Por RODRIGO JURUCÊ MATTOS GONÇALVES*
O americanismo na era da estetização generalizada do capital
Elon Reeve Musk (nascido em 1971, na África do Sul, naturalizado americano) foi escolhido pela revista norte-americana Time como a “Pessoa do Ano” de 2021, em sua edição anual que destaca o perfil do premiado, que pode ser um homem, uma mulher, um casal, um coletivo de pessoas, uma máquina. O anúncio realizado 13 de dezembro com a escolha de Musk como campeão de 2021 jogou um balde água fria em muita gente aqui no Brasil, pois aparentemente ele teria desbancado Jair M. Bolsonaro nesta “eleição”. Em 2020, os premiados foram o presidente Joe Biden e a vice Kamala Harris, que venceram as eleições sobre Donald Trump (Pessoa do Ano de 2016).
A revista fez premiações curiosas em décadas passadas, como o líder do movimento independentista indiano Mahatma Gandhi (1930), o presidente dos Estados Unidos Franklin Delano Roosevelt (1932, 1934 e 1941), o primeiro ministro da China Chiang Kai-shek e sua esposa Soong May-ling foram “Marido e Mulher do Ano” (1937), o chanceler da Alemanha alemão e facínora da humanidade Adolf Hitler (1938), o líder soviético Josef Stálin (1939 e 1942), o líder britânico Winston Churchill (1940 e 1949), as tropas americanas que lutaram na Guerra da Coreia (1950), aqueles que estiveram no levante húngaro (1956), o presidente soviético Nikita Khrushchev (1957), o Papa João XXIII (1962), o líder das lutas por direitos civis dos negros Martin Luther King Jr. (1963), as mulheres americanas (1975), o líder chinês Deng Xiaoping (1978), o líder da federação sindical polonesa Solidariedade Lech Walesa (1981), o microcomputador (1982), os líderes que contribuíram para a derrocada soviética Mikhail Gorbachev (1987 e 1989) e o Papa João Paulo II (1994), o proprietário da Amazon.com Jeff Bezos (1999), o fundador do Facebook (agora “Meta”)Mark Zuckerberg (2010), os manifestantes das “revoluções de cores” (2011), entre outros.[1]
Cotejando os nomes dos premiados com as datas, pode-se observar que a escolha da Pessoa do Ano não é um raio em céu azul, podendo ser alguém que de alguma maneira interessa ao grande capital americano, ao imperialismo estadunidense. A escolha nem sempre é tão óbvia e o escolhido o pode ser por razões negativas, como foi Hitler. Na divulgação da escolha, a Time publica um pequeno texto cheio de frases curtas e apelativas, slogans. Sobre o escolhido de 1939, Stalin, foi dito o seguinte: “Joseph Stalin percorreu um longo caminho para se deificar [sic] em vida. Nenhuma lisonja é muito transparente, nenhum elogio é muito amplo para ele. Ele se tornou a fonte de toda a sabedoria socialista”.[2] E o premiado de 1957, Khrushchev, foi escolhido por denunciar esse que teria tentado ser “Deus” em vida. Mas não só por isso.
Khrushchev, tratado como o “filho de camponês e comissário do milharal desprezado pelos intelectuais veteranos do partido, eliminou todos os seus rivais sérios”[3]preencheu um dos quesitos para ser escolhido pela Time, que é o de desbancar os concorrentes. Foi assim com Roosevelt (1932) que venceu as eleições para presidente dos Estados Unidos sobre Herbert Hoover, Biden e Harris que venceram Trump na corrida eleitoral. Musk ultrapassou Bezos como homem mais rico do mundo. Os escolhidos são apresentados a partir de uma visão triunfalista do indivíduo. A diferença é que agora, a Pessoa do Ano passa a ser alguém com ampla disseminação nas redes sociais, as quais não são mais do que um produto da estetização generalizada do capital. Só no Twitter, Musk tem 66 milhões de seguidores.
O anúncio que a Time fez de Musk o chama de “taciturno homem-deus de pele azul [sic]”,o retrata como o homem mais rico do mundo, mas que não tem casa própria e que “recentemente vendeu sua fortuna”[4]. Musk aparece não só como campeão do capitalismo norte-americano, mas o que a Time faz é construir um mito sem o qual o capital não pode existir. É algo incomum, porque seu retrato é o de uma espécie de bilionário sem posses. Mas não é bem assim. Musk está à frente de empresas nas quais foram investidos vultosos capitais. Ele é diretor da empresa (startup) espacial SpaceX fundada em 2002, que desbancou gigantes da aviação e promete levar o grande capital à Marte, e da indústria automotiva Tesla Motors fundada em 2003, além de estar inserido em negócios de especulação financeira, como cripto moedas[5], entre outros.
Não é a primeira vez que Musk é escolhido para ser a cara do grande capital estadunidense. Em 2017, a revista Rolling Stone o chamou de “o arquiteto do amanhã”[6]. Mas a premiação da Time funciona como um empurrão em um momento de crise do capital e depois que Musk se viu envolvido em escândalos, como as graves falhas nos sistemas de autopilotagem dos carros Tesla que causaram acidentes, quando o acusaram de quase não pagar imposto de renda, quando usou sua conta no Twitter para publicar barbaridades, atacar adversários, protestar contra políticas que não lhe beneficiavam, etc.
A SpaceX passou a receber enormes recursos do governo norte-americano, que estabeleceu uma política de privatização do programa espacial, passando a fabricação de foguetes e naves da Nasa para empresas privadas com a promessa de produzir uma nave capaz de chegar em Marte em meados da década de 2030. Uma expedição de tal monta não deixa de ser envolta em muita especulação – não se sabe se dará certo –, que vem no centro de uma “corrida espacial”, de Musk contra Bezos, que adquiriu a empresa Blue Origin, responsável pelo lançamento de um foguetinho que fez um voo rápido de mais ou menos 10 minutos de duração.
Musk representa muito para o capitalismo estadunidense. O velho mito do self-made man precisa ser encarnado por figurões como ele, que reproduzem a imagem de empresários “prodigiosos” e “visionários”, que comandam negócios que são uma grande vitrine do capital. Não se pode dizer em que medida as empresas de Musk buscam ganhar dinheiro produzindo carros elétricos e foguetes espaciais, ou se tudo isso é parte de uma grande campanha publicitária que se apropria de recursos estatais, porque na verdade é tudo isso ao mesmo tempo. Na era das redes sociais, da imagem pela imagem, o capital se estetizou completamente, no interior de um processo de completa financeirização do capitalismo que vem de antes, desde os anos 1970. Não à toa, nesse processo de estetização generalizada do capital, o ator Robert Downey Jr. se inspirou em Musk para interpretar o empresário Tony Stark no filme “Homem de Ferro”. A revolução 4.0 do capitalismo, que busca substituir toda a força de trabalho e o ser humano por tecnologias avançadíssimas, tem em Musk uma face e um agente.
Antonio Gramsci, em sua análise do americanismo e do fordismo, diz que os novos métodos de trabalho industrial criados por Frederick Taylor e introduzidos na fábrica de automóveis de Henry Ford na segunda década do século XX eram “indissociáveis de um determinado modo de viver, de pensar e de agir; não é possível obter êxito num campo sem obter resultados tangíveis no outro”,[7] de modo que a hegemonia do capitalismo estadunidense só pode ser obtida se construir um grande consenso, e a fabricação da figura de Musk serve a esse propósito, como serviram outros empresários em seu tempo, como Ford, Donald Trump e Steve Jobs (Apple),ou ainda servem, como Bill Gates (Microsoft), entre outros. Todavia, como diz Gramsci, a hegemonia não é feita só de consenso, também é feita de força.
Musk é herdeiro de uma rica família da África do Sul, que tinha a mineração como um de seus negócios. Os veículos elétricos fabricados pela Tesla dependem da produção de baterias feitas de íons de lítio. A maior jazida desse metal relativamente raro se encontra na nossa vizinha Bolívia, com 21 milhões de toneladas de lítio. O mundo possui 80 milhões de toneladas, e 50% disso ficam no chamado “Triângulo do Lítio”, com jazidas concentradas na Argentina, Bolívia e Chile. O Brasil também tem reservas consideráveis, mas nada comparável à Bolívia. Após o golpe de 2019 que tirou Evo Morales da presidência, Musk publicou um tweet dizendo que “Vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso”. O tweet foi uma resposta dada a seguinte provocação postada no Twitter: “Você sabe o que não interessa às pessoas? O governo dos EUA organizando um golpe contra Evo Morales na Bolívia para que você possa obter lítio lá”[8].A partir daí, o golpe na Bolívia também passou a ser chamado de “Golpe do lítio”. A declaração de Musk soou como um claro apoio à subversão reacionária ocorrida no país andino e às outras que possam ocorrer para garantir a exploração dos recursos naturais que o capitalismo necessita.
Samuel Doria Medina, empresário boliviano e candidato a vice-presidente de Jeanine Áñez – presidenta interina após a derrubada de Morales –, disse que Bolsonaro e Musk estavam discutindo a abertura de uma fábrica da Tesla no Brasil, e propôs que deveriam aproveitar para “construir uma giga fábrica no Salar de Uyuni [aonde ficam as grandes jazidas] para fornecer baterias de lítio”.[9]
Com a derrota do golpe boliviano e a crise brasileira, isso, em parte, não parece ter passado de uma série de tweets – por enquanto. De outra parte, percebe-se que a face sedutora e “empreendedora” do capitalismo convive com a face imperialista, disposta a derrubar governos e destruir países para satisfazer seus interesses, sobretudo agora que os Estados Unidos têm no capitalismo chinês o seu maior desafio. Musk não só sabe disso[10] como representa a era do capitalismo estetizado, no qual a produção generalizada de mercadorias se faz acompanhar da estetização generalizada do capital, que, por sua vez, busca estetizar a vida, a sociedade, a política, escondendo as relações sociais reais.
*Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves é professor de história na Universidade Estadual de Goiás (UEG). Autor do livro A restauração conservadora da filosofia: o Instituto Brasileiro de Filosofia e a autocracia burguesa no Brasil (1949-1964) (Edições Gárgula).
Notas
[1] A lista completa está disponível em: http://content.time.com/time/specials/packages/completelist/0,29569,2019712,00.html, acesso em 16/12/2021.
[2] LEVINSTEIN, Joan. Joseph Stalin: 1939, 1942 (Notorious Leaders). Disponível em: http://content.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,2019712_2019694_2019592,00.html, acesso em: 16/12/2021
[3] LEVINSTEIN, Joan. Nikita Khrushchev: 1957 (Notorious Leaders). Disponível em: http://content.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,2019712_2019694_2019593,00.html, acesso em 16/12/2021.
[4] BALL, Molly; KLUGER, Jeffrey; DE LA GARZA, Alejandro. 2021 Person Of The Year: Elon Musk.https://time.com/person-of-the-year-2021-elon-musk/,acesso em 16/12/2021.
[5] IstoÉ Dinheiro. Conheça as 3 criptomoedas escolhidas por Elon Musk. Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/conheca-as-3-criptomoedas-escolhidas-por-elon-musk/,.
[6] STRAUSS, Neil. Elon Musk: The Architect of Tomorrow. Disponível em: https://www.rollingstone.com/culture/culture-features/elon-musk-the-architect-of-tomorrow-120850/.
[7] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, volume 4: Temas de cultura, ação católica, americanismo e fordismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 266.
[8] PARÁ, Lucas; Redação Brasil de Fato. “Vamos dar golpe em quem quisermos”, diz Elon Musk, dono da Tesla, sobre a Bolívia. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/25/vamos-dar-golpe-em-quem-quisermos-elon-musk-dono-da-tesla-sobre-a-bolivia.
[9] Idem.
[10] WATERS, Richard (Financial Times). “Estou apenas tentando levar pessoas a Marte e libertá-las da chatice de dirigir carros”, diz Elon Musk. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/12/estou-apenas-tentando-levar-pessoas-a-marte-e-liberta-las-da-chatice-de-dirigir-carros-diz-elon-musk.shtml, acesso em 17/12/2021. Musk declarou: “Acho que as pessoas estão se esquecendo um pouco o progresso que a China está fazendo. É incrível. […] A ética do trabalho, o mero número de pessoas inteligentes e trabalhadoras na China é maravilhoso de se observar – ao mesmo tempo incrível e ligeiramente assustador. E elas vão realizar muitas coisas.”