Por BERTOLD BRECHT*
Notas sobre a produção de um dos primeiros filmes sonoros
Um trabalho político
No verão de 1931, aproveitando certas circunstâncias particularmente favoráveis (dissolução de uma companhia cinematográfica, alguém disposto a investir num filme uma quantia não muito elevada de dinheiro, além do seu talento de ator, etc.) apresentou-se-nos a ocasião de realizar um filme de pouca importância. Ainda sob a influência da lição que foi a Ópera dos três vinténs, estipulamos, pela primeira vez pelo que se sabe na história do cinema, um contrato que nos tornava a nós os realizadores, os responsáveis no sentido jurídico.
Isto nos custou a perda dos direitos de exigir o habitual pagamento em dinheiro, mas nos permitiu, nos conflitos durante o trabalho, liberdades de outra maneira inacessíveis. A nossa pequena sociedade era composta de dois roteiristas, um diretor, um músico, um diretor de produções e, last not least, um advogado. A organização do trabalho nos deu como é óbvio, muito mais problemas do que o trabalho artístico propriamente dito; vale dizer que gradualmente fomos induzidos a considerar cada vez mais a organização em si mesma como parte essencial do trabalho artístico.
Tudo isto somente era possível porque o trabalho, compreendido em sua totalidade, era um trabalho político. Aproximando-se o fim desse empreendimento que, a cada instante, correu o risco de naufragar – quando já havíamos rodado mais de noventa por cento do filme, gasto somas consideráveis e esgotado todos os créditos – uma das sociedades de crédito, a que tinha o monopólio das máquinas das quais tínhamos necessidade, nos informou que não tinha nenhum interesse que nosso saísse (terminasse). Preferia renunciar às somas que lhe eram devidas do que permitir-nos a continuação do trabalho.
Explicava (justificava) que filmes de superior qualidade faziam aumentar exigências da crítica (que não coincidem com as do público), e que nosso filme não poderia tornar-se interessante do ponto de vista comercial desde o momento em que o comunismo não mais constituía um perigo para a Alemanha. Por outro lado, as outras sociedades recusavam-se a antecipar dinheiro porque temiam que o filme viesse a ser censurado, na realidade, mais pelos proprietários das salas de exibição do que pelo Estado. Este não exprime senão a vontade daquelas, já que não ocupa de fato uma posição imparcial, acima das contradições, mas é o grande executor da economia, isto é de uma das partes em conflito.
Descrição do filme
O filme sonoro Kuhle Wampe compõe-se de quatro partes independentes, separadas por temas musicais autônomos durante os quais são projetadas vistas de casas, fábricas e paisagens.
A primeira parte, que se baseia num fato realmente acontecido, mostra o suicídio de um jovem desempregado naquele verão em que um decreto-lei agravou a miséria dos estratos inferiores da população, suprimindo o seguro desemprego para os jovens. Antes de jogar-se pela janela o jovem retirou seu relógio para não quebrá-lo. O início desta parte representa a busca de um trabalho como um trabalho em si.
A segunda parte faz ver a dissolução da família em consequência de uma sentença judicial (a qual declara que a desgraça desta família, que não pode pagar o aluguel, é atribuída a “sua própria culpa”). A família refugia-se na periferia da cidade sob a tenda de um amigo da filha, em um acampamento chamado “Kuhle Wampe”, (durante certo tempo pensou-se intitular o filme de Ante-portas). Aqui a moça engravida e as pressões das convenções pequeno-burguesas, de pequeno-burgueses esfarrapados, em vigor no acampamento (onde uma espécie de “propriedade” do solo e de pagamento de um pequeno aluguel cria formas sociais próprias) impõem o noivado. O noivado é rompido por decisão da garota.
Na terceira parte mostram-se encontros esportivos proletários. Estes se desenvolvem em escala de massas e são organizados com perfeição. Têm um caráter absolutamente político; a distração das massas tem um caráter de luta. Mais de 30 mil operários esportistas do círculo “Fichtewandrer-Sparte” colaboram nesta parte. Entre os esportistas os dois jovens da segunda parte fazem uma pequena ponta. A moça, graças à ajuda de suas amigas, conseguiu o dinheiro necessário para realizar o aborto e o casal abandonou a ideia de casamento.
Na quarta parte vêem-se pessoas voltando para casa, e na cabine do trem discutem sobre o café brasileiro que é queimado para sustentar os preços.
As canções
A Canção dos sem-teto foi suprimida com medo de uma interdição geral; como também O apelo, mas por razões técnicas. O Canto da solidariedade era cantado por cerca de três mil operários esportistas. O Canto dos encontros esportivos é cantado por uma só voz durante a projeção de cenas de regata e de corridas automobilísticas.
A poesia A natureza na primavera, recitada por uma só voz, junta três passeios dos amantes. Esta parte do filme, projetada enquanto os esportistas proletários trabalhavam, foi por estes criticada porque julgada muito despojada.
A direção
O filme Kuhle Wampe foi realizado pelo jovem diretor Slatan Th. Dudow superando enormes dificuldades de ordem prática. A maior parte das tomadas teve que ser feita em ritmo acelerado: um quarto do filme, por exemplo, em dois dias. A única ajuda que recebemos veio das associações esportivas comunistas que dirigiram os movimentos dos operários esportivos (que em certos dias chegavam a quatro mil).
As dificuldades que tínhamos em encontrar recursos financeiros fizeram com que para a realização do filme fosse necessário mais de um ano; durante esse tempo as circunstâncias na Alemanha evoluíram num ritmo muito mais rápido (fascistização, aumento do desemprego, etc.). Assim que foi concluído o filme foi proibido pela censura. O seu conteúdo e suas intenções evidenciam-se da melhor maneira através a exposição de motivos pelos quais a censura o proibiu.
Ele mostrava como, por cansaço e passividade, certas categorias de trabalhadores decaem ao nível dos “miseráveis”. O Ministério do Interior declarou que ele constituía um ataque à social-democracia. Um ataque desse gênero é tão proibido quanto um ataque contra a Igreja, ou seja, contra qualquer instituição que sustenta o Estado.
Mostrava-se o destino de um jovem desempregado que não consegue unir-se aos trabalhadores em luta, e que o decreto-lei de Brüning, suprimindo o seguro-desemprego para os jovens, os empurra para a morte. O Ministério do Interior declarou que isso constituía um ataque contra o presidente do tribunal que tinha assinado o decreto, ao qual se acusava, no fundo, de uma inadequada assistência aos trabalhadores na miséria.
Representava-se a atividade das grandes associações esportivas dos trabalhadores comunistas, que na Alemanha agrupavam cerca de duzentos mil trabalhadores e que colocavam o esporte operário a serviço da luta de classe.
Breve contribuição ao tema do realismo.
Somente muito raramente consegue-se uma verificação da real eficácia dos métodos artísticos. Na maioria das vezes se obtém, no máximo, uma vaga aprovação (“sim, você descreveu muito bem esse fato, é exatamente assim que acontece conosco”), ou também se ouve dizer que foi dado um “impulso” em certa direção. Eis que sucede, no entanto, um pequeno teste de boa qualidade.
Tinha realizado, com Slatan Dudow e Hans Einsler, o filme Kuhle Wampe, que descrevia a situação desesperada dos desempregados em Berlim. Era uma montagem de pequenos fragmentos bastante autônomos. O primeiro representava o suicídio de um jovem desempregado. A censura colocou grandes dificuldades, e houve uma reunião com o representante da censura e os advogados da sociedade cinematográfica.
O representante da censura se revelou inteligente: “Ninguém lhes contesta o direito de descrever suicídios. Suicídios existem. E também podem descrever o suicídio de um desempregado. Também existem suicídios de desempregados. Eu, senhores, não vejo nenhuma razão de calar sobre essas coisas. Mas coloco uma objeção contra o modo como vocês descreveram o suicídio de seu desempregado. Este modo é inconciliável com os interesses da coletividade que eu tenho o dever de defender: estou desolado de lhes fazer a este propósito um reparo de ordem artística”.
Ele continuou: “Vocês se surpreenderão que eu reprove a descrição de vocês por não me parecer suficientemente humana. Aquilo que vocês mostram não é um homem, mas seja dito de boa paz, uma marionete. O desempregado de vocês não é um verdadeiro individuo, um homem de carne e osso, diferente dos outros, com suas próprias preocupações e alegrias e, em resumo, com seu próprio destino pessoal. É descrito de modo completamente superficial e, desculpem-me, como artistas, essa expressão um pouco grosseira para dizer que são ditas muito poucas coisas a seu respeito. Mas as conseqüências são de natureza política e me constringem a opor-me à liberação do filme. Este filme tende a fazer do suicídio um fenômeno típico, alguma coisa que não é um assunto deste ou daquele individuo (doente), mas o destino de uma classe inteira. A opinião de vocês é que a sociedade empurra os jovens ao suicídio negando a eles a possibilidade de trabalhar. E nem ao menos vocês tem o escrúpulo de dizer o que seria preciso aconselhar aos desempregados para obter uma mudança de situação. Vocês não se preocupam de fato em traçar um quadro de um dramático destino individual, coisa que ninguém poderia impedir-lhes de fazer”.
Nós permanecíamos sentados em nossas cadeiras e completamente embaraçados. Tínhamos a desagradável impressão que os nossos pensamentos tinham sido lidos. Eisler, perturbado, limpava os óculos. Dudow contorcia-se como acometido de fortes dores. Eu me levantei e, não obstante a minha repugnância em fazer discursos, fiz um discurso. Mantive-me escrupulosamente na mentira: indiquei as características individuais que tínhamos atribuído ao nosso desempregado.
Por exemplo, o fato de que antes de atirar-se pela janela tirava o relógio. Sustentei que somente este particular, esquisitamente humano, nos tinha inspirado toda a cena; que mostrávamos também outros desempregados que não se suicidavam, pelo menos quatro mil, já que tínhamos feito tomadas de um grande círculo operário esportivo. Protestei contra a intolerável acusação de não haver seguido um procedimento artístico e fiz alusão a uma eventual campanha da imprensa contra tal acusação. Não tive escrúpulos em afirmar que toda a minha doutrina artística estava em jogo.
O representante da censura não teve medo de esmiuçar até os detalhes do trabalho. Os nossos advogados viram estupefatos, desenvolver-se segundo normas jurídicas um debate de natureza artística. O representante da censura insistia no fato que nós havíamos dado ao processo que levava ao suicídio um caráter explicitamente demonstrativo. Usou a expressão “alguma coisa igualmente mecânica”. Dudow levantou-se colérico exigindo que se fizesse uma consulta a médicos. Estes poderiam testemunhar que atos do gênero evocam sempre qualquer coisa de mecânico.
O representante da censura franziu a testa: “Pode ser”, disse com obstinação, “mas vocês devem, no entanto, admitir que no suicídio que vocês descrevem evitou-se tudo aquilo que poderia ser um impulso. O espectador não tem nenhum desejo de fazer alguma coisa para opor-se a isso, o que deveria acontecer em uma representação artística com calor humano. Grande Deus, o autor comporta-se como se nos mostrasse como se descascam os pepinos!”.
Liberar o filme deu trabalho, e saindo da sala não escondíamos nossa admiração por aquele censor tão lúcido. Tinha conseguido penetrar na própria essência de nossas intenções artísticas, bem mais fundo do que os críticos mais benevolentes que costumávamos confrontar. Tinha conseguido dar um breve curso sobre realismo. Do ponto de vista da polícia.
*Bertolt Brecht (1998-1956) foi dramaturgo, poeta e diretor de teatro. Autor, entre outros livros, de Santa Joana dos Matadouros
Texto não concluído publicado na revista italiana Cinema Nuovo, no. 229, maio/junho de 1974.
Tradução: Giuseppe Talento para a revista Cinemais no. 12, jul-ago 1987.
Referência
Kuhle Wampe (a quem pertence o mundo?)
Alemanha, 1932, 80 minutos
Direção: Slatan Th. Dudow.
Roteiro: Bertolt Brecht
Música: Hans Eisler
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=C8M5Mv__kxg