Cantos dos infernos

Imagem: Lucio Fontana
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por WILSON DO NASCIMENTO BARBOSA*

Apresentação do livro de poemas de Yuri Martins-Fontes

Disse certa vez Manuel Bandeira haver poetas que fazem da poesia a arte da inversão. Outro alguém afirmou que a poesia, como conteúdo, tem dois possíveis métodos: conhecer o mundo, através do sonho; ou conhecer o sonho, através do mundo.

Yuri Martins-Fontes, sem dúvida, pertence a esta última metodologia. Segue as pistas que lhe dão o real, para situar, com versos curtos em que é perito, o estado sonâmbulo da alma. Quanto à observação de Manuel Bandeira, diria ele certamente de Yuri que, por detrás da liberação cuidadosa de seus versos, se esconde o efetivo lugar – o mundo – em que quer realizar os seus mais ocultos sonhos.

Tem-se assim um poeta que, como bom poeta, sabe disfarçar o que faz. Abraça-se ele com a realidade que impede a realização de seus sonhos:

Quero o corpo suado
Na manhã de minha cama
Quero o dia que esquece
Quero a noite que ama.

Querer pois o que tem permite ao poeta bastar-se a si mesmo e disfarçar que nada mais quer que aquilo que (nega que) tem. De certo modo, um retorno – com a forma posta em dia – ao hermetismo camoniano: na volta aos antigos dos poetas do período, personagens agem não por motu proprio, mas por interferência de deuses ou semideuses, como na Ilíada ou na Odisseia; Camões desenvolveu nisso sua própria técnica. Desemocionalização dos atos, narrados em poesia.

Assim o sujeito duplo destes Cantos dos Infernos: um que narra o que escolhe; outro, por detrás, que esconde e discorda, sem dar-se por escrito. Esta duplicidade – talvez o Eu dividido – faz com que alguns de seus versos se abram a compreensões diversas.

Somos nós, todos os outros, que admiramos essa busca, essa falsa fuga para o passado, no comum da vida e no estro.

Ler Yuri é portanto desnavegar em sua barca de antissonhos. Que possamos fazê-lo, na angústia e no momento leve desses poemas alternantes que nos proporciona esta leitura.

*Wilson do Nascimento Barbosa é poeta e professor de história na Universidade de São Paulo (USP). É autor, entre outros livros, de Cultura negra e dominação (Unisinos).

 

Referência


Yuri Martins-Fontes. Cantos dos infernos. São Paulo, Patuá, 2021.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Notas sobre a disputa em São Paulogilberto maringoni 18/11/2024 Por GILBERTO MARINGONI: É preciso recuperar a rebeldia da esquerda. Se alguém chegasse de Marte e fosse acompanhar um debate de TV, seria difícil dizer quem seria o candidato de esquerda, ou de oposição
  • O perde-ganha eleitoralJean-Marc-von-der-Weid3 17/11/2024 Por JEAN MARC VON DER WEID: Quem acreditou numa vitória da esquerda nas eleições de 2024 estava vivendo no mundo das fadas e dos elfos

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES