Queiroga, o antivacinista fake

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PAULO CAPEL NARVAI*

O ministro da saúde foi além da pobreza de espírito, chegando ao nível da indigência espiritual

O Conselho Nacional de Saúde (CNS), reunido em 17/9/2021, pediu ao Ministério da Saúde (MS) que mantenha a vacinação de todos os adolescentes de 12 a 17 anos no Plano Nacional de Vacinação contra a covid-19.(1) A decisão do CNS foi motivada pela publicação, dois dias antes, da Nota Informativa nº 1/2021-SECOVID/GAB/SECOVID/MS, que revisara a recomendação de imunização contra a doençanesse grupo etário, mantendo-a apenas para as pessoas dessa idade que apresentam deficiência permanente, comorbidades ou que estejam privados de liberdade.

A decisão do CNS apenas repercutiu a gritaria geral, na imprensa e em redes sociais, do descalabro que marcou essa absurda e cientificamente insustentável mudança de orientação técnica. A balbúrdia promovida pelo governo federal na pasta da Saúde, por incompetência ou má fé, tem sido amplamente denunciada por jornalistas e profissionais do setor, em sintonia com o que denominei de “terraplanismo epidemiológico”.(2) Fala-se em “desastre” e“irresponsabilidade” dentre outros qualificativos.(3) Em defesa da orientação antivacinista, apenas o bando de fanáticos acólitos de Bolsonaro e um ou outro médico proveniente dessas hostes.

Nunca, desde sua criação, em 25/7/1953, o Ministério da Saúde teve em seu comando um titular antivacinista. Foram 49 até a chegada de Marcelo Queiroga, em 23/3/2021. O médico cardiologista foi o quarto nome posto por Jair Bolsonaro nos últimos três anos para, como ele costuma afirmar, “tocar a Saúde”. Antes de Queiroga, responderam pelo Ministério, Luiz Henrique Mandetta (1/1/2019-16/4/2020), Nelson Teich (17/4-15/5/2020) e Eduardo Pazuello (2/6/2020-23/3/2021). Registre-se que, no período de 15/5 a 2/6/2020 o MS, “punido” pelo presidente da República, ficou acéfalo.

Os três ministros que antecederam Queiroga ganharam vários epítetos em redes sociais, tendo em vista suas características pessoais ou o modo como exerceram o cargo. Em respeito ao leitor, direi apenas que Teich foi considerado “o breve”, por motivos óbvios. Os epítetos de Mandetta e Pazuello são ofensivos demais. Por falastrão, e pela pretensão de buscar compatibilizar ciência com Bolsonaro, Queiroga vinha sendo qualificado até o momento como “o contorcionista”, superando nessa prática colegas muito mais experientes, como Mandetta.

Médico qualificado, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, o titular do MS e comandante nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) estudou, aprendeu, sabe o que é e como funcionam as vacinas. Não desconhece, portanto, o que significam vacinas no mundo contemporâneo e seu papel na saúde pública, em todo o planeta. Queiroga sabe, também, das implicações éticas da decisão que tomou como ministro de Estado. Consta que é doutorando no programa de pós-graduação em Bioética da Universidade do Porto, em Portugal, desde 2010. Tempo mais do que suficiente, portanto, para compreender os múltiplos aspectos implicados na questão.

Após o anúncio da medida, tendo Queiroga participado ao lado de Bolsonaro de uma transmissão ao vivo pela internet, em que uma vez mais o presidente colocou-se como um arauto da liberdade e bradou contra a vacinação obrigatória para servidores públicos, o ministro da Saúde deu entrevista em que pediu às mães para não vacinarem seus filhos. Foi um fato estarrecedor, absolutamente inusitado, pois ministros como Mandetta e Teich, e até mesmo o bravateiro Pazuello(4) (aquele do “dia D, hora H”), pouparam a si mesmos do vexame de se colocarem na posição de antivacinistas, argumentando com “o que diz a ciência” para se justificarem perante seu chefe político.

Mas Queiroga, não. Com seu apelo cretino às mães, alinhou-se de modo bizarro às sandices de Bolsonaro e, renunciando às próprias convicções, das quais reiteradas vezes havia dado demonstrações, conseguiu trair a si mesmo. Ele não é antivacinista, mas fala e age como se fosse. É um exemplo bem-acabado de até onde pessoas podem chegar para se manter no poder, recusando a razão, negando os próprios conhecimentos e cometendo violências contra si mesmo.

Por que Queiroga o fez?

A resposta, desoladora para um ministro de Estado com a trajetória profissional de Marcelo Queiroga, é que o fez para, apenas e tão-somente, poupar Bolsonaro do desgaste de não ter comprado, em tempo hábil, as vacinas de que o país precisa. Sem vacinas para a execução do plano nacional de vacinação contra a covid-19, elaborado pelo governo federal e gerido pelo ministério da Saúde, Queiroga tentou desviar o assunto e, buscando tirar o foco da incompetência administrativa do governo federal e, portanto, da falta de vacinas, cometeu o desatino de, sem dispor de estudos comprobatórios, colocar em questão a efetividade e a segurança sanitária da vacina, nesse contexto. Admitiu, publicamente, que sua referência para a decisão foi um “pedido de Bolsonaro”.(5)

Travestido de antivacinista de ocasião, Queiroga foi além da pobreza de espírito, chegando ao nível da indigência espiritual. Com sua lamentável e desastrada decisão, insustentável sob qualquer ângulo epidemiológico e que contribui para que a pandemia de covid-19 siga matando no Brasil, alimentou tristemente o farto anedotário político nacional, ao criarum tipo insólito e alterardefinitivamente seu epíteto.

Deixou de ser “o contorcionista” e passou a ser o primeiro “antivacinista fake” do mundo. Para um doutorando em bioética, é fato gravíssimo. Com a palavra, a Universidade do Porto.

Para o controle da pandemia de covid-19 no Brasil, mais uma trapalhada a demonstrar que o governo Bolsonaro não cessará suas agressões à cidadania e ao país enquanto Jair Messias estiver no Palácio do Planalto com sua caneta que nomeia ministros da estirpe de Queiroga. Com a palavra, brasileiras e brasileiros de todas as idades.

*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP.

Notas


(1). Conselho Nacional de Saúde. CNS recomenda que Ministério da Saúde mantenha vacinação em adolescentes de 12 a 17 anos. Susconecta [Internet]. 17/9/2021. Disponível em: https://tinyurl.com/bvwk4p7x

(2). Narvai P. C. Terraplanismo epidemiológico. A Terra é Redonda [Internet]. 16 de março de 2020; Disponível em: https://tinyurl.com/r9pxs94a

(3). Alencar B, Vidigal L. “Erro”, “infelicidade” e “lamento”: decisão de Queiroga sobre vacinação de adolescentes é criticada. G1 [Internet]. 16 de setembro de 2021; Disponível em: https://tinyurl.com/etvnjpx9

(4). Barifouse R. “No dia D, na hora H”: 7 momentos-chave de Pazuello no Ministério da Saúde. BBC News Brasil [Internet]. 15 de março de 2021; Disponível em: https://tinyurl.com/28wkhm5y

(5). Queiroga diz que Bolsonaro orientou rever vacinação de adolescentes. Isto É [Internet]. Agência Estado. 16 de setembro de 2021; Disponível em: https://tinyurl.com/4f8ujk58

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Tadeu Valadares Paulo Fernandes Silveira Mariarosaria Fabris Rodrigo de Faria Ricardo Abramovay João Lanari Bo José Raimundo Trindade Marilia Pacheco Fiorillo Ari Marcelo Solon Valerio Arcary Daniel Brazil Boaventura de Sousa Santos Matheus Silveira de Souza Marilena Chauí Luciano Nascimento Andrés del Río Walnice Nogueira Galvão João Paulo Ayub Fonseca Ricardo Fabbrini Everaldo de Oliveira Andrade Jean Marc Von Der Weid André Singer Marcos Silva André Márcio Neves Soares Fernando Nogueira da Costa Marcelo Guimarães Lima Fernão Pessoa Ramos Bento Prado Jr. Carla Teixeira Yuri Martins-Fontes Sergio Amadeu da Silveira Lucas Fiaschetti Estevez Elias Jabbour Daniel Afonso da Silva Lincoln Secco José Costa Júnior Vanderlei Tenório Érico Andrade Ronald León Núñez Eduardo Borges Eugênio Trivinho Bruno Machado Slavoj Žižek Antônio Sales Rios Neto Remy José Fontana Jean Pierre Chauvin Caio Bugiato Andrew Korybko João Carlos Salles Bernardo Ricupero Valerio Arcary Lorenzo Vitral Juarez Guimarães Igor Felippe Santos Eliziário Andrade Leda Maria Paulani Denilson Cordeiro Luiz Bernardo Pericás Chico Alencar Afrânio Catani Chico Whitaker Bruno Fabricio Alcebino da Silva Sandra Bitencourt Paulo Martins Berenice Bento Michel Goulart da Silva Luiz Renato Martins José Machado Moita Neto Daniel Costa Michael Roberts Marcelo Módolo João Sette Whitaker Ferreira Anselm Jappe Gilberto Maringoni Rafael R. Ioris Paulo Capel Narvai Ricardo Antunes Salem Nasser Mário Maestri José Dirceu Atilio A. Boron Ladislau Dowbor João Adolfo Hansen Manuel Domingos Neto Kátia Gerab Baggio Vladimir Safatle Claudio Katz Flávio R. Kothe Armando Boito Henri Acselrad Carlos Tautz Luís Fernando Vitagliano Luiz Marques Gerson Almeida Maria Rita Kehl Francisco de Oliveira Barros Júnior Thomas Piketty João Carlos Loebens José Micaelson Lacerda Morais Leonardo Avritzer Celso Favaretto Ronaldo Tadeu de Souza Flávio Aguiar Marcos Aurélio da Silva José Geraldo Couto Ricardo Musse Gilberto Lopes Osvaldo Coggiola Luiz Roberto Alves Luiz Carlos Bresser-Pereira Dennis Oliveira Gabriel Cohn Eugênio Bucci Francisco Fernandes Ladeira Jorge Luiz Souto Maior Alexandre Aragão de Albuquerque Tales Ab'Sáber José Luís Fiori Rubens Pinto Lyra Annateresa Fabris Luiz Eduardo Soares Eleonora Albano Paulo Nogueira Batista Jr Heraldo Campos Luiz Werneck Vianna Priscila Figueiredo Eleutério F. S. Prado Michael Löwy Milton Pinheiro Plínio de Arruda Sampaio Jr. Renato Dagnino Alexandre de Lima Castro Tranjan Antonio Martins Tarso Genro Vinício Carrilho Martinez Francisco Pereira de Farias Antonino Infranca Alysson Leandro Mascaro Ronald Rocha Airton Paschoa Liszt Vieira João Feres Júnior Benicio Viero Schmidt Jorge Branco Samuel Kilsztajn Marcus Ianoni Otaviano Helene Alexandre de Freitas Barbosa Henry Burnett Leonardo Boff Celso Frederico Marjorie C. Marona Luis Felipe Miguel Leonardo Sacramento Manchetômetro Julian Rodrigues Fábio Konder Comparato Paulo Sérgio Pinheiro Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Dênis de Moraes

NOVAS PUBLICAÇÕES