A guerra faliu

Anna Boghiguian, A Play to Play, 2018.
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Por LIMA BARRETO*

Crônica publicada na revista Argos em Primeiro de Maio de 1919

Desde novembro que as nações em guerra assinaram entre elas um armistício para estabelecerem o tratado de paz definitiva. Há cinco para seis meses, portanto; e até hoje nada hão feito. Cada vez que prorrogam o armistício, as nações que se dizem vencedoras mais exigem da Alemanha; e termos visto que as exigências são destinadas a aniquilá-la e a favorecer as duas principais potências europeias que formam o núcleo dos inimigos daquela: a Inglaterra e a França.

A Itália, pela voz do seu D´Annunzio, extraordinariamente antipático e cabotino, reclama isto e aquilo, rebusca os arquivos da sereníssima República de Veneza e quer fazer do Adriático um lago italiano. Os outros que querem também um pedaço nas orlas do mar que beija Veneza, protestam, fazem rolos, e italianos e iugoslavos quase se engalfinham.

O senhor Wilson, presidente do sindicato norte-americano, arranjou um negócio muito confuso a que chamam Liga das Nações, e lançou-o com estrépito e desusado barulho pelos mercados do universo. Os ingleses desconfiaram da xaropada e começaram a dar o contra.

O Japão pediu a igualdade das raças; mas a Europa, que tinha vencido com auxílio dos gurcas, senegaleses, não sei se anamitas, etc. etc., não aceitou a proposta do império amarelo e as cousas ficaram como dantes.

Não preciso resumir mais os acontecimentos, para mostrar como está confusa essa Conferência da Paz.

A monstruosa guerra europeia que durou quatro anos, na qual se inutilizaram cerca de dez milhões de homens, que destruiu cidades, vilas monumentos inestimáveis, bibliotecas, recordações do passado que as anteriores guerras tinham poupado, não sabe ela mesmo como acabar.

Quando começou, parecia a todos os simplórios, mais ou menos ideólogos como eu, que bastava a anulação do brutal e estúpido poderio militar alemão para que os povos vencedores, cheios de boa-fé e sinceridade, resolvessem rapidamente de vez, logo após a vitória, as cláusulas da paz.

Cheguei mesmo a dar a minha adesão à Liga Brasileira pelos Aliados, da qual me separei por motivos que aleguei publicamente.

Veio a vitória ou cousa parecida; a Alemanha ficou aniquilada militarmente – por que então não se fez a paz? É que a guerra não conseguiu modificar a mentalidade dos dirigentes e dos seus imediatos clientes.

Não há um dos muitos Estados políticos, inclusive o menor, dos que entraram real ou virtualmente na contenda, que não se julgue como tendo preponderado na vitória. Já não falo da Inglaterra, da França, da Bélgica, e da pobre Grécia. A começar pelos Estados Unidos e a acabar na Guatemala, todos os outros não escondem o desejo que têm de aproveitar a “sua vitória” e de ditar condições de paz que fossem favoráveis aos interesses dos seus maiorais.

As ideias alemãs de predomínio disto ou daquilo, de hegemonia dessa cousa ou de outra, a sua imperial tirania estatística, a regulamentar os menores e mais insignificantes atos humanos, tudo isso viria contaminar os governantes dos rivais, e julgavam eles encontrar sem soluções baseadas nas atrozes concepções alemãs, que foram combatidas a ferro e fogo, meios e modos para o engrandecimento dos seus respectivos países.

De forma que cada Guatemala, cada Brasil, cada Itália ficou sendo pela voz dos seus representantes, de boa ou má fé, uma Alemanhazinha que não se pode entender com as outras senão de armas nas mãos.

Daí essa Conferência de Paz que não chega a nada; que nada resolve; e que se opõe a todas as inovações generosas e largas. É um congresso de burgueses, alguns puros e outros mesclados, tendo as inteligências inteiriçadas em ideias obsoletas e feitas mais rígidas com a virtual vitória da Alemanha; eles, os seus membros, querem organizar a Terra, cada um no seu ponto de vista particular, de acordo com as ambições de suas respectivas burguesias.

Às vezes, os de uma nação concordam com os de uma segunda, mas já estão em antagonismo com uma terceira e não é encontrada fórmula de conciliação. Trata-se de outro ponto e a mesma cousa vem a se dar. E a conferência continua com grandes foguetórios nos jornais do mundo inteiro… Esta conferência não está fazendo o futuro; o que ela está fazendo é remexer o monturo do passado…

Nunca foram os embaixadores agaloados e jornalistas e publicistas subvencionados que organizaram o porvir. Foram os ideólogos desprendidos e corajosos no dizer e falar com o auxílio das massas que não discutem: sofrem, têm fé e agem…

Nos tempos comuns, aqueles Georges, Epitácios, Wilsons, etc. podiam negociar um tratado de comércio e navegação de um riozinho na África deserta. Hoje, eles movem os braços, balanceiam a cabeça, dizem umas coisas, mas todos nós estamos vendo que não têm alma, pois lhes falta a dos povos que dizem representar. São bonecos; são João Minhocas aí!

A guerra não resolveu nada; ela faliu como processo para solucionar questões entre Estados. A resolução dessas questões só poderá ser obtida pela eliminação desses pequenos Estados…[1]

Lima Barreto (1881-1922) foi jornalista e escritor. Autor, entre outros livros, de Triste fim de Policarpo Quaresma.

 

Referência


Lima Barreto. A crônica militante. Edição sob os cuidados de Claudia Arruda Campos, Enid Yatsuda Frederico, Walnice Nogueira Galvão e Zenir Campos Reis. São Paulo, Expressão Popular, 2016.

 

Nota


Hoje, 13 de maio de 2022, comemoramos os 141 anos de nascimento do escritor Lima Barreto, cujo centenário de morte será completado em 1º de novembro, e ao que tudo indica em meio a um cenário conturbado, eleições no Brasil e guerra na Europa. Guerra esta que analistas nacionais e internacionais reputam como propulsora de uma nova ordem mundial. Lima Barreto, contemporâneo da Primeira Guerra Mundial, muito escreveu sobre ela, com uma mirada crítica e de uma perspectiva anticapitalista, percebeu que a paz não se faria duradoura, porque o que estava em jogo era o que estamos, novamente, a presenciar [Maria Salete Magnoni].

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