Florestan Fernandes e a periferia na universidade

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Por PAULO FERNANDES SILVEIRA*

“Tudo que nóis tem é nóis” (Emicida).

Nos anos 1960, uma corrente da linguística sustentava que os jovens afro-americanos recorrem aos dialetos por não conseguirem aprender o inglês padronizado nas escolas. Contra essa abordagem, William Labov (1984) refutou a tese de que o uso dos dialetos implicaria num déficit cultural. Em suas pesquisas, Labov constatou que os jovens dos guetos do Harlem sabem empregar, igualmente, os dialetos e o inglês padrão.

A hipótese da privação verbal dos estudantes afro-americanos dos guetos é um mito linguístico e educacional. Ao invés de questionar os problemas do sistema educativo, esse mito responsabiliza os estudantes, suas famílias e comunidades pelas experiências de fracasso escolar. No limite, esse mito pode levar à hipótese racista “da inferioridade genética dos negros” (LABOV, 1984, p. 146).

Na origem desse mito, argumenta Labov (1984), está uma teoria linguística equivocada sobre as relações entre o inglês não padrão e o inglês padrão. Assim como o inglês difundido nos guetos, o inglês padrão adotado nas escolas e nas universidades também pode ser compreendido como um dialeto. Por razões políticas, essas variações da língua não possuem o mesmo prestígio na sociedade (LABOV, 2008).

Num texto sobre a linguagem, Bell Hooks rememora um verso de Adrienne Rich (2018) que marcou sua experiência como estudante universitária: “Esta é a língua do opressor, no entanto, eu preciso dela para falar com você” (HOOKS, 2008, p. 857). O inglês padrão, afirma Hooks, “é a língua da conquista e da dominação, (…) é a máscara que esconde a perda de tantas línguas, (…) comunidades nativas que nunca ouviremos” (2008, p. 858). O vernáculo negro promoveu uma ruptura com o inglês padrão que “possibilitou e possibilita rebelião e resistência” (HOOKS, 2008, p. 860).

Algumas das variações desenvolvidas por grupos sociais específicos são incorporadas pelos demais falantes da língua padrão. Isso ocorre, pontua Labov, porque a variação é “uma propriedade inerente e regular do sistema” (2008, p. 262). Seguindo essa posição, Deleuze e Guattari (1995) tomam as variações inerentes como elementos fundamentais de transformação da cultura e das artes. Nesse sentido, tanto as variações linguísticas quanto as não-linguísticas, “as variáveis de expressão e as variáveis de conteúdo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 42), contribuem para a criação intelectual.

Influenciado pelos trabalhos de Labov e de outras autoras e autores, o meio acadêmico começou a refletir sobre a importância do plurilinguismo e da justiça curricular (CONNELL, 1993). Defende-se que a universidade se transforme num espaço plural de produção de conhecimento. A democratização do ensino implica no reconhecimento e no estudo de uma ampla diversidade de línguas e de saberes!

Nos últimos anos, com a progressiva adesão ao Sistema de Seleção Unificada (SISU) e com os investimentos no Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (PAPFE), a Universidade de São Paulo passou a ter um número significativo de alunas e alunos oriundos das escolas públicas. Uma parte desses estudantes reside nas periferias e nas cidades próximas à capital.

Como sustentam Deleuze e Guattari (1995), o intercâmbio entre pessoas de culturas e classes sociais diferentes pode contribuir para a originalidade da produção acadêmica. Isso ocorreu, a partir dos anos 1940, nas pesquisas de Florestan Fernandes.

De origem humilde, Florestan foi uma exceção na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São Paulo. Entre seus colegas de turma na faculdade, Florestan era o único que vinha do lumpemproletariado: “Eu era como um estranho e, a vários respeitos, um intruso. (…) Se não se revelaram hostis, também não abriram as comportas do seu ‘círculo’” (FERNANDES, 1976, p. 158-159).

Filho de uma lavadeira, Florestan enfrentou a violência do projeto paulistano de expulsão das classes pobres para as periferias (SANTOS, 2003). Uma das estratégias dessa “higienização” foi a ausência de uma política de regulamentação dos aluguéis: “Nós morávamos em pequenos cortiços ou em porões e quando o aluguel subia éramos obrigados a abandonar o lugar em que estávamos” (FERNANDES, 1997, p. 227).

Uma das razões para a evasão escolar entre as crianças pobres (PATTO, 1999), Florestan precisou morar com sua mãe em diversos bairros: Bom Retiro, Bela Vista, Brás, Bosque da Saúde e Penha. Quando fazia o curso de graduação em ciências sociais, o professor Arbousse Bastide lhe perguntou o que ele estava lendo, Florestan respondeu que lia Durkheim no bonde que o levava para casa (SOARES, 2021).

Durante o período de estudante, Florestan morou na Penha, bairro operário e periférico na Zona Leste. A faculdade e a firma em que trabalhava ficavam no centro da cidade. Nesses trajetos, ele ia do ponto inicial ao final da linha de bonde. Numa entrevista, Florestan comenta: “tanto quando eu ia para o serviço, como quando voltava, eu ficava um tempo enorme no bonde. Podia ler” (SOARES, 2021, p. 63).

Essa experiência periférica influenciou a sociologia de Florestan. Por causa das lacunas em sua formação secundária, ele precisou seguir uma “disciplina monástica” de leituras e estudos para acompanhar o curso de graduação. No testemunho de Antonio Candido: “é preciso mencionar o seu raro poder de concentração, um dos instrumentos mais importantes da vida intelectual, que lhe permitia ler sem parar, em qualquer situação: no estribo dos bondes, na sala de espera dos médicos, nos saguões de cinema, sem falar das bibliotecas públicas” (1996, p. 44).

A infância de Florestan nos cortiços e porões marcou suas pesquisas sobre o folclore: “Por condições da minha própria vida quando criança, do conhecimento dos bairros de São Paulo, dos contatos que eu tinha com certas pessoas, foi muito fácil para mim colher muito material” (2011, p. 29). Sua pesquisa com Roger Bastide sobre a questão do negro também evocou suas experiências: “Estabeleceu-se uma base de identificação psicológica profunda, em parte por causa do meu passado, em parte por causa da minha experiência socialista prévia” (FERNANDES, 2011, p. 72).

Em sua pesquisa sobre a organização social dos tupinambás, Florestan (1989) encontrou elementos da sua “cultura” de “folk” (MUSSOLINI, 2009), advinda da origem campesina da sua família e das pessoas que lhe eram próximas. Nas atividades de trabalho que realizou desde a infância, Florestan conheceu o companheirismo de outras crianças que também precisavam ganhar a vida nas ruas. Essa forma de solidariedade existe nas tribos indígenas que o sociólogo estudou: “os que não têm nada para dividir repartem com os outros as suas pessoas” (FERNANDES, 1976, p. 144).

Desde os seus primeiros textos, Florestan preocupou-se em criar uma nova linguagem, um dialeto que visava o rigor e a precisão conceitual. Segundo Maria Arminda Arruda, “a linguagem de Florestan Fernandes emerge envolvida por termos hauridos na concepção do método científico” (1995, p. 142). Foi com essa postura inovadora que esse sociólogo periférico contribuiu para o conhecimento acadêmico.

*Paulo Fernandes Silveira é professor da Faculdade de Educação da USP e pesquisador no Grupo de Direitos Humanos do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Referências

ARRUDA, Maria Arminda (1995). A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a “escola paulista”. In: MICELI, Sérgio (org.). História das ciências sociais no Brasil, v. 2. São Paulo: Vértice, p. 107-232.

CANDIDO, Antonio (1996). Florestan Fernandes estudante e estudioso. In: Lembrando Florestan Fernandes. São Paulo: Edição particular, p. 44-49. Disponível em: https://marxismo21.org/wp-content/uploads/2015/08/Lembrando-Florestan-Fernandes.pdf

CONNELL, Raewyn (1993). Escuelas y justicia social. Madrid: Ediciones Morata.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1995). 20 de novembro de 1923: postulados de linguística. In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 2. São Paulo: Editora 34, p. 11-59.

FERNANDES, Florestan (1976). Em busca de uma sociologia crítica e militante. In. FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, p. 140-212.

FERNANDES, Florestan (1989). A organização social dos Tupinambá. São Paulo: HUCITEC/ Editora UNB.

FERNANDES, Florestan (1997). Florestan Fernandes, por Paulo de Tarso Venceslau. In: ABRAMO, Bia (org.). Rememória: entrevistas sobre o Brasil do século XX. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, p. 223-240. Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/rememoria.pdf

FERNANDES, Florestan (2011). Entrevista: Florestan Fernandes, TRANS/FORM/AÇÃO: Revista de Filosofia, 34, p. 25-106. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/1060

GAENSLY, Guilherme (1916). Foto de transporte público/operários. Disponível em:

http://repositorio.im.ufrrj.br:8080/jspui/handle/1235813/129

HOOKS, Bell (2008). Linguagem: ensinar novas paisagens/ novas linguagens. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 3, p. 857-864. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/GWcB7QS3ZNxr3jn6qj6NHHw/?format=pdf&lang=pt

LABOV, William (1984). La lógica del inglés no stándard, Educación y sociedad. Revista interdisciplinar de la educación, n. 4, p. 145-168. Disponível em: https://issuu.com/enguita-eys/docs/educacion-y-sociedad-04

LABOV, William (2008). Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola Editorial.

MUSSOLINI, Gioconda (2009). Persistência e mudança nas sociedades de “folk” no Brasil, Cadernos de Campo, v. 18, n. 18, p. 287-300. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/45609

PATTO, Maria Helena (1999). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo.

RICH, Adrienne (2018). Que tempos são estes. São Paulo: Edições Jabuticaba.

SANTOS, Carlos [Casé Angatu Tupinambá] (2003). Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza, 1890-1915. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2003.

SOARES, Eliane Veras (2021). Primeira entrevista com Florestan Fernandes. In: SOARES, Eliane Veras; COSTA, Diogo Valença (orgs.). Florestan Fernandes: trajetória, memórias e dilemas do Brasil. Chapecó: Marxismo 21, p. 49-75. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1QvjPT9jz7CPEkHRj8RzYtxcYZUk_S5uf/view

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