Por LUIZ MARQUES*
A desconstrução da arte e da cultura é para que não propaguem práticas de emancipação da opressão
A subversão da liberdade
A ideia de “liberdade” é subvertida na ruminação bolsonariana. O fim almejado com a prestigitação é um regime de exceção, no país. O meio para alcançar a meta implica assumir uma subjetividade dúbia, entre a hipocrisia (quando oculta a intenção de enganar) e o cinismo (quando exibe a intenção de enganar), no trabalho diário de solapa das instituições.
A liberdade atenta contra si mesma, no bolsonarismo. Proíbe as mostras de obras artísticas que problematizam os valores do colonialismo (racismo) e do patriarcado (sexismo), com métodos intimidadores – vandalização das peças, agressão aos artistas e ao público nas exposições. O obscurantismo não ousa colocar em questão a própria visão de mundo. Os protestos de grupos religiosos e do Movimento Brasil Livre (MBL), depois de 2013, desmarcaram diversos eventos em nome da normoheterossexualidade e das hierarquias tradicionais de mando / obediência. Jogou-se simpatia no moinho da extrema-direita e cancelamento no ímpeto criativo.
A cinebiografia de Marighella, com direção de Wagner Moura e o talento de Seu Jorge no papel principal, lançada e premiada em Berlim em 2019, só desembarcou nos cinemas brasileiros em 2021, por pretextados “problemas burocráticos”. O guerrilheiro foi tido como Inimigo Público N° 1 da ditadura militar. O personagem foi transformado em Inimigo Público N°1 pela Secretaria de Cultura, do Inominável. E perseguido, agora, não pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), mas pela Agência Nacional de Cinema (Ancine). Daí a demora em estrear em solo pátrio. No ínterim, a direita procurou desqualificar o filme sob a alegação fake de que o cofundador da Aliança Libertadora Nacional (ALN) era branco. Mentira, era negro, o que aumentou a sede de vingança das furibundas elites escravagistas, desafiadas pelo baiano.
Os valores democráticos encarnados pelo líder revolucionário interpelavam a imposição no território nacional de uma “tirania”, motivo da revolta dos grupos políticos que pegaram em armas para reaver a democracia. Deve-se a um dos fundadores do liberalismo, o princípio do “direito à rebelião” dos governados contra os governantes que assumem o poder de Estado, sem dispor do consentimento explícito do povo, lê-se nos capítulos finais do Segundo Tratado do Governo Civil (1662), de John Locke. Marighella não precisava de Marx para legitimar a opção pela guerrilha, bastava-lhe evocar o ícone liberal. Injustificada era a covarde ditadura.
Em prol da dominação do capital, a reação verde-oliva combateu a coragem idealista. A intolerância atrasou em vinte e um anos o relógio da civilização. A contradição dos conservadores, ontem e hoje, reside em habitar uma sociedade em movimentação e achar que podem parar o ciclo com assertivas a-históricas diante das mudanças políticas, sociais e de costumes. “O projeto de Bolsonaro, para ser executado com ingredientes de sangue e morte, depende da utilização de mecanismos de controle e coerção sobre a sociedade”, diz Heloísa Starling, in: Linguagem da Destruição (Companhia das Letras, orgs. H. Starling, M. Lago e N. Bignotto). Sai da frente, gente.
O cinismo deu as caras na fala do vice Hamilton Mourão sobre as escaramuças pela volta do regime de caserna. O general fez uso do nonsense, ao aplicar o predicado da liberdade de expressão para acabar com a democracia. Fez de conta que a liberdade está descontextualizada do processo cumulativo de valores civilizatórios, quando era óbvio o apelo golpista contrário à Carta Magna. É o que se aprende na Escola Superior de Guerra (ESG)? Reinaldo Azevedo acerta: “os bolsonaristas creem que a liberdade de expressão confere o direito de cometer crimes”.
A ira dos pré-modernos
Os remanescentes da pré-modernidade não descansam. Em suas insônias, sempre aparece o receio dos avanços igualitaristas em face da dinâmica do progresso. Não surpreende que se indignassem perante o quadro de Gustave Courbet, no Museu d’Orsay, focado no ventre e no sexo da mulher. A Origem do Mundo é a criação plástica mais censurada em séculos. Prova da interseccionalidade existente entre o capitalismo e a imemoriável repressão do feminino.
Pintada em 1866, a obra veio a público em 1995. A censura impedia que fosse admirada até em sala privée. A tela pertenceu a Jacques Lacan. A família doou-a ao Estado francês, após a morte do psicanalista. Há imagens de uma artista que, de costas para a moldura, abre as pernas e expõe a genitália. Seguranças do Museu tentam cobrí-la, circunstantes a aplaudem.
A arte tem função catártica (purgação, alívio de tensão), para uns. Para outros, de conscientização política. Em comum, o questionamento da realidade. Para Martin Heidegger, o papel da arte é desocultar a verdade de um ente, revelar o seu ser e abrir uma perspectiva que desacomode o observador, e o situe na história. Não espantam os ataques à arte e à cultura.
O mais destacado representante do conservadorismo contemporaneamente, Roger Scruton, em Pensadores da Nova Esquerda (Realizações), refuta a concepção de Sartre que considera o livre agir dos indivíduos capaz de gerar a si mesmo e o mundo ao redor – lançando um no outro. A objeção descortina o núcleo anti-humanista da posição scrutoniana.
“Qualquer adoção de um sistema de valores, que seja representado de modo tão objetivamente justificado, constitui uma tentativa de transferir minha liberdade para o mundo dos objetos, de forma a perdê-la. O desejo por uma ordem objetiva (onde podemos escolher) é prova de má-fé e perda da liberdade, sem a qual nenhuma ordem moral seria concebível”, disparou com irritação o fellow da British Academy. Faltaria transcedentalismo ao humanismo.
A liberdade teria pressupostos que não se subsomem à racionalidade das escolhas na realidade. Afinal, qual o lugar de Deus na arquitetura das decisões existenciais imaginadas pelo pensador francês? Nenhum. A liberdade não reside na possibilidade do livre-arbítrio, mas no compromisso com o transcendental. A crítica é típica dos conservadores, que recorrem a instâncias divinas para explicar atos moralistas em temas como o aborto ou a eutanásia. O antídoto está na historicização para desperenizar suas convicções, com o recurso da razão dialética.
A pulsão pela destruição
“O discurso de Bolsonaro é direcionado àquele que tem poder, ainda que dentro de uma situação subalternizada. É o dono de uma birosca que tem poder sobre o garçon, o pastor de porta de garagem sobre seu fiel, o marido que deseja submeter sua esposa, o guarda da esquina que tem poder sobre os transeuntes, o motorista que tem poder sobre pedestres e ciclistas, o cafetão que tem poder sobre a prostituta, entre outros. Bolsonaro assobia para quem tem poder e a mensagem é clara: não tenha medo de exercê-lo”, debulha Miguel Lago (op. cit.). O sartreano se debruça sobre a a consciência para decidir. O bolsonariano exerce a vontade de potência.
O fechamento de mais de trezentos Pontos de Cultura e o veto à Lei Paulo Gustavo, que direcionava R$ 3,86 bilhões do superávit financeiro do Fundo Nacional de Cultura (FNC) aos estados e municípios, para fomento de atividades e produtos culturais, moveram-se pelo temor do estímulo no plano do pensar / sentir a um contrapoder frontal à pasteurização das percepções. Os minguados aportes à educação e à ciência em 2020, 2021 e 2022 foram os mais baixos desde os anos 2000. Neste ano, o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovações (R$ 720 milhões) ficou 78% abaixo do registrado em 2010 (R$ 3,34 bilhões). Sem que o titular da pasta tugisse. No Ministério da Educação (MEC), os recursos à pesquisa diminuíram (87%) na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e no Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq). Dados do Observatório Legislativo Brasileiro (OLB), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). “O Brasil não é para amadores”, comentava Tom Jobim.
A destrutividade que alia o neoconservadorismo ao neofascismo e ao neoliberalismo é devastadora. O caos é planejado. Tudo vai de mal a pior porque tudo vai bem, capiche?
O presidente em decurso é um saudosista do rumor de botas, orientado pela pulsão de destruição do modelo político e social que desenhou a Constituição de 1988, depois de uma década marcada pelas maiores mobilizações populares já vistas na trajetória da República Federativa. Sem o que o genial Sistema Único de Saúde (SUS) jamais teria vindo à tona. As políticas educacional e cultural são emblemáticas da lógica beligerante que guia o combate à intelligentsia.
Mas nada evoca mais o elã desconstrutivo do que o poder fatual, em revanche, de Bolsonaro sobre os oito mil militares na administração central, incluso generais. Todos devendo continência ao tenente desqualificado por indisciplina, e aposentado como capitão aos trinta e três anos de idade. Somente por subterrâneas injunções, não foi expulso das Forças Armadas.
“Os fardados repetem de forma protocolar o respeito e a consideração aos valores republicanos. No entanto, nos momentos de crise, suas falas revelam o autoritarismo e o espírito antirrepublicano que circundam seus corações e mentes”, anota Luiz Gonzaga Belluzzo (Carta Capital). Voltem aos quartéis; política é para civis. É hipocrisia querer contar votos nas eleições. Melhor contar árvores na Amazônia, antes que na cara de pau o Miliciano-em-Chefe entregue para o multibilionário Elon Muskas as riquezas florestais. Por ora, com as milícias de garimpeiros e madeireiros ilegais, de fazendeiros e agroindustriais invasores de terras indígenas e públicas.
O bolsonarismo subverte o conceito de liberdade para mentir sobre la verità effettuale della cosa. A devastação da Amazônia, que aturde o planeta, é negada na Organização das Nações Unidas (ONU). “O fato de ser uma floresta úmida, não pega fogo”, disse o Pinóquio. Claro, espontaneamente, não pega, exceto se alguém provocar o incêndio. Passados quatro anos da posse, a fala do mandatário em março de 2019 nos Estados Unidos foi a única profecia, com efeito, realizada num mandato em que nada construiu: “Nós temos é que desconstruir muita coisa”. A desconstrução da arte e da cultura é para que não propaguem práticas de emancipação da opressão.
*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.