Por CARLOS EDUARDO BELLINI BORENSTEIN*
O Lulismo tem um forte enraizamento político, econômico e social na região, que não se deve apenas às políticas sociais
No dia 20 de fevereiro publiquei no site A Terra é Redonda, o artigo “O antipetismo paulista”, que levantou a seguinte hipótese: apesar da existência de um voto antipetista em São Paulo (SP), temos sinais de que o voto contrário ao PT perdeu força no maior colégio eleitoral do país, regredindo para um tamanho similar a 2002, quando o ex-presidente Lula (PT) venceu a eleição presidencial no Estado.
Tão importante quanto observar o desempenho eleitoral do PT em SP é olhar a segunda região mais populosa do país, o Nordeste, que reúne os estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe, concentrando, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mais de 39 milhões de votos – 26,82% do eleitorado nacional.
O Nordeste é hoje o grande reduto eleitoral do lulismo, movimento político de longo prazo que começou a ser estruturado em 2003, ainda durante o primeiro governo Lula, e foi definido pelo cientista político André Singer, no celebre artigo “Raízes sociais e ideológicas do lulismo”, publicado em 2009, como um projeto de inclusão social das camadas populares, através de programas de transferência de renda como o Bolsa Família, a valorização do salário mínimo e o acesso ao crédito aos mais pobres sem a ocorrência de um processo de radicalização política.
Embora essa identificação das camadas populares com o lulismo esteja presente em todo Brasil, há uma forte ligação desse movimento, conforme poderemos observar nos dados que serão apresentados a seguir, com a região Nordeste. Tal fenômeno político/eleitoral tem sido poderoso na região. A partir das eleições de 2006, os candidatos petistas ao Palácio do Planalto – Lula (2006), Dilma (2010 e 2014) e Haddad (2018) – venceram as eleições na região com expressivas votações, superando os 60% dos votos válidos em muitos estados nordestinos.
Porém, até a crise do mensalão, em 2005, o PT, inclusive Lula, tinha uma votação mais concentrada nas classes médias dos grandes centros urbanos, encontrando dificuldades para avançar no Nordeste, assim como no chamado “Brasil profundo”. No entanto, como consequência da crise política do mensalão, a partir de meados de 2005, ancorado na popularidade de Lula, o governo e, consequentemente o partido, operam o que André Singer definiu como realinhamento eleitoral. Ou seja, ocorre uma migração da base eleitoral lulista para os segmentos de menor renda, moradores das periferias e do “Brasil profundo”, majoritariamente concentrados na região Nordeste, tendo como pano de fundo este projeto político de longo prazo representado pelo lulismo.
Conforme poderemos observar nos dados que serão apresentados sobre o comportamento eleitoral dos nordestinos em eleições presidenciais, isso nem sempre foi assim. No primeiro turno das eleições de 1989, por exemplo, Fernando Collor (PRN) venceu aquela disputa em todos os estados do Nordeste no primeiro turno (os números se referem ao percentual de votos válidos): Alagoas (64,38%), Bahia (34,71%), Ceará (33,09%), Maranhão (46,93%), Paraíba (35,10%), Pernambuco (37,74%), Piauí (39,75%), Rio Grande do Norte (33,37%) e Sergipe (50,81%). Collor também foi vitorioso no Nordeste no segundo turno em Alagoas (76,07%), Bahia (51,57%), Ceará (56,91%), Maranhão (62,44%), Paraíba (54,93%), Piauí (58,92%), Rio Grande do Norte (52,59%) e Sergipe (65,89%), tendo perdido para Lula (PT) somente em Pernambuco.
Praticamente o mesmo fenômeno ocorreu em 1994, quando FHC (PSDB) também venceu Lula (PT) em todos os estados da região: Alagoas (76,18%), Bahia (52,40%), Ceará (61,19%), Maranhão (62,25%), Paraíba (63,05%), Pernambuco (53,81%), Piauí (52,51%), Rio Grande do Norte (64,29%) e Sergipe (47,37%).
E também se repetiu nas eleições presidenciais de 1998, quando FHC também derrotou Lula em todos estados nordestinos: Alagoas (54,79%), Bahia (50,91%), Ceará (30,30), Maranhão (48,62%), Paraíba (45,25%), Pernambuco (57,22%), Piauí (48,09%), Rio Grande do Norte (50,71%) e Sergipe (47,37%).
Em 2002, tem início as vitórias petistas na região. No primeiro turno daquela eleição, embora Lula (PT) tenha perdido, em Alagoas, para José Serra (PSDB) e, no Ceará, para Ciro Gomes (PPS), o petista foi vitorioso nos demais estados da região: Bahia (55,27%), Maranhão (40,88%), Paraíba (47,76%), Pernambuco (46,43%), Piauí (46,84%), Rio Grande do Norte (43,67%) e Sergipe (44,27%).
No segundo turno, com exceção de Alagoas, Lula venceu em todos os estados do Nordeste: Bahia (65,69%), Ceará (71,78%), Maranhão (58,48%), Paraíba (57,01%), Pernambuco (57,06%), Piauí (60,73%), Rio Grande do Norte (58,63%) e Sergipe (57,49%).
Apesar do resultado expressivo de Lula no Nordeste nas eleições de 2002, principalmente no segundo turno, conforme veremos a seguir, a partir das eleições de 2006, já com o lulismo mais fortalecido, a votação nos candidatos presidenciais petistas registra um salto significativo na região, consequência desse projeto lulista de longo prazo e também do realinhamento eleitoral.
Sobre isso, vale registrar que, em 2002, o voto em Lula apresenta uma certa proporcionalidade em todos os estados e regiões. Naquela disputa, Lula perdeu para Serra somente em Alagoas, tendo vencido em todos os demais estados do país. A partir de 2006, teremos uma modificação disso. A partir do realinhamento eleitoral, o lulismo passa a se concentrar majoritariamente no Nordeste, perdendo terreno nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste.
No primeiro turno da eleição presidencial de 2006, Lula venceu Geraldo Alckmin (PSDB) em todos os colégios eleitorais da região: Alagoas (46,62%), Bahia (66,65%), Ceará (71,22%), Maranhão (75,50%), Paraíba (65,31%), Pernambuco (70,93%), Piauí (67,28%), Rio Grande do Norte (60,16%) e Sergipe (47,33%). Fazendo um comparativo com a votação de Lula no primeiro turno de 2002 no Nordeste, podemos observar um importante crescimento. Em 2002, Lula obteve mais de 50% dos votos válidos apenas na BA. Já em 2006, Lula conquistou mais de 60% dos votos válidos, já no primeiro turno, em sete dos nove estados da região.
No segundo turno de 2006, Lula também foi vitorioso em todos os estados nordestinos: Alagoas (61,44%), Bahia (78,08%), Ceará (82,37%), Maranhão (84,63%), Paraíba (75,01%), Pernambuco (78,48%), Piauí (77,32%), Rio Grande do Norte (69,72%) e Sergipe (60,15%). Comparado com o resultado de 2002, a vitória eleitoral de Lula foi novamente mais expressiva, tendo conquistado mais de 70% dos votos válidos em seis dos nove estados nordestinos no segundo turno.
O domínio do lulismo no Nordeste se reproduziu novamente no primeiro turno da eleição presidencial de 2010. Dilma Rousseff (PT) venceu José Serra (PSDB) em todos os estados da região: Alagoas (50,92%), Bahia (62,62%), Ceará (66,30%), Maranhão (70,65%), Paraíba (53,21%), Pernambuco (61,74%), Piauí (67,09%), Rio Grande do Norte (51,76%) e Sergipe (47,67%). Em 2010, apesar de no primeiro turno Dilma ter conquistado mais de 60% dos votos válidos em cinco dos nove estados da região, número inferior ao desempenho de Lula em 2006, Dilma obteve percentuais para vencer a eleição já no primeiro turno (mais de 50% dos votos válidos) em todos os colégios eleitorais do Nordeste.
No segundo turno de 2010, Dilma também superou Serra em todos os estados nordestinos: Alagoas (53,63%), Bahia (70,85%), Ceará (77,35%), Maranhão (79,09%), Paraíba (61,55%), Pernambuco (75,65%), Piauí (69,98%), Rio Grande do Norte (59,54%) e Sergipe (53,56%). Ou seja, Dilma conquistou mais de 60% dos votos válidos em seis dois nove estados do Nordeste, sendo que em quatro deles teve mais de 70% dos votos.
No primeiro turno de 2014, apesar da acirrada disputa com Aécio Neves (PSDB), Dilma Rousseff mais uma vez venceu em todos os estados da região, reforçando a força do projeto lulista no Nordeste: Alagoas (49,94%), Bahia (61,44%), Ceará (68,30%), Maranhão (69,56%), Paraíba (55,61%), Pernambuco (44,22%), Piauí (70,61%), Rio Grande do Norte (60,06%) e Sergipe (54,93%). No pleito de 2014, Dilma já havia obtido mais de 60% dos votos válidos no primeiro turno em cinco dos nove estados do Nordeste.
No segundo turno de 2014, Dilma também venceu, mais uma vez, em todos os colégios eleitorais da região: Alagoas (62,12%), Bahia (70,16%), Ceará (76,75%), Maranhão (78,76%), Paraíba (64,26%), Pernambuco (70,20%), Piauí (78,30%), Rio Grande do Norte (69,96%) e Sergipe (67,01%). Conforme podemos observar, Dilma fez mais de 60% dos votos válidos em todos os estados da região no segundo turno, sendo que em cinco deles conquistou mais de 70%.
Mesmo na derrota de Fernando Haddad (PT) para Jair Bolsonaro (PSL) em 2018, o lulismo alavancou Haddad no Nordeste. Com a exceção do Ceará, Haddad venceu em todos os estados do Nordeste no primeiro turno: Alagoas (44,75%), Bahia (60,28%), Maranhão (61,26%), Paraíba (45,46%), Pernambuco (48,87%), Piauí (63,40%), Rio Grande do Norte (41,19%) e Sergipe (50,09%). No entanto, vale ressaltar que a votação de Haddad no primeiro turno foi mais baixa que as obtidas por Lula (2006) e Dilma (2010 e 2014).
Apesar do lulismo ter perdido capital político nas eleições de 2018, mesmo assim, Haddad ainda obteve 60% dos votos em três estados do Nordeste no primeiro turno, número bastante expressivo se considerarmos que Lula estava impedido de fazer campanha, existia um forte antipetismo no país e o lavajatismo, responsável por criar as bases do bolsonarismo nos segmentos mais conservadores da sociedade brasileira, seduzia parte importante do eleitorado.
Apesar desta conjuntura adversa ao lulismo, Haddad venceu Bolsonaro em todos os estados nordestinos no segundo turno: Alagoas (59,92%), Bahia (72,69%), Ceará (71,11%), Maranhão (73,26%), Paraíba (64,98%), Pernambuco (66,50%), Piauí (77,05%), Rio Grande do Norte (63,41%) e Sergipe (67,54%). Conforme podemos observar, Haddad obteve cerca de 60% dos votos válidos em todos os estados da região. Ou seja, nem mesmo a conjuntura adversa foi capaz de deter a força do lulismo na região.
Embora ainda exista uma leitura que relacione o comportamento eleitoral dos nordestinos apenas a influência dos programas sociais criados na Era Lula, há sinais que o projeto lulista possui raízes mais profundas na região.
É claro que a lembrança positiva da Era Lula, principalmente no que diz respeito a ascensão social de milhões de brasileiros para a classe média, tem grande peso eleitoral. Porém, de outro lado, não há como desconsiderar a existência de uma identificação de classe de parcelas do eleitorado nordestino com Lula, que além de ter nascido em Garanhuns, em Pernambuco, possui uma trajetória de vida que cria uma identificação para além da questão econômica. Prova disso é o desempenho eleitoral de Fernando Haddad no Nordeste em 2018, quando repetiu no segundo turno as votações que Lula e Dilma tiveram de 2006 a 2014.
A força eleitoral do lulismo permanece em alta do Nordeste. Segundo a pesquisa divulgada pelo instituto Ipespe no dia 25 de fevereiro, Lula teria hoje 55% das intenções de voto na região. O segundo colocado é Jair Bolsonaro (PL) com 20%. Os ex-ministros Sergio Moro (Podemos) e Ciro Gomes (PDT) tem, respectivamente, 6% e 11%, entre os nordestinos. E o governador de SP, João Doria (PSDB), apenas 1%.
Considerando apenas os votos válidos – excluindo brancos, nulos e indecisos – Lula teria hoje no Nordeste cerca de 58% dos votos válidos. Apesar de não ter sido divulgada a segmentação da votação por região na simulação de segundo turno, é possível que Lula registre 70% ou mais dos votos válidos na maioria dos estados nordestinos.
Como vem ocorrendo nos últimos 20 anos, o Nordeste terá um voto majoritariamente orientado em favor do lulismo nas eleições deste ano. Com base na série histórica das eleições presidenciais na região, é possível perceber que temos uma parcela majoritária do eleitorado nordestino, que já votou em Collor e FHC (de 1989 a 1998), e passou a votar em Lula/PT a partir de 2002, não trocando mais seu voto.
Como o PT está fora do governo federal desde 2016, os dados apresentados colocam em xeque o discurso que o voto nordestino é orientado apenas pelas políticas de distribuição de renda, o que reforça a hipótese de que o Lulismo tem um forte enraizamento político, econômico e social na região. Trata-se de um fenômeno que, embora não seja definitivo, está consolidado há duas décadas no Nordeste, podendo ser decisivo para o desfecho da eleição presidencial de outubro.
*Carlos Eduardo Bellini Borenstein é graduado em ciência política ULBRA-RS.