O crime como fenômeno jurídico e como fato social

Imagem: Rene Asmussen
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Por SILVANE ORTIZ*

Técnicas de contenção e controle social para a manutenção de desigualdades estruturantes do sistema capitalista

A conformação entre o crime, seus pressupostos e a dosagem da pena é algo que ocupa, para além do fazer jurídico, o pensamento de todos os que se dedicam ao escrutínio da sociedade. Em termos jus-filosóficos, historicamente, diversas dificuldades se impuseram – e ainda se impõem – para definir qual seria a conceituação de crime.

Na seara do direito, a interpretação das correlações entre causalidade e ação finalística, dão azo às duas correntes teóricas que se sucederam como as máximas leituras sobre a teoria do crime na doutrina jurídico-penal brasileira. Porém, isso é eivado de vagueza, pois ao entendermos o fenômeno jurídico como algo que se impõe, conformando inclusive, como se dão as relações sociais, é urgente e necessário um atravessamento sociológico sobre essa compreensão. Sendo o crime um fato entremeado – como a juricidade como um todo – à materialidade das relações sociais, sua teorização aportada na ciência, tende a sofrer alterações atinentes a evolução da interpretação das contingências que permeiam a sociedade. Não à toa, há uma mutabilidade constante entre as teorias que consubstanciam tal conceito, ainda que, raramente, aportados, de fato, na realidade das formas sociais.

A sociologia, como uma ciência humana que combina ação e prática, tem grandes contribuições a ofertar ao fazer jurídico. Sendo a sociologia do direito, especificamente, uma matéria de confluência de conhecimentos científicos acerca sociedade, sob o prisma jurídico, o papel propedêutico de tal disciplina no decorrer da formação acadêmica, possibilita ao futuro jurista desenvolver a capacidade de enxergar o fenômeno do direito com a amplitude e a materialidade que esse abarca. Contudo, tendencialmente, essa – como todos os conhecimentos que propiciam o desenvolvimento do pensamento crítico – é relegada a uma posição inferiorizada no curso da educação jurídica, como também em sua prática diária. E para a teoria do crime isso não é diferente. Para que o crime, como ação humana -atravessada pela materialidade que a circunda e conforma – possa ser encarado com a importância que seu escopo ordenador e engendrador de uma cultura jurídica, para além da norma, a realidade fática deve ser combinada à abstração teórica. A pluralidade das ciências humanas não pode ser prescindida para a concepção de uma teoria que, inevitavelmente, incidirá sobre as relações sociais. O perscrutar de ações humanas é sempre uma atividade intrinsicamente dialética, simultaneamente abstrata e material; interpretando as motivações subjetivamente internalizadas no indivíduo, junto às determinações externas que sobre esse agem objetivamente. Dessa forma, a imbricação da diversidade das ciências humanas na construção do conhecimento jurídico, que se preste a um fazer responsável, é algo incontornável.

Debruçando-nos sobre o método que intenta oferecer ao direito penal bases epistemológicas, o conceito analítico de crime[i] e suas formas de abordagem sobre as ações tidas por criminosas – passíveis de sanções – temos algumas teorizações que definiram, majoritariamente, a forma de entender e aplicar a juridicidade. A teoria causalista trabalha o crime como um fato correlato à vontade do agente, estritamente ligado à causa que enseja o resultado. Para essa teoria clássica, à aferição da culpabilidade bastaria, tão somente, a interpretação “fria” da conduta que traz alterações externas ao indivíduo. Sem cotejar os aspectos psicossociais que interpelam o indivíduo, essa teoria acaba deslocando o dolo e a culpa para a esfera da culpabilidade. Resumindo-se, assim, a uma forma teórica desalinhada às modernas interpretações do ser como portador de idiossincrasias e sujeito a determinações, que deve ser tomado por uma miríade de complexidades subjacentes. Ainda tributária de uma visão de mundo reducionista – altamente enviesada por conceitos advindos das ciências naturais como aferidores de uma intentada neutralidade científica (positivismo naturalista), a teoria causalista tende a subsumir o alcance da culpa à ação em si, independentemente de seu resultado fático e de seus desdobramentos finalísticos.

Por sua vez, a corrente que centra a teoria do crime sobre os ditames de sua finalidade, desloca a interpretação da ação para o acontecimento final (finalidade). Para a teoria finalística, concebida na virada epistêmica do positivismo normativista (neokantismo) para o viés ontológico (teorização jurídica na natureza das coisas) como arcabouço teórico jus-sociológico, o que passa a orientar a culpabilidade é a inerência entre vontade e conduta (intencionalidade), conduzindo, assim, o dolo e a culpa para o escopo do tipo penal. Ainda assim, pouco interferem para a sua conceituação os elementos externos ao indivíduo, calcando-se ela sobre a objetividade da conduta. Mesmo que haja uma maior atenção sobre a subjetividade, essa fica adstrita à interpretação da causa, não alcançando as determinações externas ao indivíduo para a compreensão e aferição de culpabilidade.

Ainda que tais teorias se subdividam em interpretações focadas na partição de sua concepção analítica, essas divisões passam ao largo do cerne da questão, ficando sempre enredadas em suas próprias discussões. Toda a sua conceituação fica adstrita à teorização da ação, não investindo em um aprofundamento crítico das formas sociais que pesam sobre essa. Postando-se o fazer jurídico, assim, constantemente de costas para a realidade que se apresenta na sociedade. O direito, como um todo, costumeiramente é vítima e algoz dessa prática de ensimesmar-se sobre sua normatividade. As codificações sendo o alvo e o ponto de partida de suas abordagens teóricas e práticas, reduzem a juridicidade ao entabulamento de critérios pré-concebidos, onde o alcance da punição é subordinado ao cumprimento de determinadas situações objetivas, com pouco apego à subjetividade material que configura a dialética entre sobredeterminação[ii] e ação (externa-interna-externa) dos sujeitos.

Sem uma profunda crítica quanto à determinação econômico-social que atravessa a materialidade das formas sociais, incidindo diretamente sobre a conduta delitiva, como também sobre a forma e o alcance da culpabilização, estaremos somente especulando os sintomas e nunca tratando da doença, verdadeira causa que enseja a grande maioria das situações de assunção de ações passíveis de penalização. A normatividade capitalista desenha, de pronto, um corte na sociedade que segrega por raça, classe, gênero definindo as possibilidades, mesmas, de acesso às condições básicas para a própria reprodução, minimamente digna, da vida sob a torpeza desse sistema. Focando o ensino e a prática do direito, apenas e tão somente, no ordenamento e no “punitivismo” advindo de seu descumprimento, estará esse suplantando a capacidade científica do fazer jurídico e conformado, derradeiramente, em uma rasteira técnica de contenção e controle social para a manutenção de desigualdades estruturantes do sistema ora posto.

*Silvane Ortiz é graduanda em direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

 

Referências


ALEXANDER Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2018.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Introdução à Sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis, Vozes, 2014.

MASCARO, Alysson L. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo, 2013.

MASCARO, Alysson L. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2021.

MASCARO, Alysson L. Sociologia do Direito. São Paulo: Atlas, 2022.

PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria do Direito e Marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.

QUEIROZ, Paulo. Curso de Direito Penal, Vol. 1 – Parte Geral. Ed. 4 – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006

SILVA, Ângelo R. Ilha da. Curso de Direito Penal: parte geral. 2 edição – São Paulo: Editora D’Plácido, 2019.

 

Notas


[i]Anoto, ainda, que o conceito analítico é um desdobramento do conceito legal (só é crime o que a lei define como tal sob ameaça de uma pena), que, por sua vez, é um conceito político, visto que requer uma decisão de poder que decrete o que é e não é infração penal. Consequentemente, também o são os seus elementos integrantes: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. QUEIROZ, Paulo.

[ii] O economicismo relacionava a parte e o todo sempre de modo automático. Althusser, afastando-se do economicismo, tratando das relações entre infraestrutura e superestrutura, dá o nome de sobredeterminação à possibilidade de um arranjo específico entre as várias determinações do todo social. A sociedade é sempre determinada em última instância pelo nível econômico, mas a conjunção de determinações diferentes sobre um mesmo objeto é o que gera a sobredeterminação. MASCARO, Alysson. Filosofia do Direito. Pag. 499.

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