A agenda anti-indígena – a mão e o gatilho

Imagem: Lucas Vinícius Pontes
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Por LUIS FERNANDO NOVOA GARZON*

Bruno e Dom não morreram defendendo apenas florestas e rios, mas sim os povos cocriados com eles

Depois de vidas inteiras dedicadas aos inteiramente outros, sobram fragmentos, vestígios e remanescentes humanos do indigenista Bruno Vieira e do jornalista Dom Philips. Restos é o que nos tornamos, os que ficamos no mesmo intento. Sim, fomos todos emboscados, alvejados, queimados, esquartejados. Agora, somente juntando nossos cacos e os cacos desta história de horror normalizado é que vamos poder nos fazer inteiros de novo.

Entregar e identificar os corpos após confissão e localização dos restos mortais por parte de um dos executores, é isso que apresentam como o desfecho exitoso da “Operação Javari”? A Polícia Federal, seguidamente decapitada para se subordinar aos arbítrios palacianos, trouxe a público o que sobrou dos corpos como se sua missão estivesse cumprida. Desaparecidos, não, encontrados. A pressa em encerrar o caso é elucidativa.

Os assassinos agiram sozinhos, sem mandantes nem organização criminosa envolvida, advogam sem pudor os investigadores. Sabe-se, contudo, que até oito pessoas tenham se alternando entre a emboscada, a execução, o desfiguramento e a ocultação dos corpos – o que pressupõe premeditação conjunta e divisão de tarefas. Tal condição é mais que suficiente para caracterizar uma organização criminosa: animus associativo de grupo movido por fins criminosos particulares e/ou de terceiros.

Nos dias em que Bruno e Dom ficaram desaparecidos ou ocultados, o mentor-mor da escalada de invasões, intrusões e assassinatos nos territórios indígenas, ponteando o avanço da mineração e do agronegócio, se esperançou no sumiço. “São dezenas de milhares de pessoas que desaparecem todo dia”, então porque preocupar-se apenas com “esses dois?” redarguiu o presidente destilando seu cinismo de praxe. Seria mais simples para sua base de sustentação na Amazônia, se o caso se convertesse em uma fatalidade anônima.

Logo que percebeu que a tese não se sustentaria, o mandatário passou a culpabilizar as vítimas pela “aventura” em “área extensa e perigosa”. Não é o meio físico que determina um maior ou menor nível de riscos e sim as dinâmicas socioterritoriais que vão sendo autorizadas e legitimadas. A Amazônia não parece nada perigosa para garimpeiros, grileiros, pistoleiros e empresas de commodities que vão na sua cola. É perigosa, sim, para quem a defende. A cada declaração presidencial e a cada Projeto de Lei, Medida Provisória, Portaria e Instrução Normativa encaminhados pelo Executivo, são criadas expectativas de pilhagens adicionais da Amazônia, ficando marcados para morrer, de alma e de corpo, seus povos e comunidades tradicionais.

O avalista dos algozes disse ter convicção de que se Bruno e Dom tivessem combinado antes com a FUNAI, nada disso teria ocorrido. Marcelo Xavier, o testa de ferro (ou de ouro?) colocado à frente do órgão, falseia em coro: “É importante que as pessoas entendam que quando se vai entrar em uma área dessas, existe todo um procedimento”. Quer dizer que, se a “Nova FUNAI”, convertida em algo similar a um escritório do crime ambiental organizado, fosse avisada, ela seguraria as mãos assassinas de seus pares?

A FUNAI, quando era algo parecido com uma agência pública, destinada a criar uma interface dialógica e de construção conjunta de políticas públicas territoriais junto aos povos indígenas, com todos seus limites e contradições, tentava proteger ou pelo menos não facilitava intrusões, nem se alinhava às pressões de todas as ordens sobre seus territórios.

Na ponta da linha, as confissões dos pescadores são espetacularizadas enquanto se obscurece os que controlam o carretel, isto é, o planejamento da execução seletiva em dia, horário e local determinado. Alcançado o barco em que seguiam Bruno e Dom, no rio Itaquaí, afluente do Javari, ninguém ouviu a troca de tiros. Caçada matutina, vá saber quem a pratica. O entrelaçamento das atividades ilícitas no entorno e no interior das terras indígenas é de alto interesse das atividades lícitas baseadas na extração de recursos naturais. Assim como o desinvestimento e sucateamento das empresas públicas abrem caminho para privatizá-las, as pressões descaracterizadoras do tráfico e do garimpo abrem flancos para novas apropriações e espoliações.

Enquanto pelados, sem eira nem beira, confessam seus crimes, quem fica nu é o Rei. Quem enxergar, e contar o que viu, viverá?

A Polícia Federal indulta a quem quando diz em nota oficial que os “executores agiram sozinhos” e ainda “sem mandantes e sem organizações criminosas”? É preciso vendar os olhos e apagar denúncias, evidências e indícios que vão na direção contrária dessas afirmações, como as feitas pela União dos Povos do Vale do Javari (Univaja) e a Associação dos Kanamary do Vale do Javari (Akavaja) sobre invasões, garimpo, extração de madeira e pesca ilegal.

Apagar em particular as juras de vingança da rede criminosa de garimpo instalada na região, em parte desbaratada em setembro de 2019 pela Operação Korubo, a última grande operação conjunta entre PF, IBAMA e FUNAI antes das intervenções e desmontes destes órgãos. Foram apreendidas e destruídas 60 das 122 balsas de garimpo entre os rios Javari, Jutaí e Curuena, como pode ser verificado nas áreas assinaladas no mapa utilizado no planejamento da Operação.

Apagar também o antes e o depois desta Operação. O alerta sobre a gravidade do espraiamento do garimpo ilegal no Vale do Javari, foi dado em abril de 2019 pelo próprio Bruno Araújo Pereira, quando estava na Coordenação Geral de Indígenas Isolados e de Recente Contato (CGIIRC). O objetivo era destruir balsas e dragas para fazer pressão no sentido contrário ao do desmonte das políticas de reconhecimento das terras indígenas e de proteção aos povos isolados, impondo máxima restrição de acesso.

O regramento e atuação em defesa dos povos isolados é a última linha de resistência dos direitos territoriais no Brasil, já esgarçada quando do licenciamento dos grandes projetos do PAC na região entre 2006 e 2014. Mas foi a partir do Golpe de 2016 e do alçamento das forças ultraliberais e milicianas em 2018 que o desmonte se aprofundou, tanto no terreno discursivo como no das práticas materiais. Após a deflagração da Operação Korubo, um último soluço de uma política indígena não integracionista, os ânimos se exaltaram entre os lobbies do garimpo e do agro associados e o sertanista foi prontamente exonerado do cargo.

Fonte: FUNAI, 2019.

Apagar as evidências trazidas da “Operação Ágata conjunta” na Tríplice Fronteira, em março deste ano, após varredura do rio Japurá, quando foi possível demonstrar como garimpo e tráfico de drogas tem se fundido na prática, seja na cirlação, seja na lavagem de ouro e dinheiro.

Apagar, por fim, a última denúncia pública do sertanista assassinado, há menos de 30 dias de sua morte. Ele constatava o retrocesso no combate às atividades ilícitas na região e que a mineração ilegal voltara ao patamar anterior à Operação Korubo “os garimpeiros estão lá e a informação que a gente tem de outros kanamari é que o Rio Curuena tá empesteado de balsa de garimpo”.

Motivos torpes para a execução de dois aliados de povos indígenas acuados e cercados por grileiros, madeireiros e garimpeiros não faltavam. Receptadores do ouro sujo, os donos de DTVMs (Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários) muito bem relacionados com esferas institucionais nos três níveis da Federação, ao mesmo tempo que limpam o terreno operacional, também fazem mover proposições de mineração compulsória em terras indígenas junto ao Congresso e à Agência Nacional de Mineração.

Existem perguntas cujas respostas custam cabeças. Ai de quem responder a quem interessa a ocultação de outras autorias e coautorias, a ocultação dos nexos entre esta organização criminosa e outras organizações e respectivas atividades ilícitas. Ai de quem comprovar as conexões entre estas organizações, as oligarquias políticas locais e estaduais e os operadores-chave em Brasília.

Por isso há quem mande declarar que não há mandantes e há os que obedecem. Desavença, raiva repentina, eis a motivação certeira para que não apareça a motivação de fato. Do peixe ao ouro: a pesca e caça para contrabando, assim como o tráfico de cocaína e a mineração ilegal de ouro são altamente lucrativas. A cadeia de comando destas atividades remunera no sentido do “vale quanto pesa”. Não pesa pouco, em termos de intimidação e silenciamento da denúncia da rapina dos territórios, fazer desaparecer um sertanista organicamente reconhecido pelos povos e um jornalista de reputação internacional.

Uma corruptela da teoria da indústria infante, aquela que carece de proteção alfandegária para crescer, seria a teoria dos enclaves nascentes que precisam de regimes neoliberais autoritários que desmanchem normativas sociais e ambientais, produzindo assim subsídios regulatórios às avessas. Desta forma é que tem se expandido os corredores de extração e circulação de matérias-primas – lícitas e ilícitas – na Amazônia, com conexões globais comuns.

O problema, portanto, não está na ausência do Estado, e sim na sua presença sobredeterminada, no intuito da dissolução de acordos e pactuações sociais prévias.  A agenda anti-ambiental e anti-indígena, afora as negociatas financeiras e patrimoniais proporcionadas por Paulo Guedes, é a pedra angular de sustentação do atual governo e não quer deixar de ser do próximo. Os fascismos territoriais que lastreiam a bancada das commodities (maior que a ruralista) no Congresso Nacional e que se antenam na cadeira presidencial estão demarcando com sangue suas posições no front amazônico.

O ataque direto e em profundidade ao Vale do Javari, com cerca de 5 mil indígenas das etnias Marubo, Mayoruna, Matis, Kanamary, Kulina, Korubo e Tyohom-Dyapah, além de diversos grupos isolados é um teste decisivo para o destino do conjunto da região. Bruno e Dom não morreram defendendo apenas florestas e rios, mas sim os povos cocriados com eles. E são os povos isolados e recém-contatados os que melhor compreendem esta concomitância entre seres, tempos e lugares. A possibilidade de convivermos e de aprender com estes modos não instrumentais de vida, a chance de podermos um dia nos reconhecer como nação multi e pluriétnica, está em jogo.

*Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo, doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ e professor da Universidade Federal de Rondônia.

 

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