Por GERSON ALMEIDA*
De uma geração para outra, a reprodução das formas mais perversas de desigualdade é a competência melhor desenvolvida pela nossa elite
Quatro séculos de escravidão e a imensa desigualdade sintetizam o legado de iniquidades produzidas e defendidas à ferro e fogo pelos donos do poder no Brasil. Nossa elite jamais deixou que qualquer escrúpulo ético ou moral lhe impedisse de fazer de tudo evitar a consolidação de um projeto político capaz de alterar esta realidade. O fio condutor da nossa história, portanto, é a perpetuação dessa chaga excludente até os dias de hoje.
De uma geração para outra, a reprodução das formas mais perversas de desigualdade é a competência melhor desenvolvida pela nossa elite e isto é feito por tempo suficiente para [de]formar o seu caráter e esculpir a organização social brasileira da forma funcional para a sustentação deste modelo de sociedade. Esse compromisso com a desigualdade é a maior fonte de coesão política das elites, que sempre lutam para fazer com que os seus interesses pareçam ser os da própria nação, mas não deixam de lançar mão de qualquer forma de violência quando falha o consenso.
No livro O Abolicionismo, Joaquim Nabuco constata que apenas na legislatura de 1879-80 viu-se “dentro e fora do Parlamento um grupo de homens fazer da emancipação dos escravos, não da limitação do cativeiro às gerações atuais, a sua bandeira política, a condição preliminar da sua adesão a qualquer dos partidos”. Foram precisos quase quatro séculos de escravidão para que o abolicionismo passasse a ser motivo de clivagem política no país.
Mesmo depois da escravidão já ter sido moralmente derrotada no mundo e o tráfico de escravos estar proibido no país, a elite escravocrata verde-amarela manteve por décadas a compra e venda de humanos de forma clandestina, colocando o Brasil no abjeto panteão dos mais longevos regimes escravocratas do planeta e mostrando uma faceta jamais abandonada da nossa elite: burlar qualquer regra ou lei contrária aos seus interesses. Afinal, os escravocratas mantinham sob o seu domínio todas as instituições do Estado, um sistema judiciário dócil e uma Igreja capaz de abençoar o direito de uns possuírem outros como sua propriedade.
É certo que os escravizados nunca deixaram de lutar e resistir, mas a recepção tão tardia dessas lutas na política institucional dá a dimensão da impermeabilidade das instituições e do regime às lutas sociais em geral e a escravidão dos negros, em particular. Quando o consenso escravocrata foi rompido pelo apoio dos abolicionistas à resistência dos escravizados, nenhum recurso de força deixou de ser utilizado em favor da manutenção do cativeiro, nem mesmo o das forças armadas.
Muitos dos escravocratas, por exemplo, acabaram por aderir à instauração da República logo depois da Lei Áurea, quando ficou claro que não seria mais possível contar com a monarquia para a continuidade da escravidão. De repente, constatou Joaquim Nabuco, foram engrossadas “as fileiras republicanas com uma leva de voluntários saídos de onde menos se imaginava”. Assim, a República iniciou no país sem que houvesse compromisso consensual dos republicanos com o abolicionismo, mostrando que a adesão de grande parte da elite à República foi mais uma manobra para tentar manter seus interesses do que adesão efetiva à mudança de regime. A desfaçatez de “mudar para deixar tudo igual” vem de longe.
A escravidão foi abolida, mas os escravos libertos foram abandonados à própria sorte, sem acesso à terra, à educação, sem assistência de saúde, sem moradia e acesso à emprego e salário digno. Os proprietários de terras, os escravistas, no entanto, não pararam de exigir mais e mais compensações do governo pela “perda do seu patrimônio”.
Desde a mais tenra juventude, cada geração na Casa Grande aprendeu a normalizar a existência de condutas morais cindidas: uma, afável e civilizada, própria para as relações com a família e com a “alta sociedade”; outra, brutal e primitiva para com os escravizados e os subalternos em geral. Essa moral oligárquica dissociativa não comporta qualquer “sentimento de culpa”, pois lhe falta empatia para com os brasileiros que não pertencem ao seu mundo social e afetivo.
Os sucessivos golpes contra governos populares
Sem empatia para com a imensa maioria dos brasileiros, é impossível estabelecer compromissos efetivos com a democracia, com a soberania popular, algo evidenciado em todos os períodos da nossa história em que o controle das elites sobre o Estado e a sociedade foram ameaçados.
Na “era Vargas” – quando o Brasil agrário e atrasado começou a vivenciar a realidade industrial, incorporando os trabalhadores como um novo ator social e reconhecendo-os como portadores de direitos. Não demorou muito para que a sedição golpista entrar em cena e Getúlio Vargas levado ao suicídio, em 1954.
Dez anos depois, o golpe militar de 1964 pode ser considerado o fim do período iniciado nos anos 1930, quando as mobilizações de massa e o crescimento das lutas sociais fizeram o governo de João Goulart assumir compromisso com as “reformas de base”, que visavam alterar a estrutura agrária oligárquica, ampliar os direitos dos assalariados e traçar um projeto de desenvolvimento nacional autônomo.
Mai uma vez, diante da possibilidade de alterar a relação de poder entre as classes sociais, nenhum escrúpulo constitucional impediu que uma aliança com a cúpula militar mostrasse o quanto nossa elite preza o respeito à soberania popular e impôs um golpe militar para manter intactos seus interesses.
As consequências são conhecidas de todos: no final do regime militar o Brasil ocupava lugar de destaque no panteão da desigualdade, do analfabetismo e da pobreza, mesmo que tenha havido nesse período uma forte industrialização, geração de riqueza e rápida urbanização.
Mesmo com a redemocratização tutelada e a anistia geral e irrestrita – que não julgou os golpistas que atentaram contra a democracia e ainda mantinham forte influência nas forças armadas -, as demandas sociais por tanto tempo reprimidas ocuparam de vez a cena política do país.
É interessante notar que somente quando os movimentos sociais conseguiram produzir fortes manifestações e galvanizar a opinião pública foi possível diminuir o controle das oligarquias e construir as condições políticas para produzir alternativas no país. Foi o que ocorreu com a vitória de Lula nas eleições de 2012, que ocorreu dentro do mais longo ciclo democrático no país.
É inegável que a partir da eleição de Lula foi retomado o desejo de colocar o país noutro patamar e construir uma verdadeira nação, o que implica enfrentar a enorme desigualdade que impede os brasileiros de partilhar uma identidade e direitos comuns no cotidiano, na vida real, e não apenas como uma abstração jurídica alheia à realidade.
Apesar de muitas vicissitudes, sob todos os aspectos os governos de Lula, sucedidos pelos de Dilma, mostraram que é possível criar um ciclo virtuoso de crescimento econômico, cultural, social e ambiental, que ampliou a sensação de felicidade dos brasileiros, sentimento captado em todas as pesquisas realizadas. Qualquer comparação entre o desenvolvimento social na “era Vargas” e nos períodos dos governos de Lula e de Dilma, com os que os antecederam e sucederam, fala por si.
O medo dos governos populares e o interesse em manter intactos os seus interesses, mais uma vez reatou a aliança da elite com o parlamento, o judiciário, a cúpula militar e demais altos escalões do Estado, que novamente mostrou não ter qualquer escrúpulo constitucional e moral para obstaculizar a sua adesão ao golpe contra a soberania popular para defender o país da desigualdade para o qual tanto esforço tem feito ao longo da história. O único sucesso desta aliança entorno dos donos do poder no Brasil é ter construído o mais longo regime escravista do mundo e a mais abjeta desigualdade do planeta.
Seu fracasso é inapelável, caso a régua que importe seja a da civilização e do humanismo, representados pelo ideal da igualdade, da liberdade e da fraternidade, a tríade que alçou o povo como protagonista da política.
Essa é a disputa que continua em curso no Brasil atual. Os donos do poder continuam controlando importantes postos no Estado, particularmente no judiciário, no parlamento, nas forças armadas e na mídia empresarial, como o golpe de 2016 mostrou.
O governo de Bolsonaro, que esse conluio antidemocrático levou ao poder, não é um ponto fora da curva, uma excrescência histórica, ele é a expressão do verdadeiro caráter da nossa elite, que não tem nada diferente para oferecer aos brasileiros, senão exclusão e desigualdade. O governo miliciano não é um ponto fora da curva, mas a demonstração de até onde nossa elite é capaz de chegar para defender seus interesses. Para derrota-los em todas as frentes, vale viver a vida.
*Gerson Almeida é mestre em sociologia pela UFRGS.