Inteligência, baratas e poder

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EUGÊNIO BUCCI

O instinto adestrado de sobrevivência do governo que aí está – e está até hoje – assombra o ceticismo científico mais rigoroso

“Quem quer que já tenha tentado matar uma barata sabe que ela é inteligente.” Assim falou a professora Lucia Santaella. Titular da Cátedra Oscar Sala, no Instituto de Estudos Avançados da USP, a pensadora sabe o que diz. Baratas podem, sim, ser consideradas inteligentes. A seu modo, elas raciocinam, arquitetam táticas de fuga e, no mais das vezes, conseguem escapulir.

Em seu elogio ao tirocínio do esperto inseto que, além de tudo, “avoa”, Lucia Santaella não nos lança uma reles anedota com fins didáticos. Apoiada na semiótica do filósofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), ela nos traz mais do que uma boutade. Peirce escreveu que “o pensamento não está necessariamente conectado a um cérebro”. Para ele, haveria “pensamento”, igualmente, no “trabalho das abelhas e nos cristais”, isso para ficarmos apenas em poucos exemplos.

No texto de Peirce, o termo “pensamento” deve ser entendido como a capacidade de um organismo ou um sistema dar respostas calculadas, baseadas em alguma forma de memória e aprendizado, aos estímulos que recebe do mundo externo. Atualmente, usamos para isso a palavra “inteligência” – e esta não precisa mesmo de um cérebro. Contam os pesquisadores que, se você arrancar a cabeça de uma barata, ela vai continuar andando normalmente, com perfeita coordenação corporal, e isso por um bom tempo.

Quem assiste a um documentário disponível na Netflix chamado Professor Polvo (Oscar de melhor documentário em 2021) acaba se convencendo de que os polvos também “pensam”, embora não tenham propriamente um cérebro no meio da cabeça. No caso deles, os neurônios, distribuídos pelos tentáculos, conseguem se comunicar uns com os outros, sem depender de comandos vindos de uma massa encefálica central.

Até as plantas têm uma forma de inteligência. O botânico italiano Stefano Mancuso vem dizendo exatamente isso há duas ou três décadas. “Um ser inteligente não é só aquele que possui cérebro”, garante o cientista. “É um organismo capaz de resolver problemas e aprender com as situações – e nisso as plantas têm sido craques.” Os estudos do botânico brasileiro Marcos Buckeridge comprovam a tese. “Não é nada exorbitante dizer que as plantas têm memória interna”, disse ele na palestra Cognição e inteligência em plantas, disponível no You Tube. Buckeridge, que é diretor do Instituto de Biociências da USP, sustenta que os vegetais aprendem e ordenam seu crescimento com inteligência. Entre outras coisas, isso significa que não é exato dizer que uma pessoa em coma esteja em “estado vegetativo”. Vegetais, senhoras e senhores, “pensam” ativamente.

Diante disso, não surpreende que existam sinais de alguma inteligência nos movimentos políticos do presidente da República. Agora mesmo, nesta semana, a cerimônia de sua filiação a um partido político revela a existência de algum tipo de cálculo nas entranhas do bolsonarismo. É impressionante. Mais do que o discernimento direcional das lesmas e das estalagmites, o tema vem intrigando observadores da cena política nacional.

O instinto adestrado de sobrevivência do governo que aí está – e está até hoje – assombra o ceticismo científico mais rigoroso. Em metamorfoses estratégicas mirabolantes, o organismo bolsonárico logrou se transformar no oposto do que era, sem jamais se descuidar de seu objetivo: conservar-se no poder. O chefe de Estado, que há poucos meses insultava os próceres do Centrão, encontrou meios de se entronizar como o líder máximo de todos eles. Nesse deslocamento, que envolveu operações de alta complexidade, o mitômano personagem escapou da ameaça de impeachment, reverteu ações penais que espreitavam seu círculo familiar (deixou-as todas processualmente rachadinhas) e, agora, se viabiliza para tentar a reeleição. Um prodígio, certamente.

Mas como pode? Haveria por lá algum estrategista de gênio? As hordas fanáticas (que las hay, las hay) acreditam fervorosamente que sim – ainda que nessa crença repouse, latente, uma ofensa gratuita às baratas. Outros dizem que não há inteligência nenhuma naquelas hostes, mas isso pouco importa. O fato é que o índice de sucesso do (des)governante desconcerta, humilha e oprime todo o seu entorno, próximo ou distante.

Nesta hora de desconforto moral, não podemos esquecer que a razão humana não se resume à faculdade da inteligência. Ao menos desde Aristóteles, a razão supõe, além do raciocínio, além da lógica instrumental, a dimensão ética e a dimensão estética, entre outras. Sujeitos com transtornos de personalidade também articulam atos e palavras, mas emperram no plano ético e não dispõem de recursos para a estesia e a empatia. A aptidão para conjugar pensamento crítico, sensibilidade estética e princípios éticos talvez sintetize a substância do espírito (Ralph Waldo Emerson dizia que o caráter está acima da inteligência).

Por tudo isso, a inteligência instalada no outro lado tem um aspecto bruto, demente, feio, selvagem e desumano. O fato de ela ter prosperado tanto, com tamanha desfaçatez, comprova que, do lado de cá, ainda grassa a estupidez.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Afrânio Catani Daniel Costa Marilia Pacheco Fiorillo Leonardo Sacramento Henri Acselrad Slavoj Žižek Daniel Brazil André Singer Renato Dagnino Ricardo Fabbrini Gabriel Cohn Gilberto Lopes João Paulo Ayub Fonseca Jorge Branco Armando Boito Matheus Silveira de Souza Fernão Pessoa Ramos Luciano Nascimento Milton Pinheiro Bruno Fabricio Alcebino da Silva Sandra Bitencourt Eduardo Borges Benicio Viero Schmidt Bento Prado Jr. José Machado Moita Neto José Geraldo Couto Carlos Tautz Ladislau Dowbor Valerio Arcary Tarso Genro Denilson Cordeiro Elias Jabbour Alexandre de Freitas Barbosa Vanderlei Tenório Samuel Kilsztajn Otaviano Helene Marcus Ianoni Marilena Chauí Luiz Roberto Alves Ricardo Abramovay Alexandre de Lima Castro Tranjan Berenice Bento Luiz Eduardo Soares Jorge Luiz Souto Maior Francisco de Oliveira Barros Júnior Lorenzo Vitral Paulo Nogueira Batista Jr Luís Fernando Vitagliano Rodrigo de Faria João Sette Whitaker Ferreira Manuel Domingos Neto Luiz Carlos Bresser-Pereira Luis Felipe Miguel Manchetômetro Marjorie C. Marona Leonardo Boff Flávio R. Kothe Heraldo Campos Paulo Martins João Feres Júnior Yuri Martins-Fontes José Luís Fiori Jean Pierre Chauvin Remy José Fontana Paulo Capel Narvai Lincoln Secco Claudio Katz Henry Burnett Antônio Sales Rios Neto Tadeu Valadares Luiz Werneck Vianna Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luiz Renato Martins Ari Marcelo Solon Marcos Aurélio da Silva Dennis Oliveira Liszt Vieira Michael Roberts Julian Rodrigues Dênis de Moraes Mário Maestri Alysson Leandro Mascaro José Micaelson Lacerda Morais Jean Marc Von Der Weid Annateresa Fabris Mariarosaria Fabris Valerio Arcary João Adolfo Hansen Ronald Rocha Thomas Piketty Lucas Fiaschetti Estevez Bruno Machado Marcos Silva Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Priscila Figueiredo Juarez Guimarães Érico Andrade Gerson Almeida Luiz Bernardo Pericás Alexandre Aragão de Albuquerque Celso Frederico Celso Favaretto Leda Maria Paulani Fernando Nogueira da Costa Ronaldo Tadeu de Souza Eleutério F. S. Prado Michael Löwy Anselm Jappe Vinício Carrilho Martinez Paulo Fernandes Silveira João Carlos Salles Walnice Nogueira Galvão Eleonora Albano Antonio Martins José Costa Júnior Marcelo Guimarães Lima Sergio Amadeu da Silveira Michel Goulart da Silva Osvaldo Coggiola André Márcio Neves Soares Paulo Sérgio Pinheiro Everaldo de Oliveira Andrade Chico Alencar Eugênio Trivinho Vladimir Safatle Flávio Aguiar João Carlos Loebens Francisco Fernandes Ladeira Bernardo Ricupero Daniel Afonso da Silva Andrew Korybko José Raimundo Trindade Boaventura de Sousa Santos Caio Bugiato Gilberto Maringoni Ricardo Antunes Fábio Konder Comparato Rubens Pinto Lyra Ricardo Musse Antonino Infranca Andrés del Río Eugênio Bucci Tales Ab'Sáber Eliziário Andrade Francisco Pereira de Farias Rafael R. Ioris Salem Nasser Atilio A. Boron Airton Paschoa Maria Rita Kehl Marcelo Módolo Luiz Marques Chico Whitaker Leonardo Avritzer Carla Teixeira Kátia Gerab Baggio João Lanari Bo José Dirceu Ronald León Núñez Igor Felippe Santos

NOVAS PUBLICAÇÕES