A língua como naufrágio

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

A poesia de Ana Marques Martins explora o fim do verso não por subtração, mas por prosaísmo, transformando a crise da lírica em lírica da crise

Por Vladimir Safatle*

Talvez existam dois tipos de poetas que fazem a língua naufragar. E deveríamos sim procurá-los porque é possível que esta seja uma das funções centrais da poesia atualmente, uma das últimas que lhe restou, a saber, fazer a língua naufragar. Isto é algo que a poesia herdou da música, esta consciência tácita de que a linguagem não teria como ficar imune ao esvaziamento e ao endurecimento em um sistema de convenções, de que tal esvaziamento era um projeto político: o projeto de retirar da linguagem suas margens, seu ritmo de implosões, em suma, a incomunicabilidade que habita em seu fundamento. E, como a música, tratava-se de fazer a incomunicabilidade atravessar o solo da linguagem a fim de se constituir como expressão.

Mas há de se lembrar também das coordenadas históricas que cerca uma operação dessa natureza atualmente. Em um país construído através de acordos extorquidos, consensos que não passavam de silenciamentos forçados e violências não reconhecidas, havíamos mesmo de esperar que, em algum momento, sua poesia começasse a se voltar para o desejo de fazer o silêncio imposto pela linguagem naufragar. O tópos da linguagem esgotada não é simplesmente a expressão de alguma forma de crise da lírica mas, se me permitem uma inversão, de uma lírica da crise que nos aparece como forma de, ao mesmo tempo, evidenciar os limites impostos por nós por uma ordem falsa e tomar dessa ordem o domínio sobre as palavras.

Mas como se disse antes, talvez existam dois tipos de poetas que fazem a língua naufragar. Um faz da língua matéria a ser recomposta, recusa-se a falar como normalmente se fala, faz a língua se chocar contra sua própria gramática, contra suas normas. Tal poeta escreve como quem disseca palavras, como quem expõe seus hematomas. Ele decompõe o ritmo da fala e recompõe em ritmos estranhos à fala habitual. Seus poemas são, muitas vezes, a exploração milimétrica da escritura.

Talvez um dos últimos grandes poetas desse tipo tenha sido Paul Celan. Diante dos traumas históricos do holocausto e do desaparecimento, a vida que pulsa depois pulsa sempre exigindo silêncio às formas da linguagem prosaica. Por isto, ela faz a poesia tocar os pontos de decomposição da língua, tocar o fim do verso para liberar a palavra e sua composição originária.

No entanto, há poetas que parecem dispostos a fazer operação quase inversa. São as que querem pegar a língua em seu ponto de trivialidade, como quem diz: “é bom portanto usar palavras emprestadas nem que seja para lembrar que só temos palavras de segunda mão”. São as que assumem um ritmo que mais se assemelha à prosa, que tocam o fim do verso não por subtração, mas por prosaísmo. Poetas que parecem estarem a falar, como quem conta algo que normalmente se conta, mas apenas para descrever uma forma inesperada de colisão, para falar do “modo como os seus sonhos parecem os pensamentos de pessoas que sobreviveram a um desastre de avião”. Deste grupo faz parte Ana Marques Martins.

A poesia de Ana Marques não está apenas disposta a expor a fragilidade da linguagem prosaica, e assim não sair dela a fim de fazer de tal fragilidade sua força. Ela parece querer dar voz às formas com que os limites da vida prosaica parecem desenhados para serem ironicamente pervertidos: “Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem mas posso esquecer uma laranja sobre o México desenhar um veleiro sobre a Índia pintar as ilhas de Cabo Verde uma a uma como se fossem unhas”.

Neste gesto em que o mapa já não representa o mundo, em que o sistema de representações entra em colapso e naufraga a partir do momento em que a representação engole ironicamente o representado, a falta de coragem e de disposição acaba por se transmutar em outra forma de viagem. “Uma alegria haver línguas que não entendo delas foram varridas as lembranças todas / nelas o sentido passa entre as palavras / como a luz entre as plantas”.

No abandono das limitações da língua como condição de veículo de comunicação, no naufrágio de sua comunicação, não saber outras línguas se torna uma alegria porque falar se transmuta em uma relação de mal-entendidos que é a única condição para desembocar em algo:

ando nas ruas pensando como é possível

tantas pessoas falando

nada em voz alta

quando me dirigem por equívoco

a palavra sorrio como se pedisse desculpas

depois fico tentada a correr atrás daquela pessoa

e devolver-lhe a palavra que ela deixou

cair por descuido

Essa poesia, em um momento de inflacionamento da primeira pessoa do singular, surpreende por falar tão pouco sobre o Eu. Ela se sente muito mais a vontade quando fala sobre “você”, sobre coisas, sobre a linguagem, sobre o próprio poema. Quando se trata de dizer sobre a queda de si, ela prefere falar sobre a natureza das mesas. Pois:

mais importante que ter uma memória é ter uma mesa

mais importante que já ter amado um dia é ter uma mesa sólida

uma mesa que é como uma cama diurna

com seu coração de árvore, de floresta

é importante em matéria de amor não meter os pés pelas mãos

mas mais importante é ter uma mesa

porque uma mesa é uma espécie de chão

que apoia os que ainda não caíram de vez

Ao invés da psicologia das frustrações e dos sentimentos de devastação amorosa, melhor conter-se (e toda essa poesia é habitada por uma contenção que dá sua singularidade) e voltar os olhos às coisas, a descrição das coisas, da marca que deixamos nas coisas quando transformamos uma mesa em cama diurna ou, ainda, em uma espécie de chão que nos apoia enquanto ainda não caímos de vez.

Essa mesa que é uma espécie de chão diz muito mais do que qualquer relato de si. E não poderia ser diferente com alguém que compreendeu que: “um poema não é mais do que uma pedra que grita”. Pois como já se disse antes, chegará um momento em que as pedras falarão, depois que nossa língua deixar de existir.

*Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da USP

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Juarez Guimarães Walnice Nogueira Galvão Ricardo Antunes Celso Frederico Luiz Marques Marcelo Módolo Maria Rita Kehl Otaviano Helene Ronald León Núñez Eleutério F. S. Prado Luiz Carlos Bresser-Pereira Fernão Pessoa Ramos Slavoj Žižek Luiz Bernardo Pericás Luciano Nascimento José Luís Fiori Sandra Bitencourt Celso Favaretto Henri Acselrad José Machado Moita Neto Michel Goulart da Silva Carlos Tautz Marcos Aurélio da Silva Eliziário Andrade Leonardo Boff José Micaelson Lacerda Morais Ladislau Dowbor Michael Löwy Daniel Costa Elias Jabbour Ricardo Abramovay Marcos Silva Bernardo Ricupero Ronald Rocha José Geraldo Couto José Raimundo Trindade Samuel Kilsztajn Eugênio Trivinho Annateresa Fabris Luiz Roberto Alves João Lanari Bo Denilson Cordeiro João Adolfo Hansen Francisco Pereira de Farias Valerio Arcary Luis Felipe Miguel Vladimir Safatle Kátia Gerab Baggio Chico Whitaker José Costa Júnior Flávio R. Kothe Bento Prado Jr. Afrânio Catani Berenice Bento Andrew Korybko João Sette Whitaker Ferreira Claudio Katz Mariarosaria Fabris Andrés del Río Marilia Pacheco Fiorillo Eleonora Albano Manuel Domingos Neto Alexandre de Lima Castro Tranjan Vinício Carrilho Martinez Marilena Chauí Marcus Ianoni Luís Fernando Vitagliano Ricardo Musse Francisco de Oliveira Barros Júnior Airton Paschoa Matheus Silveira de Souza Alysson Leandro Mascaro Luiz Werneck Vianna Rodrigo de Faria Liszt Vieira Everaldo de Oliveira Andrade Ronaldo Tadeu de Souza Yuri Martins-Fontes Priscila Figueiredo Alexandre de Freitas Barbosa Carla Teixeira Paulo Martins Mário Maestri João Carlos Loebens Sergio Amadeu da Silveira Antonino Infranca Jorge Luiz Souto Maior Dennis Oliveira Luiz Renato Martins Bruno Machado Paulo Fernandes Silveira Jean Pierre Chauvin Bruno Fabricio Alcebino da Silva Érico Andrade André Singer Renato Dagnino Atilio A. Boron Heraldo Campos Fábio Konder Comparato André Márcio Neves Soares Antônio Sales Rios Neto Leda Maria Paulani Boaventura de Sousa Santos Osvaldo Coggiola Lucas Fiaschetti Estevez Lorenzo Vitral José Dirceu Jean Marc Von Der Weid Rubens Pinto Lyra Julian Rodrigues Leonardo Sacramento Salem Nasser Gilberto Maringoni João Feres Júnior Tarso Genro Fernando Nogueira da Costa Marjorie C. Marona Leonardo Avritzer Rafael R. Ioris Flávio Aguiar Vanderlei Tenório Tales Ab'Sáber Benicio Viero Schmidt Manchetômetro Plínio de Arruda Sampaio Jr. Chico Alencar Marcelo Guimarães Lima Paulo Nogueira Batista Jr Tadeu Valadares Lincoln Secco Eduardo Borges Daniel Brazil João Paulo Ayub Fonseca Jorge Branco Luiz Eduardo Soares Dênis de Moraes Ricardo Fabbrini Remy José Fontana Ari Marcelo Solon Caio Bugiato Gabriel Cohn Eugênio Bucci Anselm Jappe Anderson Alves Esteves Paulo Sérgio Pinheiro Igor Felippe Santos Antonio Martins Alexandre Aragão de Albuquerque Daniel Afonso da Silva Thomas Piketty Paulo Capel Narvai João Carlos Salles Milton Pinheiro Henry Burnett Michael Roberts Francisco Fernandes Ladeira Armando Boito Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Gilberto Lopes Gerson Almeida

NOVAS PUBLICAÇÕES