pois, em que o direito à educação básica (escola), à participação política (voto) e o serviço militar se contraporiam aos valores históricos do progressismo?! Em que momento a escola, o voto e o serviço militar se tornaram, em si mesmos, símbolos “conservadores”? Se houve conservadores defensores desses aspectos, tanto melhor, pois esses “elementos políticos e epistemológicos” são bastante favoráveis ao engrandecimento da Nação. Afinal, esse é o sentido do lema da nossa bandeira, que poderia ser o de qualquer regime viável e inclusivo: Ordem e Progresso. Valores desprezados por Sacramento e por todo identitário.
No que diz respeito a Getúlio Vargas, Sacramento destila todo o veneno originalmente disseminado por Júlio de Mesquita Filho e outros figurões da oligarquia paulista. O suposto fascismo de Getúlio Vargas é uma mentira liberal há muito desmontada. O professor Alfredo Bosi, em seu livro Dialética da Colonização, a professora Ângela de Castro Gomes, em seu livro A Invenção do Trabalhismo e o jornalista José Augusto Ribeiro, em sua trilogia A Era Vargas, põem essa discussão em pratos limpos.
Mais lamentável e equivocada ainda é a tentativa de enquadrar Getúlio Vargas como um “supremacista branco”. Logo ele, que legalizou o samba e a capoeira e profissionalizou o carnaval e o futebol, abrindo definitivamente as portas desse último para os negros!!
Para sustentar sua tese, Sacramento recorre a uma aproximação pontual e meramente protocolar entre o governo federal brasileiro e o governo nazista alemão em 1936, num momento em que todos os países ocidentais e seus respectivos empresários mantinham excelente relação com o III Reich. Que o diga Henry Ford, admirador confesso de Hitler e fundador da Fundação Ford, uma das maiores disseminadoras do racialismo pontificado por Sacramento.
Ademais, como vários cidadãos alemães residiam no Brasil, não caberia ao governo brasileiro impedir uma tratativa do tipo, ainda mais porque não havia nenhum sentido eminentemente racista e eugenista nela, apenas um estudo do governo alemão para estudar as condições de adaptação em regiões tropicais de um povo acostumado a um clima frio.
O autor incide novamente em anacronismo ao confundir “eugenia” com “racismo” ao abordar o Artigo 138º, alínea b da Constituição de 1934. A “educação eugênica” a que se referia o artigo, dentro da concepção vigente de eugenia na época, presente inclusive na União Soviética[i], dizia respeito a uma educação voltada para o aperfeiçoamento da saúde, da higiene e das condições materiais de vida dos jovens que, segundo entendia o evolucionismo, a última palavra científica de então, seria incorporado na estrutura genética e transmitido aos descendentes. Nada semelhante a “seleção racial”, como de fato não houve.
Do anacronismo parte-se, em seguida, para o sofisma. Em momento algum o Decreto-Lei nº 7.967 afirmou que o Brasil seria e deveria se manter “europeu”, mas, sim, que possuía ascendência europeia, o que é inegável, a menos que Sacramento queira refazer o mapa-múndi e convencer o leitor de que Portugal não faz parte da Europa. Ademais, a política imigratória tinha por objetivo trazer mão de obra qualificada (pelo menos em algum nível básico) para o trabalho nas modernas atividades empresariais capitalistas que se encontrava, naquele momento, na Europa e não na África, cujo processo de descolonização apenas principiava.
Quem afirma isso não sou apenas eu, mas Roger Bastide, uma das referências de Sacramento, da qual ele supôs, erroneamente, o meu desconhecimento. Segundo o autor francês, em seu livro “Brasil, Terra de Constrastes”: “Após a Segunda Guerra Mundial, graças à voga da planificação, esses imigrantes rarefeitos passam a ser também selecionados. O Brasil não busca mais mão de obra agrícola, reclama técnicos, técnicos de sistemas científicos de criação de gado e de indústria leiteira como os holandeses ou os suíços; técnicos da cultura de árvores frutíferas ou de plantas medicinais, ou, muito mais ainda, operários qualificados, especializados para trabalhar nas indústrias” (Bastide, 1978, p. 188).
Sintomaticamente, Sacramento suprime a última oração do Artigo 2º do Decreto-Lei nº 7.967, referente à defesa do trabalhador nacional (portanto, independentemente de cor), e ignora o Artigo 3º, que estabelece limites estreitos à imigração: “A corrente imigratória espontânea de cada país não ultrapassará, anualmente a cota de dois por cento sobre o número dos respectivos nacionais que entraram no Brasil desde 1º de janeiro de 1884 até 31 de dezembro de 1933. O órgão competente poderá elevar a três mil pessoas a cota de uma nacionalidade e promover o aproveitamento dos saldos anteriores”.
Seria pedir demais, então, a menção ao Decreto nº 20.291, de 12 de agosto de 1931, mais conhecida como “lei dos dois terços”, que instituía a cota mínima de 2/3 de trabalhadores brasileiros em estabelecimentos com pelo menos três funcionários.
Como afirmou o então ministro Lindolfo Collor: “As leis brasileiras não visam o desemprego forçado de numerosos estrangeiros que se radicaram no país. O que elas têm em mira é não permitir que, daqui para diante, os desocupados das indústrias e do comércio de outros países venham, dentro das nossas fronteiras, desalojar das suas ocupações os trabalhadores nacionais.”[ii]
A cereja do bolo na parte sobre Getúlio Vargas é quando Sacramento afirma, sem provas, que “Getúlio Vargas e Júlio de Mesquita Filho tiveram grande proximidade depois da Revolta de 1932”. Trégua não significa proximidade, e mesmo a detente não teve vida longa, pois Júlio de Mesquita Filho foi preso 17 vezes durante esse período e teve o seu jornal, O Estado de São Paulo, empastelado. Grande proximidade!!
Mas essa não foi a última associação descuidada feita por Sacramento. A respeito de Cassiano Ricardo, ele afirma que “A sua revista Anhanguera fabulava o bandeirantismo como o elemento constitutivo do brasileiro. Portanto, mais uma vez, a citação reforça a ligação do mito bandeirante com o conservadorismo”.
O que o fato histórico objetivo do bandeirantismo como elemento de construção nacional brasileira, largamente atestado pela historiografia, tem a ver com “conservadorismo” e “protofascismo” é algo que não pode ser racionalmente compreendido.
Menos ainda um suposto “nacionalismo luso-brasileiro” da minha parte, como se eu, em algum momento, tivesse defendido o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves como o modelo ideal de organização nacional a única forma em que o dito “nacionalismo luso-brasileiro” faria sentido.
A seguir, Sacramento pratica verdadeiro contorcionismo retórico para dizer que não falava do Borba Gato “histórico” mas da “representação” racializada e supremacista do dito bandeirante. Mas, se há alguém que faça tal representação, é o próprio Sacramento. A estátua de Borba Gato não possui nenhum aspecto de embranquecimento. Muito pelo contrário, a própria escolha do material, com pedras de cor escura, reforça a mestiçagem cabocla do personagem, em absoluta contraposição à representação pictórica usual de Jesus Cristo, tomada por Sacramento como parâmetro de comparação. Desconheço qualquer outra descrição do sertanista que o retrate como um escandinavo nos trópicos.
Em seguida, Sacramento afirma que eu ignoro, por motivos políticos, a existência das bandeiras de apresamento e de contrato. Não ignoro, mas não faço o “cancelamento”, que, como já explicado, não se coaduna com o rigor analítico necessário ao estudo dos fenômenos sociais. O que ressaltei foi o fato de Borba Gato, alvo do coletivo “Revolução Periférica”, não ter pertencido a esse tipo de bandeira, invalidando a alegação de que a respectiva estátua seria um monumento ao escravismo.
A seu turno, a Coroa portuguesa não era o principal cliente dos bandeirantes, como Sacramento afirma sem nenhuma evidência. Naturalmente, houve acordos e distensões, como ocorre em toda disputa política. Até a URSS e o III Reich travaram acordos, por que não o governo português e os bandeirantes?
Mas, no geral, como já demonstrei suficientemente em minha réplica, havia competição e rivalidade entre ambos, com projetos distintos e contraditórios. Não custa relembrar a Guerra dos Emboabas, quando a Coroa portuguesa massacrou os bandeirantes, e a própria trajetória de Borba Gato, foragido das forças oficialistas por assassinar um representante espanhol a serviço de Portugal.
Depois, Sacramento troca mais bolas. A formação mestiça brasileira é exatamente o contrário do que ele considera “eugenia”, ou seja, o separatismo racial. A mistura do branco, do negro e do índio é absolutamente intolerável para qualquer eugenia racista, pois significa a infinita diversidade de combinações fenotípicas e a diluição das fronteiras étnicas. Da mesma forma que o mestiço não é negro, também não é caucasiano. Onde o racismo impõe barreiras, a miscigenação as derruba e cria novas sínteses. Não há força de retórica que consiga mudar os fatos e fazer com que 2+2 não resulte em 4.
Então, concordo plenamente com o Quinto Movimento no sentido da valorização da mestiçagem brasileira, dos quais todos nós somos filhos. Como descendente de portugueses, árabes e índios, sinto-me muito orgulhoso da nossa miscigenação e reconheço o seu aspecto civilizatório e humanista, como muito bem analisado por pensadores de tão bom alvitre como José Bonifácio, Alberto Torres, Gilberto Freyre, Manoel Bomfim, Roger Bastide, Guerreiro Ramos, Darcy Ribeiro, Milton Santos e tantos e tantos outros. Se o movimento negro não aprova, pior para ele. Assim como os neonazistas brasileiros não são reconhecidos pelos seus homólogos nórdico-germânicos, tampouco os “afronazistas” brasileiros o seriam por seus pares africanos, que veriam neles as marcas dissonantes da miscigenação por eles negadas.
Curioso, ainda, Sacramento afirmar com todas as letras, carregadas nas tintas do sarcasmo, de que “nego” a obra de acadêmicos do calibre de Octavio Ianni, Clóvis Moura, Petrônio Domingues, Viotti da Costa, Guerreiro Ramos, Robert Conrad, Abdias do Nascimento e Thomas Skidmore.
Não tenho aqui tempo e espaço para analisar cada um deles, mas deixo aqui registrado o meu espanto por Sacramento ignorar, por exemplo, que Roger Bastide, em seu já mencionado livro “Brasil, Terra de Contrastes”, afirmara, em tons de lirismo ultra-freyreano que, durante o período colonial brasileiro, “os patriarcas semearam, por quase todo o solo brasileiro, mamelucos e mulatos; esta aceitação das Vênus morenas ou negras opõe-se ao puritanismo profilático, à recusa rígida do anglo-saxão, sempre preocupado em evitar os contatos julgados perigosos, e desejoso de não misturar aquilo que Deus separou. A colonização brasileira destruía fronteiras e reunia em relações fraternas, em doce camaradagem, as cores mais heterogêneas e as civilizações mais díspares” (Bastide, 1978, p. 23 – grifo meu).
Guerreiro Ramos, por sua vez, em tons mais prosaicos, comentara, na Declaração de princípios do Teatro Experimental do Negro, o tipo de política endossada por Sacramento, alertando sobre os “perigos sociais que poderiam advir do equívoco de definir em termos raciais as tensões decorrentes das relações metrópole-colônia e capital-trabalho” (Ramos, 1960, p. 200) e defendendo que “É desejável que o Governo Brasileiro apoie os grupos e as instituições nacionais que, pelos seus requisitos de idoneidade científica, intelectual e moral, possam contribuir para a preservação das sadias tradições de democracia racial no Brasil” (p. 202 – grifo meu).
Pelo visto, Roger Bastide e Guerreiro Ramos eram, na taxonomia sacramentiana, integralistas, protofascistas, supremacistas e negacionistas. De todo modo, são muito bem-vindos ao corpo teórico constitutivo do Quinto Movimento. Não à toa, incluí Guerreiro Ramos como um dos intérpretes do Brasil na série de artigos de mesmo nome publicados no Portal Bonifácio[iii], coordenado por Aldo Rebelo.
Apesar da desonestidade e dos sofismas apresentados pontualmente por Sacramento até o presente momento, pensei estar, em linhas gerais, caminhando com ele no firme terreno da racionalidade honesta, onde as divergências podem ser solucionadas e os possíveis equívocos e deslizes corrigidos com base na troca mútua de informações e conhecimentos. Surpreendeu-me negativamente descobrir que o meu interlocutor é adepto do irracionalismo e da misologia, ou seja, da aversão à lógica.
Para sustentar a sua tese furada de que haveria, na Primeira República, uma política oficial de “desaparecimento do negro”, Sacramento coteja o Censo de 1886 com o de 1940, afirmando que a população preta da cidade de São Paulo teria passado de 3825 pessoas para 63545, num aumento de mais de 1500% e, ao mesmo tempo, que teria havido uma política oficial de desaparecimento do negro, uma “solução final” (termo de Sacramento em seu primeiro artigo para se referir a esse mesmo fenômeno).
É a primeira e única vez na história em que ocorre um genocídio no qual a população vitimada aumenta em mais de 1500%. Tamanho despautério evidencia a que ponto o identitarismo cega seus ideólogos para as maiores obviedades e os aliena do mundo real, incapacitando-os até para o mais reles materialismo. Se é verdade que a população branca, em função dos afluxos europeus, aumentou ainda mais, não se segue disso que se tenha querido exterminar os negros, como de fato não se exterminou, muito pelo contrário.
Por conseguinte, o próprio Sacramento confirma a minha afirmativa, já demonstrada anteriormente, de que não houve diminuição dos negros em São Paulo. Ele mesmo refuta de modo cabal a tese do desaparecimento do negro e a afirmação de Alfredo Elis Júnior, mencionada por ele em seu primeiro artigo, de que “a população negra no começo do século XX registrou crescimento demográfico negativo”. Não existem “dados quantitativos em termos absolutos e proporcionais à luz de coortes e variáveis” que sustentem tamanho absurdo. Se memorialistas costumam ter pouco apreço por dados quantitativos e por variáveis – o que não é o meu caso -, militantes como Sacramento simplesmente desconhecem o que eles sejam, por mais que digam segui-los.
Nesse sentido, caberia a Sacramento problematizar e justificar um outro dado por ele mostrado, extraído de Petrônio Domingues, de que “entre 1918 e 1928, houve crescimento vegetativo negativo dos negros na cidade de São Paulo, ou seja, morriam mais do que nasciam em razão que “oscilava de 1,93% a 4,8% por ano”. Com essa taxa negativa anual ao longo do decênio, cujas causas não são em momento algum sequer cogitadas, ou houve um crescimento explosivo da população negra anteriormente, ou alguma informação não bate. Tendo em vista os dados oficiais, penso ser essa última possibilidade a mais plausível. De todo modo, quem apresentou o dado, no caso sacramento, é quem deve justificá-lo.
Importante constatar, também, que, nesse mesmo período, a entrada de imigrantes italianos havia decaído sensivelmente. Entre 1916 e 1930, entraram no Brasil (não apenas em São Paulo) cerca de 41 mil italianos, uma redução de mais de 50% frente aos 86 mil entre 1901 e 1915 (Fausto, 2015, p. 237).
Importante, outrossim, registrar o absurdo de enquadrar arbitrariamente, sem qualquer fundamento lógico, os pardos na categoria de negros. Por essa definição, o caboclo Borba Gato e os demais bandeirantes mamelucos deveriam ser reivindicados como próceres negros por Sacramento e os demais identitários. Pelos critérios racialistas adotados por Sacramento, a bandeira do caboclo Domingos Jorge Velho contra Palmares deveria ser reinterpretada como uma luta de negros contra negros. Um verdadeiro terraplanismo historiográfico que, além de equivocado, contradiz a si próprio. O materialismo mandou lembranças, de muito longe. E, antes do materialismo, a lógica também.
Não existe, igualmente, lastro empírico para Sacramento afirmar que haja “consenso científico” acerca da tese de que a política de imigração tinha por objetivo o embranquecimento – uma tese nada materialista, pois acentua o fator psicológico-racial sobre o econômico-material. Sem dúvida alguns atores do período levaram isso em consideração, mas não há evidências de que tenha sido o único ou o principal motivo nem de que haja um “consenso científico”.
Em primeiro lugar, o método científico desconhece o apelo de autoridade do “consenso”, pois opera com base no ceticismo permanente. Em segundo lugar, consenso supõe que todos os pesquisadores do ramo estejam de acordo. Como essa informação foi mensurada por Sacramento, que se diz tão leal aos dados quantitativos? Não encontro a defesa dessa posição, por exemplo, nos clássicos História Econômica do Brasil, de Caio Prado Júnior – autor que também mereceu um artigo meu para a série Intérpretes do Brasil[iv] -, História do Brasil, de Boris Fausto, A Revolução Burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes, e Da Monarquia à República, de Emília Viotti da Costa – sendo esses dois últimos autores presentes na lista de acadêmicos cuja ignorância da minha parte Sacramento supusera, sem perceber que, na verdade, a carapuça era dele, não minha.
Todos esses autores, nenhum deles simpatizantes políticos das oligarquias cafeeiras paulistas de 1878, realçam o fato de a política imigratória atender às demandas crescentes de mão de obra livre pela moderna agricultura capitalista que se desenvolvia em São Paulo, acelerando o processo de abolição da escravidão pela substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre.
Naturalmente, nessas condições, foram preferidos os trabalhadores europeus, mais acostumados à rotina de trabalho assalariado que se instaurava no Brasil, assim como se recusaram propostas impositivas da parte dos EUA, como do Brazilian-American Colonization Syndicate, para usar o Brasil como válvula de escape das tensões raciais que lhes era inerente, com consequências imprevisíveis para o Brasil e das quais o Tio Sam jamais se responsabilizaria.
A política imigratória tinha por objetivo, pois, abastecer a lavoura cafeeira de mão de obra barata e capacitada, dentro de uma concepção liberal-oligárquica de redução de custos, isentando o governo da tarefa civilizatória de educação e o treinamento dos negros brasileiros recém-libertos.
Como afirma Emília Viotti: “O trabalho escravo, comparado ao livre, tornava-se cada vez mais improdutivo. […] Os fazendeiros das áreas mais prósperas começavam a encarar o trabalho livre como mais vantajoso que o escravo e se empenhavam em promover a imigração” (Viotti da Costa, 2010, p. 329).
Um pouco adiante, ela afirma: “Muitos deles (os imigrantes) foram apanhados doutrinando escravos, concitando-os à insurreição, discursando sobre as injustiças do cativeiro. […] a maior parte dos estrangeiros estabelecidos no país foi favorável à Abolição” (p. 333).
O marxista Caio Prado Jr., por sua vez, correlaciona diretamente a imigração com a Abolição. Em suas palavras:
“O progresso da imigração no último quartel do século será rápido. […] mas se este progresso do trabalho livre foi em grande parte condicionado pela decadência do regime servil, inversamente ele acelerará consideravelmente a decomposição deste último. […] a presença do trabalhador livre, quando deixa de ser uma exceção, torna-se forte elemento de dissolução do sistema escravista” (1990, p. 190-191).
Apesar da Lei de Terras propor a empregabilidade dos imigrantes, ela se deu em condições precaríssimas, não muito diferentes da escravidão, sendo inexpressivas as concessões de terra para fins de colonização.
Como afirmou Caio Prado em História Econômica do Brasil: “Em conjunto, a “imigração” (no sentido restrito dado à palavra) superará sempre, de muito, a “colonização”” (Prado Jr., 1993, p. 190). As tentativas de conceder terra aos imigrantes, nas palavras dele, “nada puderam contra o interesse poderoso dos proprietários necessitados de braços e que precisavam de uma solução imediata para o problema premente de mão de obra que enfrentavam” (p. 189).
Florestan Fernandes, por sua vez, no capítulo 3 d’A Revolução Burguesa no Brasil, concorda com a tese do sociólogo alemão Werner Sombart, nominalmente citada, de que a imigração européia historicamente constitui um fator de desenvolvimento do capitalismo no sentido que favorece a formação de uma mentalidade e de uma prática capitalista racional-instrumental, moderna e dinâmica, ajustada às exigências e expectativas de uma ordem competitiva de mercado calcada em relações monetárias.
No caso brasileiro, segundo Florestan, isso se confirmaria, e a moderna ordem econômica teria sido fortalecida pela imigração europeia, desintegrando e sobrepujando a ordem senhorial. O imigrante não apenas “transplantava e se beneficiava pelo menos de alguns complexos de tecnologia econômica do país de origem” (Fernandes, 2005, p. 158), mas teria, também, servido “como um agente de desagregação da ordem social senhorial e de consolidação e expansão da ordem social competitiva” (ibid.: p. 64), como um “fator de precipitação e de condensação das transformações que serviram de base ao aparecimento de uma economia monetária e de mercado puramente capitalista” (ibid.: p. 168). E isso “malgrado sua condição inicial de equivalente humano do escravo” (idem.), onde “Os caminhos de acumulação de capital acessíveis ao imigrante comum eram, naturalmente, os mais duros e penosos”, pois “não só eram relegados pelos membros das elites senhoriais; convertiam em renegados os que os palmilhassem” (ibid: p. 157)
Assim, segundo Florestan, não foram as supostas benesses governamentais – que, se existiram, foram mais formais que efetiva – mas a disposição capitalista dos imigrantes – ausente no contingente negro brasileiro, aviltado por séculos de escravidão e, portanto, incapaz de se inserir automaticamente em uma ordem moderna – que teriam permitido a um maior número de imigrantes europeus ascenderem socialmente em relação aos negros escravizados e agirem como construtores de um Brasil mais moderno. Ainda que a maioria dos imigrantes e dos seus descendentes, ainda segundo Florestan, tenha sido “condenada, contra a vontade, ao colonato permanente ou à proletarização como destino social” (ibid: p. 159).
A baixa qualidade das condições de vida dos imigrantes não foi um problema apenas no início do afluxo imigratório, na década de 1850 – quando os imigrantes europeus eram tratados de forma tão brutal quanto os negros no chamado “sistema de parceria” – mas permaneceu nos decênios seguintes, inclusive levando ao êxodo massivo de imigrantes, alcançando taxas negativas de crescimento no início do século XX.
Nas palavras de Boris Fausto:
“As más condições de recepção dos recém-chegados levou o governo italiano a tomar medidas contra o recrutamento de imigrantes. Isso aconteceu provisoriamente entre março de 1889 e julho de 1891. Em março de 1902, uma decisão das autoridades italianas conhecida como Decreto Prinetti – nome do ministro das Relações Exteriores da Itália – proibiu a imigração subsidiada para o Brasil. Daí para frente, quem quisesse emigrar para o Brasil poderia continuar a fazê-lo livremente, mas sem obter passagens e outras pequenas facilidades. A medida resultou de crescentes queixas dos italianos residentes no Brasil e seus cônsules sobre a precariedade de sua condição de vida, agravada pelas periódicas crises do café. É possível que a melhora do quadro socioeconômico na Itália tenha também concorrido para ela. […] Considerando as entradas e saídas de imigrantes sem distinção de nacionalidade pelo porto de Santos, verificamos que, em vários anos, o número dos que saíram foi maior do que as entradas naquele porto. Por exemplo, em plena crise do café, em 1900, entraram 21038 imigrantes e saíram 21917. Logo após o Decreto Prinetti, em 1903, entraram 16553 imigrantes e saíram 36410. O ano seguinte registrou também saldo negativo” (Fausto, 2015, p. 239-241).
Cai por terra, assim, a falácia de que os imigrantes europeus teriam sido privilegiados, beneficiários de incentivos mil, e de que isso constitua um consenso científico. Contratados para servirem de mão de obra barata, pouco ou nenhum auxílio esses forasteiros, na prática, receberam do poder público brasileiro, controlado pelos fazendeiros paulistas, que sempre se colocaram em uma posição assimétrica e hierárquica em relação aos imigrantes, buscando reproduzir, com eles, relações de exploração próprias do escravismo a que estavam acostumados. A tal ponto que muitos desses imigrantes, como afirma Fausto, preferiram voltar para sua terra de origem.
Isso explica, então, a presença de tantos descendentes de italianos nas camadas populares paulistas, entre eles os avós de D. Mariza, citados para dar exemplificação prática ao debate, o que Sacramento repele, de forma patética e mimada, como “patético”. O norte-americano Karl Monsma – cuja obra desconheço e, portanto, não será por mim avaliada – pelo menos tem a desculpa de não ser brasileiro e não morar no Brasil a tempo suficiente de conhecer adequadamente essa realidade, caso realmente não a conheça. Não é o caso de Leonardo Sacramento.
Como visto, o imigrante europeu, apesar de todas as dificuldades que encontrou, constituiu um fator central de desenvolvimento e de povoamento do Brasil, continuando, entre o final do século XIX e o início do século XX, a obra de edificação nacional iniciada pelos bandeirantes. Não é surpreendente, então, que o mesmo fel que Sacramento dedica aos sertanistas seja reservado também aos imigrantes posteriores. Sacramento não gosta do Brasil e de nada que tenha ajudado a criar o Brasil e o povo brasileiro.
Concordo com ele quanto à infelicidade e ao absurdo do abandono dos negros nativos no pós-Abolição, relegando-os a uma posição marginal onde prevalecia a inaptidão, politicamente construída, para a inserção em formas modernas de produção. Porém, isso se deveu não à política de imigração – que, em muitos sentidos, favoreceu a sua alforria -, mas à negligência liberal dos governos da Primeira República, que somente viria a ser revertida na Era Vargas com a criação do Estado social brasileiro. Sejamos, todavia, cuidadosos: os governos liberais foram oligárquicos, mas não genocidas. Como Sacramento demonstrou, não houve nenhum extermínio da população negra no Brasil. Práticas racistas locais, como os agrupamentos paulistas da Ku Klux Klan, foram mais exceções – deploráveis, criminosas e diminutas – do que a regra, e nem de longe tiveram a abrangência ocorrida nos EUA, tampouco a sua oficialidade.
A título de conclusão, digo que respeito o posicionamento político de Leonardo Sacramento, do qual discordo, mas considero legítimo. Ele tem o absoluto direito de pensar o que for do Quinto Movimento e do nacionalismo popular esposado no livro de Aldo Rebelo.
Porém, nunca, em momento algum, os trabalhadores brasileiros encontraram os meios de obtenção da cidadania fora dos marcos institucionais da Nação, do Estado e, mais particularmente, de um Estado nacional imbuído de um projeto nacional sustentado pelas Forças Armadas. Os direitos sociais, políticos e civis foram, todos eles, conquistados por mediação do Estado-nação e apoiados pelas Forças Armadas, seja na Independência, na Proclamação da República, na Era Vargas, no regime militar e nas redemocratizações de 1946 e 1988. A História do Brasil, e de muitos outros países, não demonstra a oposição entre classes trabalhadoras e Estado/Forças Armadas, pelo contrário.
Improcedente, ao meu ver, é a defesa abstrata da classe trabalhadora sem considerar a sua existência concreta numa Nação, num território e numa configuração etno-cultural historicamente definida. No Brasil, os trabalhadores não são apenas negros, como deseja Sacramento, mas, também, brancos, morenos, indígenas, amarelos, de todas as cores e traços, plasmados em um território que foi, tanto quanto o seu perfil etno-cultural, em grande parte, construído pela ação dos bandeirantes.
Apesar das tentativas, Sacramento não conseguiu contestar essa verdade objetiva. É por ela, e não pelas versões de Júlio de Mesquita Filho, tão ideológicas quanto as dele, que celebramos Borba Gato, construtor da brasilidade, do Brasil brasileiro. Por repudiar o Brasil tal como é, Sacramento procura desconstruir tudo aquilo que nos formou, dos bandeirantes aos imigrantes, de Pedro Álvares Cabral a Getúlio Vargas.
Assim, ele apoia, sem saber, a remoção dos entraves nacionais à espoliação absoluta do povo brasileiro pelo capital estrangeiro, não por coincidência, sempre ávido por promover e premiar o identitarismo antinacional através de suas fundações e ongs – como a Fundação Ford, fundada por um simpatizante do nazismo, e a USAID, braço estatal dos EUA.
Como todo identitário, Sacramento abomina a Questão Nacional por ser ela um polo aglutinador das particularidades que impede a absolutização de cada uma. A todo o momento, Sacramento dispara particularidades tomadas em abstrato e de forma desconexa – a classe trabalhadora, o negro oprimido, a índia (supostamente) estuprada etc. – para utilizá-las como marreta contra a Nação.
Ele se esquece, contudo, que essas particularidades, precisando de uma totalidade nacional onde possam subsistir, caso se coloquem contra ele, estão se colocando contra si próprias. Como afirmou Hegel, em A Filosofia do Direito: “A particularidade por si mesma, dado livre curso, em toda direção, para satisfazer suas necessidades, caprichos aleatórios e desejos subjetivos, se destrói e destrói seu conceito substantivo no processo mesmo em que é contemplada”[v] (Hegel, 1952, p. 64 – tradução livre)
Nesse sentido, Sacramento se alinha aos separatismos racistas como O Sul é o Meu País, que, igualmente, mobilizam identidades particulares, também raciais, para negar a universalidade e a generalidade do Brasil.
No mundo real, material e objetivo, contudo, os portadores reais dessas particularidades, sejam os “pretos africanos” de Sacramento ou os “brancos germânicos” d’O Sul é o Meu País, buscam não a conflagração generalizada de vinganças e ressentimentos, mas a comunhão nacional pelo bem comum, combatido pelo ativismo identitário anti-popular e anti-nacional de Sacramento e dos separatistas sulistas.
Desde Vargas, todo presidente eleito no Brasil representou, de forma honesta ou dissimulada, esse ideário, pois, sem ele, é impossível criar esperança em um povo que, apesar das diversidades e desigualdades, se identifica como brasileiro e sabe que, fora da Nação, não há salvação. Nação essa que não existiria sem a ação desbravadora e criadora dos bandeirantes e dos imigrantes, cujos filhos somos nós: eu, você, Marielle e todos os mais de 210 milhões de brasileiros.
Sem o Brasil grande, soberano e mestiço, sem o Brasil dos bandeirantes, dos imigrantes, dos brancos, dos negros e dos ameríndios, dos caboclos, dos cafuzos, dos sararás, dos mais branquinhos e dos mais moreninhos, dos meninos, dos poetas e dos heróis, de todo tipo de brasileiro – como defende com muita justeza o Quinto Movimento -, nem Marielle nem mais nenhum brasileiro estará presente. Pois só se está presente em algum lugar, e sem o Brasil, que lugar resta para cada um de nós?
Viva Borba Gato!! Viva os bandeirantes!! Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu!! Viva o Brasil!!
*Felipe Maruf Quintas é doutorando em ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Referências
BASTIDE, Roger. Brasil, Terra de Contrastes. 8ª ed. Rio de Janeiro: Difel, 1978.
COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República. 9ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2010.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. 5ª ed. São Paulo: Globo, 2005.
HEGEL. Philosophy of Right. Great Books of Western World. Londres: Britannica, 1952.
PRADO JR. Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1993.
RAMOS, Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Andes, 1960.
RISÉRIO, Antonio. Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária. Rio de Janeiro: Topbooks, 2019.
Notas
[i] https://eugenicsarchive.ca/discover/tree/54ece589642e09bce5000001
[ii] https://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/lei-dos-2-3
[iii] https://bonifacio.net.br/interpretes-do-brasil-iseb/
[iv] https://bonifacio.net.br/interpretes-do-brasil-caio-prado-jr/
[v] Traduzido do inglês: “Particularity by itself, given free rein in every direction to satisfy its needs, acidental caprices, and subjective desires, destroys itself and its substantive concept in this process of gratification.”