Sombras de Apolo

Imagem: Carlos Cruz–Diez
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Por FLÁVIO R. KOTHE*

Uma variação em torno do ensaio de Freud sobre a “Gradiva” de Jensen, bem como uma reflexão sobre a dialética de luz e sombra

Eu tinha uma sombra em mim, tão obscura que não a conhecia e nem reconhecia. Nas sombras de mim mesmo ela se perdia. Só quando senti a sombra que em ti havia e me impedia de me aconchegar em ti, passei a suspeitar da extensa sombra que em mim se estendia, assombrando a mente que eu tão lúcida pretendia.

Eu havia me perdido, ofuscado em luz, naquilo que eu pensava ser luz. Nas trevas do luto em que a tua sombra interior me jogou, descobri aos poucos quão obscura era a luz que parecia nos iluminar. Tu me ensinaste a andar devagar em mim, a sombra que em ti havia me ensinou, mais que tu, ela me ensinou a sopesar a escuridão com as mãos. Estava densa entre nós, lançando o seu negror iluminado e nos fazendo desaparecer em meio ao dia.

Era a hora dos fantasmas, Apolo no sol a pino, sombra nenhuma e imagem plena. Parecia não haver sombra em nada, tudo era sombra e refulgia como se fosse dia. Tudo era luz, tudo era sombra, tudo era sombra na luz. A sombra se vestira de luz para esconder sua nudez. À vista de todos, ninguém a via. Era noite ao meio-dia. Noite havia na luz do dia.

Quando caminhei pelas ruas de Pompéia, pulei sobre as pedras redondas das ruas como se eu fosse um antigo romano a evitar rodas de carroças que não passavam mais. Zoe passou rápida duas ruas adiante, mas tão rápida como se jamais tivesse passado. Havia quem buscasse Gradiva, a grã diva, grávida de perfídias e divina vida, enquanto eu apenas vagava distraído com as mãos nos bolsos e um tango argentino nos lábios. Eu não sabia então que meu coração e minha vida já estavam perdidos nessas ruas de Pompéia, desviados para sempre da bela fera que eu deveria ter encontrado e jamais pude abraçar.

Hoje caminho pelas ruas do Lago Norte como os velhos que lutam contra os anos que vão abrindo covas na solidão da noite. Tive um coração para a Bela Adormecida do Norte, mas ela não ouviu a canção ao pé da torre. Mirava deus nas alturas, não me ouvia. Vejo o pôr do sol, durmo com a cabeça para o norte e saúdo ainda o amanhecer, mas nada muda. Mudo.

Passa-se um dia, uma semana, um mês, talvez passem anos, tudo muda e nada passa. Vou continuar caminhando sozinho nas trilhas obscuras do peito: não no meu, mas já no obscuro campo que desembocou em teus olhos e me emborcou pelo avesso. Nada mais tenho a acrescer senão o mesmo imperativo que nos fez perder o brio da solidão e o brilho do orgulho. Apalpo as sombras que existem em nós, sombras se envolvem e revolvem na cama do meio-dia: perderam-se nas ruas de Pompéia, bem antes de serem o nosso desencontro.

Eu quis ficar contigo, mas tu quiseste apenas a tua paz. Por fraqueza foste a fortaleza que não abriu seus portais para meus cavalos mortais. Teus muros não acenaram bandeiras. No silêncio do meio-dia, quando todos os pássaros se calam e nada se move, sequer o vento invisível com a pomba alada que deveria trazer o ramo com brotos, passo a entender as benesses do desamor: da morte vive a vida, nosso bem é matar o que nos quer matar.

Noite após noite escuto os gritos de um corujão solitário no poste de uma esquina que não leva a lugar nenhum. Sua companheira se foi há um mês e nem rastro deixou. O pio solitário clama para a lua e para o vento, mas só a cachorrada da vizinhança responde. Mais feliz parece quem chora saudades do que já teve. Tenho saudades do que nunca tive.

Nenhuma resposta recebo, e nem quero. Vejo exposta a nossa morte, um feto abortado numa caixa de sapatos enterrada sob bananeiras, como se o aceno das folhas longas fosse o farfalhar dos fantasmas do que poderia ter sido e não será jamais. Não peço perdão por ter tentado caminhar em tua solidão. Tentei percorrer a tua escuridão, estendi a minha mão e a vi pendurada no vazio. A tua solidão caminha em mim. Ela é a luz que tenho de ti. Já é demais, de ti não quero mais. Solidão do meio-dia, solidão da noite e meia.

*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Benjamin e Adorno: confrontos (Ática).

 

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