Interregno distópico

Imagem: Lara Mantoanelli
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Por RUBEN BAUER NAVEIRA*

A guerra nuclear como o sintoma mórbido último.

“A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece” (Antonio Gramsci)

Sintoma mórbido (1): As pessoas já detêm toda a informação e o conhecimento de que necessitam para saber que o clima do planeta está sendo arruinado e os seus recursos naturais consumidos a um ritmo insustentável para a conservação da vida; não obstante, a devastação ambiental prossegue, acelerando em vez de arrefecer; sintoma mórbido (2): Por mais que as sociedades e os governos saibam que o empobrecimento generalizado é socialmente insustentável, com os conflitos decorrentes somente podendo ser administrados, ao invés de mitigados, por meio de maiores repressão e brutalidade policial, a concentração de renda nas mãos daqueles já demasiadamente ricos continua a aumentar.

Sintoma mórbido (3): A crença na democracia representativa se exaure, e as sociedades deixam de vê-la como caminho para construção do futuro; os parlamentos são crescentemente aparelhados para servir aos interesses do grande capital, e para bloqueio das mudanças; sintoma mórbido (4): o esquema fundador do Estado-nação moderno, de subdivisão em três poderes independentes e separados, é degradado na medida em que um desses poderes, o judiciário, justamente aquele mais imune a controle externo (de modo a que haja isenção nos julgamentos), vai em diversos países se tornando colonizado (aparelhado) pelas instituições de um país dominante, os Estados Unidos, a pretexto de se “combater a corrupção”; o exemplo mais acabado é a Ucrânia, que instituiu leis atribuindo aos EUA o poder de nomear diretamente várias dentre suas altas autoridades judiciárias – coisa que, não obstante, não evitou que o país assumisse a pecha de “mais corrupto do mundo”.

Sintoma mórbido (5): O direito à livre manifestação vigora apenas em sentido formal, o Estado lhe impõe limites de acordo com as suas conveniências (vide como o Estado francês liquidou com o movimento dos gilets jaunes, ou, mais recentemente, como o Estado canadense liquidou com o movimento dos freedom convoys); sintoma mórbido (6): pessoas estão indignadas e enfurecidas contra a Rússia, por esta ter iniciado uma guerra contra um país vizinho, e chocadas com as cenas de crianças mortas, mutiladas, órfãs, refugiadas e traumatizadas para o resto das suas vidas, sem atentar para que,  neste exato dia de hoje, crianças estão também sendo mortas, mutiladas, ficando órfãs, refugiadas e traumatizadas em outros quatro países, por guerras nas quais os Estados Unidos têm responsabilidade: Iêmen (já faz sete anos), Síria (dez anos), Líbia (onze anos) e Somália (trinta anos).

Sintoma mórbido (7): Praticamente tudo a que se possa chamar imprensa no mundo ocidental (mais de 1.500 jornais, mais de 1.100 revistas, mais de 9 mil estações de rádio e mais de 1.500 canais de televisão) são controlados por somente seis conglomerados globais de mídia os quais operam de forma absolutamente coordenada, alçando aquilo que não passa de narrativas de interesse do assim chamado “1%” (na verdade 0,01%) à condição de verdade absoluta – a demonização da Rússia presentemente em curso como o exemplo maior.

Essa lista poderia ser estendida, mas os casos acima bastam para afirmar que sintomas mórbidos vão deixando de ser pontuais para se tornarem norma.

A um mundo em que sintomas mórbidos cada vez mais se alastram e agravam se poderia dar o nome de distopia. Não se pode afirmar que já vivamos em um mundo distópico porque ainda desfrutamos de espaços de “normalidade” estabelecidos pelo processo civilizatório dos últimos trezentos anos – mas se pode sim afirmar que a distopia avança a passos largos, invadindo e ocupando cada vez mais esses espaços.

No célebre postulado de Gramsci, esse “interregno distópico” somente poderá ser superado quando o “velho” tiver finalmente morrido e o “novo” finalmente nascido. Para todos aqueles que almejem essa morte do velho com o nascimento de algo novo, é a distopia em si (e não a nostalgia do velho que agoniza) o que se impõe, na prática, como quadro de referência. Assim, medir as ações militares da Rússia pela régua moral daquele que julga, em termos absolutos, que “guerra é errado, ponto” traduz um apego a um quadro de referência que na prática já não opera mais (no caso, o direito internacional – como se, por exemplo, a invasão americana do Iraque já não tivesse se dado contrariamente ao Conselho de Segurança da ONU).

Expresso de forma mais crua, nos termos da dualidade civilização/barbárie: uma vez que a morbidez e a distopia são a barbárie em si, você, por mais civilizado que procure ser, tem que saber quando do outro lado está a barbárie.

É claro que guerra é errado (e sempre será). É claro que crianças serem mortas, mutiladas, tornadas órfãs, refugiadas e traumatizadas é errado, odioso e repugnante, e sempre será. Mas, deveria então a Rússia, já depois de ter esgotado as negociações diplomáticas para que a OTAN não viesse a instalar novos mísseis de ataque junto às suas fronteiras bem como removesse aqueles já instalados (nas bases militares de Deveselu na Romênia e Redzikowo na Polônia), simplesmente aguardar até ser aniquilada por um ataque de surpresa de mísseis capazes de atingir Moscou em apenas três minutos?

Deveria a Rússia, após assistir ao longo de oito anos a toda uma população de russos étnicos do outro lado da sua fronteira ser alvo de perseguições, discriminações, prisões arbitrárias e até assassinatos, aguardar passivamente até que a Ucrânia invadisse as repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk para reintegrá-las à força e massacrar as suas populações, sendo que os russos dispunham de informações de que essa invasão estava para ser deslanchada?

Deveria a Rússia, sabedora de que os americanos vinham desenvolvendo armas biológicas sob medida para o povo russo em uma rede de laboratórios clandestinos na Ucrânia, fechar os seus olhos a isso? Deveria a Rússia, após Zelensky declarar que a Ucrânia devesse buscar desenvolver armas nucleares, permitir que isso viesse a ocorrer? Em suma, deveria ela aguardar passivamente até que crianças russas viessem a ser mortas, mutiladas, tornadas órfãs, refugiadas e traumatizadas?

Para que se possa julgar de forma minimamente adequada as ações da Rússia se deve ter em mente que a guerra entre Rússia e Ucrânia é secundária (no sentido de derivada, subsidiária) relativamente a uma guerra maior, a guerra (até o momento informacional, econômica e apenas indiretamente militar) entre de um lado os Estados Unidos e de outro a Rússia mais a China.

Não se pode alcançar uma compreensão dessa guerra em curso entre Estados Unidos e Rússia sem entender como ela começou (desde o final dos anos 1990) e, principalmente, sem entender porque ela é até hoje apenas indiretamente militar (travada em lugares como o Kosovo, a Síria, o Donbass e, agora, a Ucrânia toda).

Há duas décadas essa guerra vem sendo apenas indiretamente militar porque tanto americanos como russos sabem que, a partir do momento em que entrarem numa confrontação direta, ela rapidamente escalará para guerra nuclear. E ambos sabem que guerra nuclear não tem vencedores, ambos acabarão destruídos. Dito de modo mais direto, a única forma de se evitar a guerra nuclear é nunca haver guerra direta entre Estados Unidos e Rússia.

Então, estarem travando americanos e russos uma guerra não-declarada já por duas décadas é sem dúvida um sintoma mórbido que poderia ser chamado o sintoma mórbido penúltimo, pelos riscos que implica em se converter em guerra direta e, na sequência, em guerra nuclear (esta, o sintoma mórbido último, porque erradica abruptamente o velho dando lugar a um tipo de novo absolutamente insondável).

Após mais de duas décadas de escalada gradual (expansão da OTAN, incitação ao separatismo checheno, guerra do Kosovo, guerra da Geórgia, revolução colorida de Maidan, anexação da Crimeia, imposição de sanções econômicas, descumprimento dos acordos de Minsk, ações nas redes sociais para influir nas eleições dos EUA, guerra da Síria, abandono unilateral pelos americanos do tratado de proibição de mísseis de alcance intermediário, incitação à revolução colorida na Bielorússia, gasoduto Nord Stream 2, ultimato russo à OTAN, incitação à revolução colorida no Cazaquistão, ataques cibernéticos de parte a parte, expulsão de diplomatas de parte a parte etc.) atingimos agora um ponto de escalada militar vertiginosa, não apenas pela ação russa na Ucrânia como pela reação americana a ela, com o envio de armas aos ucranianos e com o aumento da presença militar da OTAN em países como a Polônia e os países bálticos – a despeito de os russos já terem anunciado que não tolerarão nem uma coisa nem outra, e que retaliarão.

Essa escalada ruma para uma guerra direta entre americanos e russos, em apenas uma questão de tempo.

Os americanos não podem recuar, porque estão presos a uma armadilha que eles mesmos criaram, a da necessidade de perpetuar a sua hegemonia sobre o resto do mundo. Os americanos são o único país no mundo (e na História) que pode se dar ao luxo de ter um déficit público tendente ao infinito, porque podem simplesmente imprimir mais dinheiro (dólares) para refinanciá-lo. Para tanto, precisam que o restante do mundo necessite adquirir dólares, o que por sua vez requer que praticamente a totalidade do comércio entre os países seja feito em dólar.

Para garantir que ninguém questione esse estado de coisas os Estados Unidos precisam ter forças armadas que sejam temidas pelo restante do mundo (chegam a mil as bases militares dos EUA no exterior, espalhadas por todo o planeta). Os gastos militares do governo americano respondem por mais da metade do gasto público total (tanto quanto a indústria de armamentos carrega nas costas o PIB dos EUA), e é por isso que o déficit público é cada vez mais estratosférico, com o que o círculo se fecha.

A essa altura, os americanos simplesmente não têm como “ceder aos russos, em nome da paz mundial”. O ponto de não-retorno já foi ultrapassado há décadas, abrir mão hoje da hegemonia mundial significaria para os EUA um colapso econômico, com empobrecimento profundo e abrupto da população americana o que levaria ao fim das atuais instituições do país, senão ao fim do próprio país.

Está à vista de todos que esse colapso acabará por suceder, mais cedo ou mais tarde, porém as elites americanas estão dispostas a lutar até o fim para tentar evitá-lo (por isso essa guerra não-declarada de mais de duas décadas contra a Rússia). O colapso virá porque a hegemonia americana apoia-se em dois pilares, o dólar como reserva universal de valor e o poderio militar inconteste, e ambos estão ruindo, e de forma associada (uma eventual humilhação militar dos americanos perante o mundo poderia lhes ser desmoralizante a ponto de fazer disparar o processo de abandono do dólar).

Um país que se pretenda hegemônico não tem como tolerar a soberania de terceiros, e, ao buscarem caminhos próprios e independentes, tanto a Rússia quanto a China (além de mais alguns, como o Irã) colocaram-se em rota de colisão com os EUA. Assim, a OTAN começou a expandir-se em direção às fronteiras da Rússia ainda na década de 1990 de modo a buscar subjugá-la. No ano de 2007 (já faz quinze anos, portanto) em um discurso em uma conferência em Munique, Vladimir Putin alertou ao mundo que aquela expansão da OTAN em desconsideração aos requisitos de segurança nacional da Rússia iria levar à crise atual – mas ninguém lhe deu ouvidos.

Enfim, o que está em jogo é o destino da humanidade. Estão em disputa dois modelos civilizatórios (em termos econômicos, políticos, sociais e culturais) distintos e em muitos aspectos antagônicos, o modelo ocidental (predominante até aqui) e o modelo chinês-russo, o qual vem rapidamente abarcando outras nações asiáticas (o Irã já estava alinhado faz tempo, mas agora aliados dos Estados Unidos até recentemente como a Índia e mesmo a Arábia Saudita começam a trocar de barco). Apenas um dos dois modelos poderá sobreviver a essa disputa (claro, se não sobrevier a guerra nuclear).

Parêntesis: que não haja ilusões, uma eventual suplantação do modelo ocidental pelo russo-chinês não significaria uma superação do capitalismo, e sim uma substituição do atual turbocapitalismo financeirizado e absolutamente desumano por um capitalismo de viés produtivo “menos desumano” (e com muito mais conservadorismo nos costumes).

Para que consigam vencer sem que haja guerra direta (nuclear), a estratégia dos americanos é levar à queda do governo russo, com a instauração de um novo governo subserviente, ou ao menos mais cordato, ao Ocidente. Por isso as sanções econômicas terríveis (que já estão prejudicando as economias ocidentais tanto quanto, ou mais, que a economia russa), por isso os oligarcas russos têm sido pessoalmente atingidos (para que se rebelem contra Putin), por isso a demonização midiática sem paralelo e sem precedentes, e por isso o esforço para fazer com que a guerra na Ucrânia se prolongue o mais possível, buscando desgastar Putin – quando todos já sabem que não há mais qualquer chance de a Ucrânia vir a derrotar militarmente a Rússia; a Ucrânia no entanto acata a pressão dos americanos para que não se renda apenas de modo a estender o desgaste russo, assumindo assim o papel deplorável de bucha de canhão.

Essa estratégia americana até funcionou bem nos primeiros dias da guerra, em que a população russa titubeou frente às perspectivas de empobrecimento em função das sanções econômicas impostas pelo Ocidente. Mas a mídia ocidental não soube dosar o veneno, e a russofobia que se seguiu (com atletas, artistas e até estudantes russos passando a alvo de “cancelamentos” e constrangimentos, quando não assédio, nos países ocidentais), juntamente com a glorificação de neonazistas ucranianos na qualidade de “heroicos defensores do Ocidente”, acabaram por levar a população russa a cerrar fileiras em torno de Putin.

Uma vez dado esse resultado da disputa pelos corações e mentes na Rússia, o Ocidente já não se atém mais a quaisquer limites para impregnação de ódio à Rússia e aos russos nos corações e mentes dos seus povos, requisito a um delenda est. O mais novo capítulo nessa estratégia é o cometimento de atrocidades contra civis ucranianos, atribuídas aos russos a despeito de quaisquer evidências (false flags), em magnitude crescente que tende a chegar a estágios químicos ou radioativos.

Já a estratégia dos russos é ir empurrando o perigo (os mísseis da OTAN apontados para Moscou) para longe das suas fronteiras (todas elas; os russos não irão parar na Ucrânia), enquanto prestam a sua contribuição (gás por rublos, por exemplo) para acelerar o colapso americano, na esperança de que aconteça antes de uma guerra direta. Nesse contexto, Putin não repetirá o erro cometido por Saddam Hussein, que assistiu passivamente por meses a fio à implantação de bases e contingentes militares americanos “de natureza puramente defensiva” do outro lado da sua fronteira, até que a denominação “Operação Escudo do Deserto” fosse reciclada para “Operação Tempestade no Deserto” – quando já era tarde demais. Se os americanos passarem a mover forças maciçamente para junto das fronteiras russas elas serão atacadas preventivamente, que não reste a menor dúvida quanto a isso.

A Rússia tomou a iniciativa militar de forma reativa, porque se viu obrigada a fazê-lo, para frustrar a invasão iminente pela Ucrânia das repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk. Porém, a Rússia tomou a decisão de enfrentar militarmente a OTAN (por entender que do contrário acabaria subjugada) há mais de duas décadas, e vem desde então se preparando diligentemente para isto.

A essa altura, vai ficando claro que as chances de não haver guerra nuclear não são boas – mesmo que, pelas óbvias razões do risco absurdo envolvido, isso possa ainda vir a demorar.

Àqueles que ainda apostam na racionalidade dos tomadores de decisões, cabe voltar ao alerta de Gramsci quanto à morbidez. Ademais, a guerra jamais foi um assunto racional entre os homens. A irracionalidade sempre se fez presente tanto ao nível macro dos governos e estados-maiores (para tomarmos apenas as duas guerras mundiais havidas, a primeira se paralisou na matança militarmente inútil das trincheiras, enquanto que a segunda elevou à condição de substantivos para o horror nomes de lugares como Auschwitz e Hiroshima) quanto ao nível micro das atrocidades e covardias invariavelmente cometidas por indivíduos contra civis e contra prisioneiros de guerra.

Enfim, mesmo contra todas as evidências, que a razão prevaleça, e que jamais haja guerra nuclear!

*Ruben Bauer Naveira é ativista político. Autor do livro Uma nova utopia para o Brasil: três guias para sairmos do caos [disponível em http://www.brasilutopia.com.br].

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