Por Lincoln Secco*
A História do PT é mais do que a de uma organização. É de todo o vasto campo popular que se constituiu através e além dele. Como um partido desse campo o PT carrega em si as suas contradições.
Quando o Partido dos Trabalhadores foi fundado em 1980 ele registrou 26 mil filiados. No ano seguinte eram 210.930. Era uma experiência única na história brasileira. Nenhum outro tinha aquelas características. Organizava-se no interior da sociedade civil (ainda que apoiado por alguns políticos do MDB) e já era uma agremiação numericamente importante. Só o antigo PCB podia apresentar características semelhantes, mas com uma incidência muito menor na estrutura de poder do país, embora maior na vida cultural.
No entanto, em seu período de formação (1978-1984), o PT estava longe de se fixar como uma organização partidária tout court. Possuía direções provisórias em todo o país, mas apresentava na prática uma estrutura federativa, com uma forte dinâmica horizontal.
Originalidade
Os primeiros observadores do partido deram ênfase ao chamado novo sindicalismo que teria se espraiado do ABC paulista para o restante do país. Captavam uma parte do processo de formação, pois Lula e outros sindicalistas viajavam para fundar diretórios regionais e municipais.
No senso comum era um aglomerado de ex-revolucionários, sindicalistas radicais e católicos progressistas. Essa leitura era obviamente restrita. Foi na virada dos anos 1980-1990 que os estudos pioneiros de três intelectuais acadêmicas começaram a adensá-la. Elas deram corpo documental e analítico a uma leitura mais complexa sem romper com aquilo que a maioria dos militantes e observadores da cena política ressaltava na época de fundação: o ineditismo do PT.
A originalidade de um modelo de auto-organização dos marginalizados à luz da história partidária brasileira foi acentuada no estudo seminal de Raquel Meneghello. Margareth Keck radicalizou o argumento e exibiu um partido quase como uma anomalia política: uma criação ex nihilo. Mas também revelou o emaranhado único de tendências e visões conflitantes em que surgiu o PT. Por fim, Marcia Berbel escreveu a primeira abordagem histórica acadêmica baseada nos documentos disponíveis à época, com destaque para o uso de depoimentos.
Pesquisas posteriores buscaram explicar as transformações que sobrevieram nos anos 1990: a mudança de discurso, a relação com a imprensa, as disputas internas, a evolução do programa econômico etc. Além disso, livros de arrependidos, ressentidos ou simples dissidentes emitiram julgamentos sobre corrupção, moderação, traição, mudanças de direção, conformação de uma nova classe burocrática, concorrência interna desleal etc. Seria impossível percorrer aqui toda essa produção.
Na área acadêmica expôs-se a transição de uma agremiação de massas a um partido catch all, profissional-eleitoral ou “partido cartel”. Mas um dos mais importantes estudos foi o do professor da Unicamp Oswaldo Amaral que demonstrou, entre muitas outras coisas, a dificuldade de enquadrar o PT num único tipo ideal descrito pela literatura acadêmica.
Monografias e bases
Na sua primeira eleição em 1982 o PT elegeu apenas oito deputados, sendo seis por São Paulo. Uma bancada menor do que a do PCB que elegia parlamentares através do MDB. Para as assembleias legislativas foram eleitos 12 deputados petistas, sendo nove em São Paulo; e para as câmaras municipais 118 vereadores, dos quais 78 em São Paulo.
Aqueles resultados eleitorais associados à mística das greves do ABC é que forneceram a aparência de um partido mais paulista do que ele foi em termos de força social. Muito mais do que um partido que se espraiava a partir do principal centro industrial do país, conforme as primeiras leituras dos anos 1980, o que o acúmulo de monografias acadêmicas permite vislumbrar hoje é algo mais complexo social e regionalmente.
A abordagem histórica permitiu reconstituir diferentes momentos em que as bases partidárias brotaram de maneira autônoma conformando uma rede de vários PTs, o que inviabiliza compreender sua história a partir de um único movimento de força centrípeta por mais significativo que ele possa ter sido. A pluralidade de experiências regionais e locais naturalmente foi eclipsada ao longo dos anos, mas foi a marca indelével dos anos primaveris do PT. E o partido continuou a se criar ou recriar em muitos lugares, o que provavelmente foi o caso do nordeste no início do século XXI.
Partido inapreensível
O PT podia muito bem ser fundado num Convento Carmelita, na periferia de Fortaleza; ter um núcleo de classe média alta no Jardim Marajoara na capital paulista; ou numa casa de um militante trotskista desempregado e de sua mãe católica no bairro de Engenheiro Goulart, zona leste paulistana, onde os e as militantes se orgulhavam de ter fundado o primeiro núcleo petista antes da reunião do Colégio Sion.
Mas era uma agremiação nada homogênea socialmente. Na manhã de domingo em que o PT foi fundado naquele Colégio o petroleiro Jacó Bittar era o presidente da mesa de trabalhos enquanto o médico e Senador Henrique Santillo (GO) foi o secretário que preparou a ata da reunião.
Lideranças reconhecidas do início, mas ligadas ao trabalho manual e que compuseram as primeiras direções partidárias nunca vieram a ter cargos públicos executivos destacados. Quando se olhava para as figuras emblemáticas do período de formação do PT apareciam Osmarino Amâncio entre os seringueiros do Acre; Avelino Ganzer entre agricultores do oeste do Pará; Manoel da Conceição no interior do Maranhão entre muitos outros.
Por outro lado, alguns políticos profissionais que estiveram envolvidos na criação do partido como o supracitado Santillo afastaram-se posteriormente. E nenhuma outra organização brasileira elegeu tantos trabalhadores manuais a cargos executivos importantes: Benedita da Silva, Lula e Marina Silva foram exemplos disso.
Não era fácil caracterizar aquele partido apesar da carta de princípios que afirmava se tratar de um “partido sem patrões”. Já em meados dos anos 1980 a aproximação com empresários foi mediada por Lawrence Pih do Moinho Pacífico. Na bancada federal podiam conviver o metalúrgico Djalma Bom e um político já estabelecido da família Matarazzo. Em Cachoeiro do Itapemirim (ES) o PT lançou em 1982 como candidatos a Prefeito e a vice-Prefeito, Pedro Correia Reis, trabalhador da Construção Civil e Carlos Gamboa, ferroviário. No interior paulista muitos profissionais liberais, médicos e professores universitários se candidataram como aconteceu em Botucatu e Sorocaba. Mas também em outros estados o fenômeno se repetiu.
Por outro lado as trajetórias das pessoas são dinâmicas e dificilmente aprisionadas em rótulos estanques. Numa ocasião em que este autor se fez presente um notável militante trotskista da oposição metalúrgica de São Paulo se irritou porque alguém o qualificou como ex-estudante da USP. Mas um dos mais notáveis fundadores do PT foi Paulo Skromov: ele dirigiu o Sindicato dos Coureiros, lugar emblemático da esquerda petista nos anos 1980 e tinha estudado História na USP.
Militantes trotskistas e comunistas de classe média foram proletarizados ou mudaram de vida por conta própria, ou pela carestia ou uma miríade de motivações. Alguns fizeram carreira sindical e jamais retornaram à sua condição anterior. Operários do ABC tentaram abrir um pequeno negócio, como o piauiense Raimundo Nonato que pertenceu à diretoria cassada de 1981 e aguardou muitos anos na justiça a sua aposentadoria sem deixar de militar.
A presença do PT foi tão impactante que dividiu grupos de teatro engajados, suscitou um núcleo não oficial na PM paulista, forjou lideranças no movimento de saúde e habitação, entre psicólogos e arquitetos, professores e estudantes, empregadas domésticas e pequenos comerciantes, gays e lésbicas, donas de casa e integrantes do movimento negro.
As reuniões dos núcleos de base foram improvisadas em centros espíritas, seringais, teatros, associações de amigos de bairro, fazendas ou moradias urbanas ocupadas, sindicatos, sedes de torcidas de futebol, grêmios de categorias profissionais da classe média, restaurantes e bares emprestados, salões paroquiais ou até mesmo em praças públicas. Essa vasta rede ainda não tinha um centro que lhe desse uma força institucional.
Dinâmicas superpostas
Claro que não se pode simplesmente inventar um passado mítico de um partido só de militantes dedicados a uma causa. Em 1982 eram 13% os filiados ao partido inscritos em núcleos de base. Na consulta sobre a participação no colégio eleitoral em 1984 menos de 10% de pessoas filiadas votaram. Mesmo assim os núcleos envolveram milhares de pessoas de maneira inédita no Brasil.
O esvaziamento dos núcleos foi atribuído à profissionalização partidária. No entanto, costumamos esquecer que houve duas faces daquele processo: o primeiro foi uma profissionalização ditada pela crescente presença nos mandatos eletivos. Militantes foram transferidos para assessorias. Outra faceta, de menor escala, foi a lógica das tendências.
Enquanto a composição da direção era majoritária, isto é, a Articulação comandava sozinha a Comissão Executiva Nacional, vigorou a ideia de que as tendências de esquerda representariam a base contra o centralismo da corrente dominante. Por sua vez, esta se apresentava como detentora da representação das bases contra o seu sequestro por militantes de “duas camisas”, os quais seriam membros de verdadeiros partidos no interior do PT.
A adoção da proporcionalidade na composição das direções partidárias apaziguou os discursos e, ainda que a Articulação fosse de fato muito mais popular, revelou-se que ninguém tinha o monopólio da representação das bases. E estas, por sua vez, haviam perdido o poder deliberativo. Ninguém decidiu isso sozinho. Houve transformações internas irresistíveis que se combinaram a acordos conscientes.
Por vários motivos aquela militância de base não podia entrar numa disputa que exigia tempo, linguagem especializada e recursos financeiros, mesmo parcos. A documentação mostra algo da reação “obreirista” contra o típico “capa preta” que passava a dirigir reuniões, distribuir cargos e administrar pessoas.
O movimento dos formuladores da Articulação não visava manter a independência das bases e sim a exclusão das correntes de esquerda. E estas por sua vez procuravam um espaço que lhes permitisse manter quadros profissionalizados.
Não quero dizer com isso que ambos os lados não tivessem projetos políticos legítimos e que a Articulação não reunisse quadros que se formaram no próprio movimento social. Nem que, em menor medida, isso não acontecesse nos agrupamentos à sua esquerda. O que se trata aqui é de narrar um processo objetivo de burocratização e como ele foi vivenciado no cotidiano da militância e reformulado teoricamente nas teses dos dirigentes.
A Articulação tinha uma imagem de anti-tendência, o que a impedia de se comportar integralmente como tendência partidária, embora o fosse. Seus intelectuais também eram provenientes de correntes de esquerda anteriores ao PT. Tanto quanto as demais tendências eles faziam “entrismo”, só que no coração da ala sindicalista e popular majoritária.
Os intelectuais orgânicos da Articulação envidaram todos os esforços para conferir aos líderes populares e sindicais um programa e uma linguagem socialista alternativa ao comunismo e ao trotskismo. Mas isso não foi suficiente para consolidá-la.
A Articulação só podia manter a união enquanto as correntes de esquerda eram bem menos organizadas e menores. Com o crescimento destas apelou-se à expulsão de algumas, mas já era uma ação autoritária de desespero e a tendência não sobreviveu após a conquista da proporcionalidade no VII Encontro Nacional (1990).
Conclusão
Este é o partido que os anos 1980 legaram ao Brasil. No decênio seguinte os núcleos de base perderam paulatinamente qualquer poder, embora jamais deixassem de existir. A formulação ideológica se deu cada vez mais fora das tendências e nas margens inorgânicas do partido, em mandatos. E os militantes que frequentavam cotidianamente espaços partidários eram empregados que não podiam contrariar o “capa-preta” que os comandava.
É evidente que aquela militância não era só de gabinete, fazia a interface dos dirigentes e parlamentares com os movimentos sociais e encontrava (como ainda o faz) formas silenciosas de resistência ou de influenciar decisões políticas.
A História do PT é mais do que a de uma organização. É de todo o vasto campo popular que se constituiu através e além dele. Como um partido desse campo o PT carrega em si as suas contradições.
O PT que chega aos 40 anos é muito mais o partido que cresceu a partir do segundo mandato de Lula do que aquele descrito aqui. Suas disputas internas não são mais de teses defendidas e acordadas por delegados de base apenas, mas fruto de um processo de eleição direta (PED) de uma organização com mais de 2 milhões de filiados.
No entanto, o preço que o PT pagou ao longo dos anos 1990 em termos de burocratização e institucionalização lhe rendeu a condição de ser opção de poder e isso não foi pouca coisa. Outros partidos muito mais radicais, porém menores, nunca sofreram a mesma oposição e ódio que o PT porque jamais ameaçaram ocupar o governo.
Embora o PT tivesse temperado suas notáveis políticas sociais com a conciliação de classes isso não adiantou. Quando o orçamento estatal não permite a convivência de interesses opostos, as lutas de classes se acirram e a esquerda no governo é descartada por um golpe de mão.
Pode esse partido resgatar antigas propostas como a de uma reunião inter-núcleos dos anos 1980 e estimular encontros de núcleos de base que ainda resistem? Sem alternativas, o campo popular ainda o reconhecerá como sua principal expressão nas eventuais eleições de 2022? À segunda pergunta é provável que a resposta seja sim. Mas se à primeira a resposta for não, então poderemos formular outra muito mais importante: o que um PT incapaz de mudar faria de diferente no governo?
*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP.
Referências
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