Por AFRÂNIO CATANI*
Comentário sobre o livro de Don DeLillo
Há poucas semanas, no quarteirão onde moro aqui em São Paulo, a companhia responsável pelo fornecimento de energia elétrica (que presta um serviço de baixa qualidade a um preço alto) efetuou o corte desse bem durante quase dez horas de um domingo tórrido, com a finalidade de trocar alguns postes e transformadores. A rua foi interditada e ocupada por quatro caminhões gigantescos, equipados de tudo o que se possa imaginar para o trabalho previsto, e também por uma dezena e meia de dedicados operários e técnicos.
O labor foi exaustivo e os homens labutaram sem cessar. Fiquei sem poder utilizar qualquer equipamento eletrônico – para piorar, a bateria do meu celular arriou após às 14 horas. Em suma, durante quase seis longas horas o contato com o mundo exterior ao apartamento entrou em compasso de espera.
Lembrei-me dessa situação ao me deparar com O silêncio, de Don De Lillo (1936), pequeno romance que se lê em pouco tempo, cuja temática é um misterioso apagão tecnológico que ocorre em…2022.
Esse escritor estadunidense, que em seus livros exteriores explorou as relações ambíguas entre tecnologia e identidade, é um homem que pode ser considerado estranho para muitos habitantes do planeta. Traduzido em diversos idiomas – casos de, ao menos, O ruído branco, Cosmópolis, O homem em queda -, o autor declarou ao repórter Walter porto que não tem celular e nem usa computador, tendo concedido a entrevista por telefone fixo, de seu apartamento em Bronxville, no subúrbio de Nova York. Apressa-se em acrescentar, entretanto, que sua esposa se vale de toda a tecnologia disponível: apenas ele não a quer utilizar diretamente: “Eu sou um homem que coloca palavras no papel. Foi isso que me guiou e eu não mudei muito (…) Eu só não quero trabalhar diretamente na tela. Não estou trabalhando hoje em nova ficção, mas quando acontece de minha máquina de escrever precisar de conserto, eu uso os velhos papel e caneta. Isso me ajuda a ver palavras e frases nas páginas, a encontrar correspondências visuais. O elemento visual sempre foi importante para mim” (Porto, 2021, p. C1).
DeLillo provoca o repórter da Folha, pedindo para ele imaginar uma catástrofe tecnológica onde a internet parece estar sempre à beira do colapso. Em O silêncio, as consequências do “misterioso apagão” são vividas por cinco personagens que se preparam para um jantar em Nova York num dia de 2022. Pode-se ler nas orelhas do livro que nesse dia há várias consequências desse evento que “causou pane em aviões, apagou telas de celulares e tornou inviável a civilização como a conhecemos.” De Lillo adensa o caráter especulativo “de uma ficção muito particular, que joga o leitor num realismo tão acurado quanto distorcido, no qual os ambientes não são bem ambientes, os diálogos não são bem diálogos, os sentidos parecem às vezes tão claros e outras vezes tão distantes, quase impalpáveis. Fé, cultura, desejo, solidão: tudo é filtrado por ‘frases pelo meio, palavras soltas, repetições’, que reverberam a perplexidade diante de ‘coisas demais vindas de um código-fonte estreito demais’. Ou, na tradução humanista do impasse, ‘uma inteligência artificial que trai quem nós somos e como nós pensamos’”.
Nesse encontro se invertem todas as certezas e também as incertezas entre os participantes: um casal que escapou de um desastre aéreo, um jovem professor de física, a ex-professora dele e seu marido, fã de apostas esportivas.
O casal Tessa Berens e Jim Kripps estão retornando de Paris para Newark, um dos principais aeroportos da área metropolitana de Nova York. Tereza, “pela escura, de origem caribenha, europeia e asiática, publicava poemas com frequência em revistas literárias. Também atuava, on-line, como editora de um grupo consultivo que respondia a perguntas de assinantes sobre assuntos que iam da perda de audição ao equilíbrio corpóreo à demência senil” (p. 13). Jim, por sua vez, era “um homem que trabalhava como regulador de sinistros para uma empresa de seguros” (p. 41). Teresa escreve durante o voo e diz ao marido que “só quer chegar em casa e olhar para uma parede vazia” (p. 19). São aguardados para assistirem ao Super Bowl, o jogo que define o campeão da National Football League (NFL), a liga profissional de futebol americano dos Estados Unidos, normalmente assistido por mais de 100 milhões de pessoas, constituindo-se no evento de maior audiência da televisão dos EUA.
Quem os aguarda é o casal Diane Lucas e Max Stenner, além de Martin Dekker. Diane é uma professora aposentada de física que lecionou para jovens durante décadas, enquanto Max perdeu e perde fortunas em apostas esportivas. Sobre seu casamento, ela diz que são “trinta e sete anos, não de infelicidade, mas num estado de rotina massacrante, duas pessoas tão grudadas uma na outra que um belo dia uma vai esquecer o nome da outra” (p. 25). Martin, trinta e poucos anos, “um pouco encurvado para frente” (p. 24), ex-aluno de Diane e também professor, estuda compulsivamente o Manuscrito de 1912 sobre a teoria especial da relatividade, de Albert Einstein (p. 27).
O apartamento de Diane e Max está “equipado” para a partida final, com bastante comida, salgadinhos e bebidas. Mas…no interior do avião prestes a aterrissar sentem-se fortes pancadas em algum lugar abaixo dos passageiros. “A tela se apagou. Piloto falando francês, depois ninguém falando em inglês” (p. 22). No outro cenário, as imagens na tela da tevê começaram a estremecer. Somem as imagens. “Eles ficaram olhando e escutando. Mas não havia nada para escutar. Max pegou o controle remoto que estava no chão bem diante dele e apertou várias vezes o botão do volume, mas não havia áudio. Então a tela ficou escura (…) Ele e Diane checaram seus celulares. Sem sinal. Ela atravessou a sala e foi até o telefone da casa, o fixo, uma relíquia sentimental. Mudo. O laptop, nada. Ela foi até o computador no cômodo ao lado e tocou em diversos lugares, mas a tela permaneceu cinzenta” (p. 29-30).
Martin suspeita dos chineses, os “bárbaros de Beijing”, achando que “eles estão rindo da gente. Deram início a um apocalipse cibernético seletivo. Eles estão assistindo [ao futebol], nós não” (p. 30).
Jim se machucou, sofreu pequeno corte na testa, quando da aterrissagem e, com Tessa, dirigiu-se ao hospital, onde foi medicado. As luzes de lá piscavam, uma funcionária burocrática comentou com eles: “Estamos sem e-mail (…) Mais ou menos impensável. O que é que a gente faz ? Em quem a gente põe a culpa?” (p. 61). E continuou sua fala, no escuro: “Quanto mais avançados, mais vulneráveis. Nossos sistemas de vigilância, nossos dispositivos de reconhecimento facial, nossa resolução de imagens. Como é que a gente sabe quem a gente é? Sabemos que está ficando frio aqui. O que vai acontecer quando a gente tiver que ir embora ? Sem luz, sem aquecimento (…) se os metrôs e os ônibus não estiverem funcionando, se os táxis tiverem desaparecido, o elevador do prédio imobilizado, e se isso e se aquilo…” (p. 61-62).
As pessoas constatam que está tudo apagado, postes de iluminação, lojas, prédios, arranha-céus, todas as janelas em todos os lugares (p. 70). Martin entende que se chegou à beira da terceira Guerra Mundial (p. 79). Pergunta: “será uma proteção contra o silêncio global que marca as nossas horas, minutos e segundos? (p. 79). Max contra-ataca: “Estamos sendo zumbificados. Estamos sendo apaspalhados” (p. 83). Ele sai de casa, anda pelo bairro e tem dificuldade em voltar para casa, tendo que se “acotovelar para passar no meio daquela multidão, pessoas engrunhidas de frio, mil rostos por minuto, gente lutando, dando socos, um pequeno tumulto aqui e ali, xingamentos subindo no ar” (p. 93).
O jovem Martin, olhando para os dedos de suas próprias mãos abertas, vaticina: “o mundo é tudo, o indivíduo, nada” (p. 106). Mas antes, considerando que já se estava deflagrada a Terceira Guerra Mundial, com o apagão geral, cita passagem dita por Einstein, que aparece como epígrafe do livro de DeLillo: “Não sei com que armas se lutará na Terceira Guerra Mundial, mas na Quarta Guerra Mundial será com paus e pedras.”
*Afrânio Catani é professor titular aposentado da Faculdade de Educação da USP e, atualmente, professor sênior na mesma instituição.
Referências
Don DeLillo. O silêncio (trad. Paulo Henrique Britto). São Paulo: Companhia das Letras, 2021, 110 págs.
Walter Porto. Cacos da civilização. “Ilustrada”, Folha de S. Paulo, 12. 09. 2021, p. C1-C2.