Viva Laerte – intelectual do ano (e há décadas) do povo brasileiro

Imagem: Bayram Er
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JULIAN RODRIGUES*

Vencedora do tradicional Prêmio Juca Pato, Laerte Coutinho é primeira cartunista a receber tal homenagem

Entre tanta feiura e maldade, há lindas, ainda que tímidas, florezinhas teimando em crescer no asfalto. No último 23 de setembro ficamos sabendo que Laerte Coutinho é a intelectual do ano, título concedido pela União Brasileira de Escritores.

O prêmio, segundo o site da UBE, é “réplica do personagem criado pelo jornalista Lélis Vieira e pelo chargista Benedito Barreto em 1962 – não é um prêmio literário, mas  láurea conferida à personalidade que, havendo publicado livro de repercussão nacional no ano anterior, tenha se destacado em qualquer área do conhecimento e contribuído para o desenvolvimento  do país e  defesa dos valores democráticos.”..

“Recatada” senhora  septuagenária, Laerte vai se juntar à  galeria ilustríssima, que agrega gente como Drummond, Octavio Ianni, Jacob Gorender, Ailton Krenak,  Belluzzo, Lygia Fagundes Telles, Antônio Cândido,  Dom Paulo Evaristo Arns, Érico Veríssimo, Cora Coralina, entre tantos outras e outros. Mais do que justo, reconhecimento óbvio a uma artista que é referência cultural e política há mais de 30 anos.

De imediato, quando decidi escrever esse artigo pensei na elegância tímida de Laerte e sua genialidade artística –  lembrei na hora de Chico Buarque  (ela e ele tem em comum um certo jeito desconfiado, além de toda vida compromissada com a transformação do mundo). Juca Pato é frescor bem  vindo  em um ano ruim pro Brasil e para  Laerte –  que  teve Covid em janeiro, chegou a ir para UTI. Foi uma alegria imensa, para milhares de possas  sua recuperação.

Meu primeiro contato com a obra dela foi no início dos 1990 – Piratas do Tietê charges na Folha de São Paulo.  “Los Três Amigos” (com Angeli e Glauco), imperdível. Só muito tempo depois fui saber que Laerte desde o fim dos anos 1970 colaborava   com   sindicatos e organizações de esquerda, inclusive com  o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e desenhava o icônico João Ferrador (hoje eu não tou bom). Foi militante do PCB e   ajudou a construir   várias iniciativas de comunicação popular.

Tantas charges, tantos personagens marcantes. A expressão artística de Laerte é densa e sofisticadamente imbricada à sua biografia. Engajamento político, a perda de um filho em 2005, a descoberta/construção de sua nova identidade de gênero, aos quase 60. Vida e obra.

O fato é que em algum momento Laerte transcendeu. Deixou de ser talentosa chargista. Se transformou em filósofa, pensadora do mundo, da vida. A obra de Laerte é e vai ser cada vez mais reconhecida e estudada.

Fui apresentado à Laerte em uma manifestação contra a  homofobia,  na praça da República, talvez em 2009 ou 2010, pouco antes dela iniciar sua  transição. Lembro-me que fiz um comentário rápido sobre as tiras que ela estava a publicar na época. Confessei que não entendia muitas delas.  Laerte, com aquele sorriso gostoso respondeu: “mas eu também não entendo”. A cara dela.

Em 2013, quando fui coordenador das políticas LGBT do governo Haddad e Laerte já havia se tornado uma referência também do ativismo trans, nos conhecemos de fato e fizemos, desde lá,  várias coisinhas juntas (tive o privilégio de entrevistá-la mais de uma vez, sim eu conto isso com orgulho, embora saiba que ela não gosta dessas coisas).

Laerte, prolífica, tem obra caudalosa. Um troço impressionante. Às vezes direta e acessível, muitas outras quase enigmáticas: camadas de significado a serem escavadas.

A visibilidade midiática que obteve em razão de ser pessoa pública que realizou transição de gênero “tardiamente”  foi    bela  oportunidade para muito mais gente tomar contato com o pensamento e a arte laertianas. Programas de TV, documentários, entrevistas, instalação n Itaú cultural, edições de coletâneas: temos celebrado Laerte – que  é generosa, criteriosa e  gente boa.  Uma espécie de personalidade “anti-celebrity”.

E, poxa, além e mais importante que tudo isso junto: nossa cartunista segue sendo uma pessoa de esquerda, que tem lado. Que nunca se furta a um bom combate. Que se posiciona não só nas suas charges. Laerte apoia candidatos de partidos de esquerda, apoia os movimentos sociais, fez a campanha “Lula Livre”. Laerte é antifascista e anticapitalista. Intelectual orgânica da classe trabalhadora.

E sem mais delongas encerremos agora esse panegírico humilde, contudo honesto e pertinentíssimo. Viva Laerte Coutinho, intelectual do ano nesse brasilsão bolsonarista de meu deus. Salve a inteligência e a arte!

*Julian Rodrigues é professor e jornalista. Membro do Conselho Nacional do MNDH e da Aliança Nacional LGBTI.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ricardo Abramovay Flávio Aguiar Tales Ab'Sáber Sandra Bitencourt Daniel Brazil Leda Maria Paulani Rubens Pinto Lyra Marcelo Módolo Francisco de Oliveira Barros Júnior Valerio Arcary Renato Dagnino José Geraldo Couto Érico Andrade Afrânio Catani Michael Roberts Marilia Pacheco Fiorillo Paulo Sérgio Pinheiro Andrés del Río Tarso Genro Rodrigo de Faria Daniel Afonso da Silva Celso Frederico Valerio Arcary Flávio R. Kothe Igor Felippe Santos Eleutério F. S. Prado Everaldo de Oliveira Andrade Eleonora Albano Caio Bugiato Manuel Domingos Neto Marcos Silva Plínio de Arruda Sampaio Jr. José Raimundo Trindade Tadeu Valadares Dênis de Moraes Ricardo Antunes Dennis Oliveira Jorge Branco Carla Teixeira Jorge Luiz Souto Maior José Machado Moita Neto Otaviano Helene João Lanari Bo Henri Acselrad João Sette Whitaker Ferreira Vinício Carrilho Martinez Paulo Capel Narvai Leonardo Boff Francisco Fernandes Ladeira André Márcio Neves Soares Chico Alencar Matheus Silveira de Souza João Carlos Salles Bernardo Ricupero Bento Prado Jr. Leonardo Sacramento Andrew Korybko Vladimir Safatle José Costa Júnior Henry Burnett Sergio Amadeu da Silveira Julian Rodrigues Manchetômetro Marjorie C. Marona Eugênio Bucci Celso Favaretto Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Marilena Chauí Paulo Nogueira Batista Jr Luis Felipe Miguel Marcos Aurélio da Silva Luiz Renato Martins Bruno Machado Michel Goulart da Silva Marcelo Guimarães Lima Luiz Marques Airton Paschoa Alysson Leandro Mascaro Luiz Carlos Bresser-Pereira Marcus Ianoni Ricardo Fabbrini Samuel Kilsztajn Atilio A. Boron Denilson Cordeiro Luciano Nascimento Walnice Nogueira Galvão André Singer Berenice Bento Ronaldo Tadeu de Souza Luiz Werneck Vianna Carlos Tautz Mário Maestri Gilberto Maringoni Rafael R. Ioris Salem Nasser José Micaelson Lacerda Morais Michael Löwy João Paulo Ayub Fonseca Heraldo Campos Leonardo Avritzer João Adolfo Hansen Lorenzo Vitral Luís Fernando Vitagliano Slavoj Žižek Chico Whitaker Osvaldo Coggiola Annateresa Fabris Anselm Jappe Lucas Fiaschetti Estevez Ladislau Dowbor Alexandre de Freitas Barbosa Mariarosaria Fabris Alexandre Aragão de Albuquerque Juarez Guimarães Vanderlei Tenório Claudio Katz Milton Pinheiro João Carlos Loebens Luiz Bernardo Pericás Ronald León Núñez Maria Rita Kehl Luiz Roberto Alves Francisco Pereira de Farias Ronald Rocha Daniel Costa José Luís Fiori Gilberto Lopes Armando Boito Liszt Vieira Lincoln Secco José Dirceu Priscila Figueiredo Antonio Martins Kátia Gerab Baggio Eduardo Borges Elias Jabbour Antônio Sales Rios Neto Boaventura de Sousa Santos Luiz Eduardo Soares Ricardo Musse Yuri Martins-Fontes Remy José Fontana Eliziário Andrade Eugênio Trivinho Thomas Piketty Gerson Almeida Jean Pierre Chauvin Benicio Viero Schmidt Fernão Pessoa Ramos Alexandre de Lima Castro Tranjan Jean Marc Von Der Weid Paulo Martins Bruno Fabricio Alcebino da Silva João Feres Júnior Ari Marcelo Solon Paulo Fernandes Silveira Fernando Nogueira da Costa Fábio Konder Comparato Gabriel Cohn Antonino Infranca

NOVAS PUBLICAÇÕES