A autonomia relativa da política

Bill Woodrow, Cromo, 1994
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MATHEUS SILVEIRA DE SOUZA*

A relativa autonomia do Estado em relação às classes sociais permite que esse favoreça, eventualmente, interesses das classes dominadas

No prefácio de Para a Crítica da Economia Política, Karl Marx utiliza uma metáfora para explicar os vínculos entre as relações de produção (estrutura) e as relações jurídicas, políticas e ideológicas (superestrutura): “(…) na produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superstrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas da consciência social”.

A demarcação de uma superestrutura política e jurídica remete ao Estado e à função deste na reprodução da sociabilidade capitalista. Ainda que Marx não tenha desenvolvido uma teoria sistemática sobre o Estado nas sociedades capitalistas, em alguns de seus livros, como O 18 brumário de Luís Bonaparte e As lutas de classes na França, fez considerações importantes sobre a luta política na formação social francesa de 1848 a 1851.

Esse par conceitual – base e superestrutura – levou a interpretações simplistas, como o economicismo, que considera a superestrutura como mero apêndice-reflexo da estrutura econômica, demarcando uma relação mecanicista entre ambas, como se não houvesse espaço para determinações advindas do nível político e ideológico. Essa concepção economicista foi adotada na II Internacional Comunista e provocou reações por parte de teóricos da época. Ainda hoje podemos ver, em alguns círculos ditos progressistas, uma concepção de Estado que o enxerga como bloco monolítico e sem fissuras, que produzirá os mesmos efeitos a despeito da luta de classes.

Embora o Estado tenha sido abordado por autores clássicos do marxismo, como Engels, Lenin, Gramsci e Poulantzas, não há um consenso na teoria marxista sobre o conceito de Estado. Nicos Poulantzas, autor grego erradicado na França, foi um dos teóricos que elaborou uma relevante contribuição ao que se pode denominar como teoria política marxista. O autor teve grande influência de Louis Althusser, cuja obra propunha realizar uma releitura rigorosa de Marx valendo-se de determinados conceitos bases: (a) corte epistemológico, separando a obra de juventude da obra de maturidade de Marx; (b) problemática, entendida como conjunto de questões ou problemas que direcionam a investigação de determinado objeto; (c) crítica à dialética hegeliana, diferenciando contradições primárias e secundárias, com os termos de determinação e sobredeterminação.

Althusser desenvolveu o conceito de modo de produção ampliado, que abrange não apenas a estrutura econômica, mas também as estruturas jurídica, política e ideológica. De acordo com Althusser, Marx teria elaborado uma teoria regional do econômico no modo de produção capitalista, mas seria possível desenvolver, também, uma teoria regional das demais estruturas – política, jurídica e ideológica.

Nicos Poulantzas parte desta concepção de modo de produção ampliado e desenvolve sua “teoria regional do político” na obra Poder político e classes sociais, demarcando o nível jurídico-político e o Estado capitalista como seus objetos de estudo. Embora haja uma relação de determinação recíproca entre o nível político e o nível econômico, o modo de produção capitalista possui o elemento econômico como determinação em última instância, ou seja, um todo complexo com dominante. Isso não significa aderir a um determinismo econômico, pois há determinações advindas do nível político e ideológico, conhecidas como sobredeterminações.

O modo de produção capitalista, segundo Poulantzas, é formado pela combinação específica de instâncias relativamente autônomas – instância econômica, política e ideológica. Embora tais instâncias façam parte de uma totalidade articulada na materialidade social, é possível visualizá-las enquanto objeto de estudo específico para fins de um tratamento teórico mais preciso. No modo de produção capitalista (MPC) há uma separação da instância econômica e política, em decorrência, entre outras questões, do seguinte motivo: as razões extra-econômicas são excluídas da organização direta da produção capitalista.

Essa especificidade do MPC é melhor compreendida mediante a comparação com modos pré-capitalistas. No modo de produção feudal, não havia uma separação nítida entre poder político e econômico, de forma que o poder coercitivo era mobilizado para a organização das relações de produção. Havia uma relação de dependência direta do servo em relação ao senhor feudal, pois aquele estava vinculado à propriedade deste. Nas sociedades capitalistas, a economia não é organizada pelo poder coercitivo, mas opera sobre a dominação das forças do mercado.

Além disso, o trabalhador não é levado à produção pelo uso da força, mas por razões estritamente econômicas e ideológicas. Se no feudalismo e no escravismo os indivíduos eram impelidos ao trabalho pela força física, no capitalismo são levados pela ideologia e, principalmente, pela necessidade material. O poder coercitivo, ao não ser mobilizado para a organização direta das relações de produção, pode se concentrar na função geral do Estado de manter a coesão social, ainda que, indiretamente, a coerção seja funcional à reprodução das relações de produção.

As afirmações anteriores não indicam que há uma total autonomia entre o político e o econômico no MPC, pois o econômico necessita de condições políticas e jurídicas estabelecidas para seu funcionamento, como é o caso do contrato de trabalho e da relação jurídica de propriedade privada. Essa relativa autonomia entre o nível econômico e o nível político indica a possibilidade de tratá-los como objetos de análise específicos, pois o político não está diluído na economia. Neste ponto, toca-se na noção de autonomia relativa do Estado, conceito presente na obra Poder político e classes sociais, de Poulantzas.

A autonomia relativa é desenvolvida em dois sentidos principais: (a) autonomia relativa do Estado em relação às classes sociais, pois o Estado capitalista não representa de forma imediata nenhuma das frações, embora seja funcional aos interesses que unificam a burguesia; (b) autonomia relativa das instâncias econômica e política no modo de produção capitalista. Sobre o último ponto, deve-se considerar que as diferentes instâncias não apenas possuem uma autonomia relativa entre si, mas também possuem temporalidades diferentes e desenvolvimentos desiguais.

Para ilustrar essa noção, basta pensar que as transformações e rupturas no nível econômico não ocorrem na mesma velocidade que as mudanças no nível ideológico. Em outros termos, as mudanças de consciência social e ideologia ocorrem mais vagarosamente que as rupturas do nível econômico. De modo similar, uma alteração na base econômica de determinada formação social não significará uma transformação imediata do nível ideológico desta formação.

A relativa autonomia do Estado em relação às classes sociais permite que esse favoreça, eventualmente, interesses das classes dominadas. Desde que tais interesses não coloquem em xeque a reprodução da sociabilidade capitalista, tais concessões podem inclusive contrariar os interesses da burguesia, pois o Estado capitalista não representa diretamente os interesses econômicos da burguesia, mas sim seus interesses políticos. Não se deve ignorar que a concessão de determinados interesses à classe trabalhadora pode inclusive desmobilizá-los politicamente. Além disso, ganhos pontuais da classe trabalhadora reforçam a visão de que o Estado é representante do interesse geral.

Demarcar a autonomia relativa do político em relação ao econômico pode ser útil não apenas para uma análise mais rigorosa do ponto de vista teórico, mas também para captar as determinações recíprocas entre essas duas instâncias e para traçar estratégias de intervenção na realidade que não considerem que a luta política de classes é um puro reflexo das relações econômicas. Embora economia e política estejam entrelaçadas na realidade concreta, compreender a especificidade do Estado nas lutas econômicas e ideológicas é fundamental para que a disputa política ocorra não só em tempos de turbulência mas, sobretudo, em tempos de aparente tranquilidade.

*Matheus Silveira de Souza é mestre em direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP).

 

Referências


ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Campinas:  Editora Unicamp, 2015.

MARX, Karl. Prefácio de Para a crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. Campinas: Editora da Unicamp, 2019.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ari Marcelo Solon Benicio Viero Schmidt Annateresa Fabris João Adolfo Hansen Fernão Pessoa Ramos Leonardo Boff José Dirceu Michael Roberts Fábio Konder Comparato Alexandre de Lima Castro Tranjan Chico Alencar Andrew Korybko Jorge Luiz Souto Maior Julian Rodrigues Celso Frederico Manuel Domingos Neto Ricardo Musse Armando Boito Jorge Branco Tadeu Valadares Marilena Chauí Bernardo Ricupero Jean Marc Von Der Weid Boaventura de Sousa Santos Chico Whitaker Mário Maestri Andrés del Río Matheus Silveira de Souza Yuri Martins-Fontes Alexandre Aragão de Albuquerque Ricardo Abramovay Antônio Sales Rios Neto Leda Maria Paulani Celso Favaretto Milton Pinheiro Samuel Kilsztajn Heraldo Campos José Machado Moita Neto Antonino Infranca Paulo Martins Luiz Werneck Vianna Marcelo Guimarães Lima Walnice Nogueira Galvão Francisco de Oliveira Barros Júnior Daniel Costa Ricardo Antunes Afrânio Catani Mariarosaria Fabris André Singer Dennis Oliveira Alexandre de Oliveira Torres Carrasco André Márcio Neves Soares João Feres Júnior Marilia Pacheco Fiorillo Lorenzo Vitral Carlos Tautz Vinício Carrilho Martinez Marcus Ianoni José Raimundo Trindade Manchetômetro Tales Ab'Sáber Rafael R. Ioris Everaldo de Oliveira Andrade Maria Rita Kehl Rodrigo de Faria Igor Felippe Santos Priscila Figueiredo Thomas Piketty Gilberto Lopes Luis Felipe Miguel Gabriel Cohn Paulo Fernandes Silveira Tarso Genro Eliziário Andrade Gerson Almeida Gilberto Maringoni Liszt Vieira Francisco Fernandes Ladeira Flávio R. Kothe Atilio A. Boron Henri Acselrad Érico Andrade Luiz Marques Vladimir Safatle Henry Burnett João Paulo Ayub Fonseca José Micaelson Lacerda Morais Daniel Afonso da Silva Luiz Carlos Bresser-Pereira Lincoln Secco Carla Teixeira Elias Jabbour Alysson Leandro Mascaro Slavoj Žižek Sandra Bitencourt Anselm Jappe Lucas Fiaschetti Estevez Vanderlei Tenório Francisco Pereira de Farias Eugênio Bucci Anderson Alves Esteves Marcos Silva Sergio Amadeu da Silveira Bruno Machado Ladislau Dowbor Marcelo Módolo João Sette Whitaker Ferreira Rubens Pinto Lyra Paulo Nogueira Batista Jr Marjorie C. Marona Valerio Arcary Luiz Renato Martins Eleonora Albano Bento Prado Jr. Airton Paschoa Kátia Gerab Baggio Berenice Bento Fernando Nogueira da Costa Luiz Roberto Alves Osvaldo Coggiola Eduardo Borges Michael Löwy Renato Dagnino José Luís Fiori Eleutério F. S. Prado Ronald Rocha Bruno Fabricio Alcebino da Silva Daniel Brazil Luiz Eduardo Soares Luís Fernando Vitagliano Marcos Aurélio da Silva Leonardo Sacramento Ronald León Núñez Antonio Martins Dênis de Moraes José Costa Júnior José Geraldo Couto Caio Bugiato Luiz Bernardo Pericás Luciano Nascimento João Carlos Salles João Carlos Loebens Ricardo Fabbrini João Lanari Bo Alexandre de Freitas Barbosa Paulo Sérgio Pinheiro Eugênio Trivinho Otaviano Helene Flávio Aguiar Claudio Katz Remy José Fontana Denilson Cordeiro Ronaldo Tadeu de Souza Jean Pierre Chauvin Juarez Guimarães Leonardo Avritzer Michel Goulart da Silva Plínio de Arruda Sampaio Jr. Paulo Capel Narvai Salem Nasser

NOVAS PUBLICAÇÕES