O marco histórico do surgimento do capitalismo

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Por OSVALDO COGGIOLA*

Considerações sobre a decomposição do feudalismo europeu.

A decomposição do feudalismo europeu liberou os elementos para o surgimento do capital como relação social dominante. Karl Marx assim o resumiu: “A ascensão do capitalista representa uma vitória contra os mestres e senhores, contra as corporações e os feudos. O homem agora poderia ser livremente explorado. O processo que produziu o assalariado e o capitalista tem suas raízes na sujeição do trabalhador. A expropriação do produtor rural, do camponês, que ficava assim privado de suas terras, constituiu a base de todo o processo. Em finais do século XIV, a servidão tinha desaparecido praticamente da Inglaterra”.[i] Preenchida essa condição, ficava aplainado o caminho para outras. O crescimento de um grupo social que dependia inteiramente do seu salário, reduzido e miserável, provocou os primeiros enfrentamentos desse grupo com a burguesia, o setor mais dinâmico da nova economia em andamento.

A revolta dos explorados pelo novo sistema de produção, que se manifestou desde cedo, no entanto, não conseguiu abrir uma perspectiva societal própria. Na Florença medieval, em 1344, o setor mais empobrecido da sociedade, os ciompi, liderados por Ciuto Brandini, fizeram uma rebelião para estabelecer uma corporação que os representasse. Chamados de “gente magra”, eles eram uma camada social composta por pequenos comerciantes arruinados e trabalhadores agrários, que tinham vindo do campo para as cidades para satisfazer a necessidade de mão de obra barata. Fracassada sua primeira rebelião, a situação social florentina foi agravada pela “guerra dos oito santos”, iniciada em 1375, na qual se confrontaram Florença e diversas cidades italianas contra os Estados Papais, guerra que resultou na derrota das cidades e numa multa contra Florença, onde a corporação de artesãos se rebelou contra os banqueiros e grandes mercadores que detinham o poder da cidade, revolta que recebeu o apoio dos ciompi, que assumiram o controle da situação.

Em julho de 1378, os ciompi ocuparam o Palazzo Vecchio para exigir o direito de associação e participação na vida pública, conseguindo o reconhecimento de três novas corporações, que passaram a representar as classes populares (o “povo de Deus”): a dos ciompi, a dos alfaiates e a dos tintureiros. O governo encabeçando por Di Lando, principal liderança ciompi, viu crescerem as exigências das camadas populares, como o cancelamento das dívidas, e, do outro, a resistência dos mais ricos. O novo líder da cidade se alinhou aos mais ricos para reprimir os protestos populares. Ocorreu uma feroz batalha entre os ciompi e as guildas maiores, lideradas pela corporação dos açougueiros: os ciompi e seus aliados foram massacrados pelas outras corporações, numa jornada sangrenta.[ii]

Segundo Karl Marx, essa e outras revoltas semelhantes fracassaram “não só por causa do estado embrionário do próprio proletariado, como também devido à ausência das condições materiais de sua emancipação, que apenas surgem como produto da época burguesa”.[iii] Essas condições foram geradas de um modo surpreendentemente rápido.

O segredo da acumulação capitalista originária consistia em que “o dinheiro e a mercadoria não são capital desde um primeiro momento, como tampouco o são os meios de produção e de subsistência. Requerem ser transformados em capital. Mas esta transformação só pode se operar em circunstâncias coincidentes: era necessário que se enfrentassem e entrassem em contato duas classes muito diferentes de possuidores de mercadorias; de um lado os proprietários de dinheiro, de meios de produção e de subsistência, a quem compete valorizar, mediante a aquisição de força de trabalho alheia, a soma de valor da qual se apropriaram; do outro lado, trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, portanto, vendedores de trabalho”. A acumulação originária de capital foi o parto da sociedade capitalista ao mesmo tempo em que um processo de dissolução de relações de produção pré-capitalistas.

As vias da dissolução do Antigo Regime, e da acumulação originária de capital, ou seja, as premissas históricas do capitalismo, foram constituídas pela ruína e expropriação compulsória de camponeses e artesãos, que criou a força de trabalho livre, e pela acumulação de capital monetário por parte da burguesia urbana, a posse de “grandes quantidades de capital” por um setor diferenciado e minoritário da sociedade, qualquer que fosse sua origem prévia. Foi a partir da Inglaterra, onde esse processo avançou mais rapidamente, que as tendências econômicas do capitalismo se estenderam para outros países. Para isso, no entanto, foi necessário que a acumulação primitiva, baseada na violência organizada pelo Estado, no roubo, no logro comercial e nas finanças usurárias, se transformasse em acumulação capitalista plena, baseada na troca universal de valores equivalentes e na acumulação e reprodução ampliada do capital. Vejamos o ensejo desse processo, simultaneamente econômico e político.

Os primeiros burgueses, que se rebelaram nas cidades contra a Igreja nos séculos XI e XII, não alteraram decisivamente o modo de produção da Europa, pois ainda se inscreviam nos parâmetros de reprodução do sistema feudal.[iv] Os combates pelas autonomias urbanas contra as autoridades eclesiásticas exibiram e ensejaram um amplo repertório de movimentos que os aproximavam das heresias religiosas. As coisas mudaram nos séculos sucessivos. Depois de um recuo econômico transitório na Europa no século XIV, a retomada comercial do continente experimentou um salto espetacular a partir de meados do século XV. A destrutiva Peste Negra foi um fator dinamizador da economia e das relações mercantis. A peste penetrou na Europa pela Sicília, em 1347, trazida por mercadores genoveses que fugiam de um cerco de tropas húngaro-mongóis (portadoras da doença) na Crimeia, eliminando rapidamente metade da população da ilha italiana.

Espalhou-se pelo Norte da Itália em 1348, quando também atingiu o Norte da África. No final desse ano, a peste alcançou à França e os países ibéricos. Em 1349, progredindo em razão de dez quilômetros por dia, atingiu Áustria, Hungria, Suíça, Alemanha, Holanda e Inglaterra: “Numerosas cidades adotaram medidas rigorosas de quarentena. Não apenas Lucca e Pisa foram contagiadas, a vizinha Pistoia proibiu a todos seus cidadãos que se encontrassem de visita ou devido a negócios em cidades atingidas voltar a casa, e também vetou a importação de lã e de linho”.[v]

A peste dizimou entre um quarto e metade da população europeia, ou seja, entre 25 e 40 milhões de pessoas. Metade dos trabalhadores agrícolas europeus morreu: “Os sobreviventes viram um grande aumento dos seus ordenados, pois tinham agora a possibilidade de regatear os préstimos com os habitantes das cidades, que precisavam desesperadamente dos alimentos que apenas os servos produziam… A doença matou pessoas, mas não danificou a propriedade. Tudo que os mortos tinham possuído pertencia agora a outros. A nova riqueza dos sobreviventes lançou-os numa das maiores fúrias gastadoras da história.

Os últimos 25 anos do século XIV foram uma época de prosperidade. O consumismo desmedido foi alimentado pelo relaxamento da moral que se seguiu à epidemia. Quando estamos cercados pela morte não é fácil impor regras à família, aos vizinhos, ou aos súditos”.[vi] Quem diz consumo diz comércio, portanto moeda e, portanto, metais preciosos. Nessa fase, o capitalismo se identificava ainda com o capital comercial, dominante na Europa do século XIV até o século XVIII, período em que a burguesia mercante europeia começou sistematicamente a buscar riquezas fora da Europa.

Os comerciantes estavam à procura de ouro, prata, especiarias e matérias primas não encontradas em solo europeu: financiados por reis, nobres e banqueiros, começaram um ciclo de exploração cujo objetivo principal era o enriquecimento mediante o acúmulo de capital, a busca de lucros comerciais; houve, para isso, uso cada vez maior de mão de obra assalariada, com a moeda substituindo o antigo sistema de trocas, relações bancárias e financeiras, fortalecimento do poder econômico da burguesia. Foi no século XV que se acelerou o processo de acumulação primitiva de capital na Inglaterra, onde havia uma legislação que congelava o valor das terras da nobreza: a nobreza enfraquecia economicamente, já que subia o preço do que consumia, enquanto sua renda continuava a mesma.

Entre os séculos XIV e XVI, os movimentos urbanos de revolta continuaram, agora protagonizados por setores enriquecidos que tratavam de obter um lugar no patriciado para participar do governo das cidades. À par dessas lutas, surgiram abalos sociais de outra natureza que, pela primeira vez, questionavam o feudalismo dominante. Foram dirigidos por primitivos empresários e foram paralelos às lutas camponesas. A arrancada final do novo modo de produção situou-se na segunda metade do século XVI e no começo do século XVII, principalmente na Inglaterra e nos Países Baixos.

No Sul da Inglaterra, a “pequena nobreza” progressista, a gentry,[vii] não enveredou pelo parasitismo do Estado e passou a dedicar-se à produção de lã para a nova e auspiciosa indústria de tecido voltada para o mercado interno e externo, o que esteve na raiz dos cercamentos de terra, enclosures, para garantir terrenos para os crescentes rebanhos fornecedores da matéria prima dessa indústria. O processo de formação de uma burguesia capitalista com presença e dimensões nacionais exigiu outras condições. O entrelaçamento dos interesses econômicos dessa nobreza do Sul com a burguesia manufatureira e comercial do Norte deveu-se à origem burguesa da fração que havia ingressado na gentry mediante compra de terras confiscadas e de títulos nobiliárquicos. Os cercamentos do século XVI foram acompanhados pela difusão da grande manufatura têxtil na zona rural, longe dos óbices à sua expansão inerentes às rígidas regras das corporações de ofício das cidades. Floresceu assim o denominado “sistema doméstico” de manufatura têxtil.

Na Inglaterra, somado a isso, coincidiram a disponibilidade e a possibilidade de uma exploração rentável do capital monetário, com uma inicial impulsão estatal para o aproveitamento em maior escala das inovações e descobertas técnicas. Junto a isso, Inglaterra passou a possuir um sistema financeiro mais completo, abrangente e conectado, com a criação do Banco da Inglaterra, em Londres – banco fundado em 1694 pelo escocês William Paterson, inicialmente como banco privado – que passou a centralizar as finanças nacionais, traduzindo o avanço da burguesia inglesa depois da “Revolução Gloriosa” de 1688.

O capital comercial inglês, o grande protagonista desse processo, era originado menos no crescimento da demanda externa e no comércio com as colônias do que na expansão do comércio interno. No campo, por sua vez, os câmbios nas relações de propriedade estiveram precedidos pela revolução agrária, a “revolução dos ricos contra os pobres”, e pelo crescimento da população camponesa, causada pela exploração das terras disponíveis mediante métodos de cultivo mais intensivos. Os Países Baixos, por sua vez, viraram um carrefour marítimo e comercial de alcance continental com o saque do porto belga de Anvers pelos espanhóis. Em consequência, Amsterdã se transformou na “loja da Europa”, com a primeiras bolsas “modernas” de mercadorias e de valores.

O período situado entre os séculos XVI e XVIII foi denominado de “era do mercantilismo”, conceito associado à exploração geográfica mundial da “Era dos Descobrimentos” e à exploração dos novos territórios por mercadores, especialmente da Inglaterra e dos Países Baixos; também com a colonização europeia das costas da África e das Américas e com o rápido crescimento no comércio externo dos países europeus. O mercantilismo era “um número de teorias econômicas aplicadas pelo Estado num momento ou outro, num esforço para conseguir riqueza e poder.

A Espanha foi no século XVI o país mais rico e poderoso do mundo. A explicação para isso estava na exploração do ouro e da prata”.[viii] Era um sistema baseado na defesa do comércio com fins lucrativos, embora as mercadorias fossem ainda produzidas com base em um modo de produção não capitalista; o bulionismo salientava a importância de acumular metais preciosos. O termo derivava do inglês bullion: ouro em pequenos lingotes; chamado também de metalismo, pela teoria econômica que quantificava e hierarquizava a riqueza através da quantidade de metais preciosos possuídos.

Os mercantilistas argumentavam que o Estado devia exportar mais bens do que importava, para que os países estrangeiros tivessem que pagar a diferença em metais preciosos: somente matérias primas que não pudessem ser extraídas no próprio país deveriam ser importadas. O mercantilismo promovia subsídios e concessão de monopólios comerciais a grupos de empreendedores, assim como tarifas protecionistas, para incentivar a produção nacional de bens manufaturados. Os empresários europeus, apoiados por controles, subsídios e monopólios estatais, realizavam a maior parte de seus lucros a partir da compra e venda de mercadorias.

Segundo Francis Bacon, o objetivo do mercantilismo era “a abertura e o equilíbrio do comércio, o apreço dos fabricantes, o banimento da ociosidade, a repressão dos resíduos e excesso de leis, a melhora e administração do solo; a regulamentação dos preços”.[ix] Nesse período, o renascente Estado substituiu as corporações locais como regulador da economia. Schumpeter reduziu as proposições mercantilistas a três preocupações principais: controle do câmbio, monopólio de exportação e saldo da balança comercial. Esses processos tiveram por palco fundamental a Europa ocidental, em especial a Inglaterra, centro da acumulação capitalista primitiva e, depois, ponto de irradiação mundial do novo modo de produção. Vejamos suas razões principais.

A acumulação capitalista primitiva na Inglaterra se desenvolveu a partir de dois pressupostos vinculados: a concentração de uma grande quantidade de recursos (sobretudo dinheiro e terras) na mão de um pequeno setor da sociedade; e a formação de um contingente de indivíduos que foram compulsoriamente despossuídos das terras de propriedade comunal (por meio da espoliação e dos cercamentos, realizados pela aliança da burguesia nascente com a gentry e com o Estado absolutista inglês) que, portanto, se viam obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver.

A realização dessas condições nada teve de um automatismo ou racionalização econômicas: “Os economistas políticos clássicos não estavam dispostos a confiar nas forças do mercado para determinar a divisão social do trabalho porque achavam que a tenacidade dos produtores rurais tradicionais era muito desagradável. Em vez de defender que as forças do mercado deveriam determinar o destino desses produtores de pequena escala, a economia política clássica pediu intervenções estaduais de um tipo ou de outro para prejudicar a capacidade dessas pessoas para produzir em resposta às suas próprias necessidades.

As suas recomendações políticas equivalem a uma manipulação flagrante da divisão social do trabalho. Não podemos justificar tais políticas em termos de eficiência. Se a eficiência fosse de grande importância para eles, os economistas políticos clássicos não teriam ignorado a lei que permite aos nobres (‘gentry’) atravessar os campos dos pequenos agricultores em perseguição de raposas, enquanto proibia aos agricultores que livrassem as suas terras de fauna selvagem capaz de comer as colheitas. Estas leis destruíram uma enorme parcela da produção agrícola”.[x]

Intercâmbio de mercadorias, mercados, progresso tecnológico, existiam antes do capitalismo, e se encontravam tão desenvolvidos ou mais do que na Europa em outras partes do mundo. O capitalismo moderno se expandiu, no entanto, na Europa do século XVI, a partir de um país que não era especialmente rico nem densamente povoado, a Inglaterra. Seus inícios se situaram no campo, especificamente nas mudanças nas relações sociais de propriedade e na perda de poder político da nobreza, que conduziram a um tipo de mercado novo. Mercados existiram quase desde sempre, mas os mercados pré-capitalistas não dependiam da extração de mais-valia de produtores: eles dependiam da circulação de bens, especialmente de luxo, de uma região para outra. Eles ofereciam oportunidades de enriquecimento para comerciantes holandeses ou florentinos; não impulsionavam, no entanto, nenhum ou quase nenhum aumento da produtividade, não condicionando a produção.

O capital agrário inglês foi o criador da moderna propriedade fundiária, responsável por promover a dissolução das relações de honra, tradição e vínculo “pessoal” com a terra, substituídas pelo mero interesse econômico e transformando-a em mercadoria. O interesse econômico pela terra ocorre quando é possível auferir uma renda fundiária. Foi na Inglaterra do século XVI que começou a surgir um mercado que impunha de modo inexorável o aumento da produtividade da terra. Nesse país, a propriedade da terra estava nas mãos de grandes senhores, que a alugavam a meeiros e parceiros.

O poder político da nobreza tinha diminuído, em benefício da monarquia, o que impedia aos senhores da terra extrair novos benefícios da exploração dos camponeses pela força ou pela imposição de taxas. A propriedade de terra, no entanto, lhes conferia poder econômico. Os tradicionais aluguéis fixos foram sendo substituídos por aluguéis determinados pelo mercado, por aquilo que os camponeses poderiam pagar, ou pelo que poderiam pagar melhorando sua produtividade.

Essas novas relações entre senhores e camponeses criaram na Inglaterra uma situação única. A formação econômico-social de Portugal, a sesmaria, por exemplo, não era tipicamente feudal, pois suas raízes não estavam ligadas a um passado arcaico ou decorrente de relações servis. A Coroa concentrava grande parte das terras e concedia seu domínio condicionado ao uso, sem, contudo, abrir brechas para o processo da criação da moderna propriedade territorial como pressuposto para a formação do mercado de trabalho, estimulando a transição para o capitalismo.

Na Inglaterra, diversamente, a usurpação de terras ocorreu conduzida pela nobreza fundiária, apoiada pelos capitalistas, que almejavam transformar a terra em uma mercadoria, possibilitando ampliar a área de exploração agrícola e intensificar o processo de proletarização dos camponeses. Nesse país, a concentração fundiária foi legitimada pelo Estado; a Coroa foi responsável pela alienação das terras do Estado para particulares. O processo de expropriação dos camponeses e de concentração de terra foi sancionado fazendo uso da lei e da força e violência do Estado.

A formação do polo burguês da sociedade inglesa foi possível graças às riquezas acumuladas pelos negociantes com o tráfico de escravos africanos, com o saque colonial, com a apropriação privada das terras comunais dos camponeses, com a proteção das manufaturas nacionais, e com o confisco e/ou venda a baixo preço das terras da Igreja. A acumulação originária imbricou, dessa maneira, processos internos e externos de economias em estado de expansão espasmódico.

Os economistas clássicos não viam a acumulação originária a partir desse ângulo, pois não conseguiam ir além das aparências: identificavam o capital com o dinheiro e, em outros casos, com os meios de produção (capital fixo): daí que pensassem que o capitalismo (como quer que o chamassem) existia desde que o homem conseguira elaborar os primeiros instrumentos de trabalho. Adam Smith, quando estudou a previous accumulation referiu-se exclusivamente à acumulação de dinheiro e instrumentos de trabalho em mãos dos capitalistas, sem atentar para a expropriação compulsória da maioria da população. Ora, em outros momentos da história conseguiu-se acumular em poucas mãos grandes quantidades de dinheiro, mas isto não deu lugar ao surgimento do capitalismo, sistema em que a acumulação de dinheiro se assentou sobre relações de produção de novo tipo.

A manufatura, substituta crescente do artesanato nas cidades, foi uma consequência da ampliação do consumo, que levou o produtor a aumentar a produção, e o comerciante a dedicar-se também à produção industrial. Ela resultou também do aumento do comércio de base monetária, em substituição da troca direta. Com a manufatura houve aumento na produtividade do trabalho, devido à divisão técnica da produção no estabelecimento industrial, onde cada trabalhador realizava uma etapa na confecção de um único produto. A ampliação do mercado consumidor relacionou-se diretamente ao alargamento do comércio, tanto interno como em direção do Oriente ou da América.

Outra característica foi o surgimento da interferência direta do comerciante no processo produtivo, passando a comprar a matéria prima e a determinar o ritmo de produção. O processo que criou o sistema capitalista consistiu na transformação em capital os meios sociais de subsistência e de produção, e converteu em assalariados os produtores diretos. Isto já acontecia, limitadamente, nas cidades costeiras italianas, em Flandres e na Inglaterra; no início do século XIV, porém, os benefícios do setor capitalista da economia ainda provinham majoritariamente do comércio e das finanças, não da manufatura ou da indústria.

A gênese do capitalista agrário passou por uma metamorfose iniciada no servo capataz, passando pelo “arrendatário livre” e pelo “meeiro”, até concluir no “arrendatário propriamente dito”, que já tinha capital próprio, contratava trabalhadores assalariados e pagava uma renda, em dinheiro ou em espécie, ao proprietário de terras. A gênese do arrendatário se desenvolveu na Inglaterra desde seu estágio primitivo no bailif (de bail: contrato), ainda servo, passando pela sua substituição, durante a segunda metade do século XV, pelo colono.

O colono logo se tornou parceiro, que também desapareceu para dar lugar ao arrendatário, que procurava expandir seu capital empregando trabalhadores assalariados e entregava ao landlord uma parte do produto excedente, em dinheiro ou em produtos, como renda da terra. O arrendatário capitalista inglês surgiu, desse modo, das fileiras dos servos da Idade Média. Maurice Dobb acentuou esse aspecto, ao afirmar que os embriões do capital estavam na pequena produção mercantil de base agrária existente ainda no feudalismo, na economia de pequenos produtores separados e relativamente autônomos, ainda submetidos por mecanismos extra econômicos (principalmente religiosos e militares) aos senhores feudais. À medida em que os camponeses conseguiam a emancipação da exploração feudal, através de revoltas contra os senhores e de condições que lhes favoreciam (como as pestes que tornavam escassa, e por isso mais valorizada, a força de trabalho), eles podiam guardar para si parcelas maiores de sua produção, acumular um pequeno excedente, usar seus lucros para melhorar o cultivo e acumular algum capital.[xi]

Alguns desses camponeses enriqueceram e passaram a usar o trabalho de outros para acumular capital e, progressivamente, a pagar suas obrigações servis aos senhores feudais em dinheiro, na forma de uma renda pelo uso da terra. Assim foram se consolidando os arrendatários capitalistas (que arrendavam as terras da aristocracia rural, e lhes repassavam uma parte de seus lucros na forma de uma renda pelo seu uso) ao mesmo tempo em que a multiplicação de trabalhadores rurais assalariados, que compunham um mercado de força de trabalho e também um mercado consumidor em expansão, acelerando a passagem para uma economia monetária geral.

O século XVI inglês marcou a ascensão do arrendatário capitalista, que enriqueceu com a mesma rapidez com que a população rural empobreceu. A usurpação das pastagens, os contratos de arrendamento de longo prazo, a inflação e depreciação contínua dos metais preciosos (a “revolução dos preços” do século XVI), o rebaixamento dos salários, a elevação contínua dos preços dos produtos agrícolas, e a renda que tinha de se pagar ao landlord, fixada pelo valor monetário antigo, foram os fatores responsáveis pelo surgimento da classe de arrendatários que se fortaleceu pelo aumento da circulação monetária.

A inflação de preços favoreceu as novas relações econômicas e sociais, acirrou a disputa entre comerciantes e senhores e propiciou novas funções para o Estado: “No século XVI, o ouro e a prata circulantes na Europa aumentaram em consequência da descoberta na América de minas mais ricas e fáceis de explorar. O valor do ouro e da prata caiu em relação às outras mercadorias. Os operários continuaram recebendo a mesma soma de dinheiro em metálico como pagamento pela sua força de trabalho; o preço de seu trabalho em dinheiro permaneceu estável, mas seu salário caiu, pois em troca do mesmo dinheiro recebiam uma soma menor de mercadorias. Essa foi uma das circunstâncias que favoreceram o aumento do capital e a ascensão da burguesia no século XVI”.[xii]

A moeda e sua circulação viraram campo de disputa entre setores econômicos concorrentes. Em 1558, Thomas Gresham, agente financeiro da rainha Elizabeth 1ª, escreveu que o “dinheiro ruim expulsa o bom”, e observou que, se duas moedas tinham valor legal idêntico, mas conteúdo metálico diferente, aquelas com maior densidade de metal nobre seriam entesouradas, o que prejudicaria a circulação comercial.

A nova burguesia comercial e os cambistas e banqueiros eram os elementos embrionários do novo sistema econômico, simultaneamente baseado no lucro, no acúmulo de riquezas, no controle dos sistemas de produção e na expansão permanente dos negócios. Paralela e complementarmente, violentos conflitos eliminavam os elementos comunitários da vida rural europeia: “A implantação da ‘sociedade do mercado’ surgiu como uma confrontação entre classes, entre aquelas cujos interesses se expressavam na nova economia política do mercado e aquelas que a contestavam, colocando o direito à subsistência acima dos imperativos do lucro”.[xiii]

A expropriação dos camponeses de seus meios de subsistência promoveu a ruína da indústria doméstica rural, fazendo surgir a indústria urbana e consigo o capitalista industrial. Para estes, surgiu um mercado interno originado pela ruína da indústria doméstica, atrelada à produção rural. Desse modo, com a dissociação dos trabalhadores de seus meios de produção, o capitalismo garantia também a existência da indústria.

A revolução capitalista, que obteria sua vitória definitiva com a indústria urbana, teve, desse modo, sua origem em mudanças econômicas e sociais no campo: “Um aumento geral das rendas [monetárias] agrícolas representa uma elevação nas rendas da maioria da população; a mudança tecnológica na agricultura afeta a maioria dos produtores; uma baixa no preço dos produtos agrícolas tende a baixar o custo das matérias primas para os setores fora da agricultura e dos gêneros alimentícios para os assalariados em geral”.[xiv] A revolução agrícola, acompanhada do crescimento da indústria capitalista, trouxe consigo o aumento na exploração do trabalho e a elevação do número de excluídos da propriedade, proporcionando a reserva de mão de obra de que a indústria moderna necessitava para sua existência e expansão.

A origem do capitalista industrial, do seu lado, não se restringiu aos mestres de corporações, artesãos e assalariados que se transformaram em capitalistas através da exploração ampliada do trabalho assalariado: ela abrangeu também o capitalista rural e o comerciante transformado em empresário industrial. O centro de estruturação do polo burguês da nova sociedade em gestação constituiu a gênese do capitalista industrial. A transformação gradual e progressiva dos mestres, artesãos independentes, antigos servos da gleba, em capitalistas, no entanto, era um método demasiadamente lento para a acumulação de capital. Os métodos usados na acumulação originária pularam etapas, impulsionados pelo caráter abrangente do novo processo econômico. Os comerciantes ingleses investiram capital nas Companhias das Índias Orientais e outros empreendimentos ultramarinos, impulsionados e protegidos pelo Estado.

As mudanças econômicas fundamentais, no entanto, foram internas. Inglaterra foi o primeiro país a romper com os sistemas de produção agrícola não comercial, diminuindo a cultura de subsistência e acabando com as terras comuns (commons). Os primeiros capitalistas ajudaram a transformar a terra em artigo de comércio: “A violência que se assenhoreia das terras comuns, seguida em regra pela transformação das lavouras em pastagens, começa no fim do século XV e prossegue no século XVI. O progresso do século XVIII consiste em ter tornado lei o veículo do roubo das terras pertencentes ao povo. O roubo assume a forma parlamentar que lhe dão as leis relativas ao cerco das terras comuns, que são decretos de expropriação do povo”. A terra deixava de ser condição natural de produção para se tornar mercadoria.

No mesmo país, foi necessário um golpe parlamentar para tornar as terras comuns em propriedades privadas: “O roubo sistemático das terras comuns, aliado ao furto das terras da Coroa, contribuiu para aumentar aqueles grandes arrendamentos, chamados, no século XVIII, de fazendas de capital ou fazendas comerciais”. Os trabalhadores eram expulsos de suas terras e obrigados a procurar empregos nas cidades. Como lembrou Marx: “No século XIX, perdeu-se naturalmente a lembrança da conexão que existia entre agricultura e terra comunal. O último grande processo de expropriação dos camponeses é finalmente a chamada limpeza das propriedades, que consiste em varrer destas os seres humanos. Todos os métodos ingleses culminaram nessa limpeza”.

A terra, antes povoada por trabalhadores, agora era pasto para ovelhas: “O ser humano vale menos que uma pele de carneiro”, dizia um ditado popular. A “limpeza das propriedades” se alastrou por toda Europa: “O roubo dos bens da igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do Estado, a ladroeira das terras comuns e a transformação da propriedade feudal e do clã em propriedade privada moderna, levada a cabo com terrorismo implacável, figuram entre os métodos idílicos da acumulação primitiva”.[xv] Esses métodos incorporaram as terras ao capital e proporcionaram à indústria das cidades a oferta necessária de proletários (os que só possuíam sua prole).[xvi] O processo de formação das classes despossuídas, futuramente proletários da indústria capitalista, foi violento e compulsório, e para nada “natural”.

Os homens que foram expulsos das terras com a dissolução das vassalagens feudais não foram absorvidos, na mesma proporção e com a mesma velocidade, pelo trabalho industrial, doméstico ou comercial. Nesse processo, e nas lutas entre os artesãos e suas corporações, alguns artesãos se enriqueceram à custa de outros que perdiam seus meios de trabalho. Os que “perdiam” ficavam apenas com sua força de trabalho e viravam proletários, os que ganhavam conseguiam acumular recursos para novos investimentos.

Nesse marco social instável e violento, na Inglaterra do século XVI, a técnica produtiva evoluiu, a produção de lã se expandiu e o país preparou-se para o processo que, dois séculos mais tarde, culminaria na Revolução Industrial. O comércio internacional induziu a expansão da criação de ovelhas e, com a expropriação das terras, os senhores ampliaram em grande escala sua criação, que só necessitava de poucas pessoas empregadas nas vastas pastagens das grandes propriedades. As lãs eram usadas nas manufaturas, na fabricação de tecidos e de outros produtos têxteis. Com o crescimento do mercado de lã, cresceram também os rebanhos de ovelhas, limitados inicialmente pelas autoridades reais, que determinavam um máximo de duas mil cabeças por criador.

Com a expulsão dos servos-camponeses, estes se dirigiram para as cidades em busca de trabalho: as cidades não tinham como empregar todos os novos desempregados, que foram assim empurrados ao roubo e à mendicância. O florescimento da manufatura flamenga de lã, e a consequente alta dos preços, incentivou a transformação de lavouras em pastagem de ovelhas, criando a necessidade de expulsar de suas terras a maioria dos camponeses.

Para “remediar” o desemprego e suas consequências, foram promulgadas as leis “dos pobres”, surgidas na Inglaterra no final do século XV e durante o século XVI, e depois em outros países. Elas foram consequência direta das transformações sociais decorrentes da exploração dos recursos naturais do “Novo Mundo” e da abertura de novos mercados de consumo, que favoreceram a expansão do comércio e da indústria manufatureira. A população rural inglesa, expropriada e expulsa de suas terras, compelida à vagabundagem, foi enquadrada na disciplina exigida pelo novo sistema de trabalho por meio de um terrorismo legalizado que empregava o açoite, o ferro em brasa e a tortura.

Muitas áreas agrícolas, antes cultivadas garantindo a subsistência de numerosas famílias camponesas, foram cercadas e transformadas em pastagens. Sem condições de adaptar-se à rígida disciplina da manufatura ou mesmo à vida urbana, muitos camponeses desalojados se transformaram em mendigos; sucederam-se leis e decretos para diminuir essa categoria de habitantes. As leis proibiam a existência de desempregados, punindo-os com severas penas. Henrique VIII estabeleceu em lei que “doentes e velhos incapacitados têm direito a uma licença para pedir esmolas, mas vagabundos sadios serão flagelados e encarcerados” (os reincidentes tinham, ademais, metade da orelha decepada). A primeira “lei dos pobres” inglesa, sob o reinado de Elizabeth I, preparou, sob o pretexto de ajuda obrigatória à pobreza, as futuras “casas de trabalho”, workhouses, onde o pobre foi colocado compulsoriamente à disposição do capitalista industrial.

Este último prosperou porque os mercados se expandiam, interna e externamente, pressionando um aumento constante e acelerado da produção. A estruturação de um mercado mundial, porém, não sobreveio de modo repentino. Ela representou um salto em relação aos processos de “mundialização” precedentes: a expansão das suseranias do Império chinês no Extremo Oriente, a expansão comercial da civilização islâmica na era de seu esplendor, a retomada das rotas comerciais internas e, sobretudo, externas, da Europa cristã a partir do século XII, que levou inúmeros comerciantes (italianos, em especial) a estabelecer conexões comerciais permanentes com os centros de produção de tecidos finos (seda) e especiarias de Oriente.

Ilustrando a abrangência desse processo, Janet Abu-Lughod postulou a existência, entre 1250 e 1350, de oito circuitos econômicos articulados, nos quais o comércio e a divisão do trabalho configuravam sistemas econômicos desenvolvidos autossuficientes.[xvii] Desses oito circuitos, seis estavam localizados em áreas dominadas pelo Islã que era, à época, junto com a China imperial, a área econômica mais desenvolvida (Europa estava menos desenvolvida economicamente, seus contatos comerciais com o restante do mundo não eram contínuos).

Com a formação dos primeiros Estados nacionais no “Velho Continente” os árabes foram sendo expulsos de parte dos seus domínios, e iniciou-se a expansão europeia, que dominaria o mundo, como o evento mais importante e paradoxal de sua história. Como foi observado, Europa “sequer chega a ser um continente — é apenas um anexo subcontinental da Ásia. Toda a Europa (excluindo a Rússia e a Turquia) compreende não mais do que 5,5 milhões de quilômetros quadrados: menos do que dois terços da superfície do Brasil, pouco mais do que a metade da área da China ou dos Estados Unidos. É apequenada pela Rússia, que cobre 17 milhões de quilômetros quadrados”.[xviii] Os países situados nesse pequeno território, no entanto, foram capazes, graças à acumulação de capital, de dominar o mundo.

Isso coloca uma questão maior: por que os amplos circuitos econômicos não europeus não originaram, a diferença da expansão europeia, um mercado mundial? Numa hipótese recente, Immanuel Wallerstein negou aos circuitos econômicos árabe-islâmicos dos séculos XIII e XIV o caráter de “economias-mundo”, categoria que, para esse autor, só seria atingida com a destruição desses circuitos pela expansão europeia. Os maiores circuitos econômicos, nesse período, se encontravam na China, até uma estagnação econômica, acompanhada de epidemias de fome recorrentes, serem sucedidas por uma destruição e um fechamento autocentrado do Império Chinês, provocado por investidas externas, eventos que foram preparando lentamente o terreno para mudanças sociais no Celeste Império.

Em contraste com o retrocesso árabe e a estagnação chinesa, a expansão do rádio das atividades europeias estava inscrita em motivos econômicos internos, na lógica que conduziu à paulatina dissolução dos vínculos senhoriais, à ampliação do rádio do comércio e à impulsão da produção mercantil, acompanhados de uma renovação científica, técnica e ideológica. Fritz Rörig chegou a propor a existência de uma “economia medieval de alcance mundial”, incluindo nesse fenômeno as viagens intercontinentais realizadas por comerciantes europeus medievais, a partir do século XIII.[xix]

É nesse contexto que os europeus venceram na “corrida [não declarada] para a América”. A partir de finais do século XV, as viagens interoceânicas europeias se produziram no contexto “da liberdade de ideias sobre o Atlântico que compartilhavam os cartógrafos, os cosmógrafos e os exploradores da cristandade latina durante o século XV. Contra esse pano de fundo, o projeto de Colombo de atravessar o oceano parece inteligível e até previsível. O espaço atlântico exercia uma poderosa atração sobre as imaginações da cristandade latina. Os cartógrafos semeavam suas representações do oceano com massas de terra especulativas e, a partir de 1424, deixavam espaços vazios a serem preenchidos com novas descobertas. Na medida em que cresceu o interesse por esse espaço, também o fez a consciência da possibilidade de explorá-lo. As primeiras colônias europeias duradouras foram fundadas nas Ilhas Canárias em 1402 e nas Açores em 1439. O ritmo dos esforços se acelerou na segunda metade do século”.[xx] E concluíram como bem se sabe.

Com a expansão mundial da Europa, a internacionalização da economia tornou-se fato a ser considerado pelos seus governos absolutistas. A diminuição das distâncias fez-se acompanhar da especialização de países e regiões e da reordenação das economias locais, provocada pela abertura de novos mercados, que fizeram com que alguns setores da economia prosperassem e outros desfalecessem.

No século XVI foi se verificando o impacto dos descobrimentos ultramarinos americanos, e do novo caminho para Oriente, na economia europeia. Para sua expansão externa, Europa aproveitou conhecimentos e rotas marítimas traçadas pelos chineses: o Ocidente europeu pós-medieval criou, com base nessas e outras apropriações, uma nova sociedade, baseada num sistema econômico-social em que as relações mercantis se apossaram da esfera produtiva, como não aconteceu em outras sociedades nas quais o comércio interno e externo chegara a atingir importantes dimensões, assim como o desenvolvimento científico e tecnológico.

Em resumo, as raízes do capitalismo europeu tiveram sua origem no renascimento do comércio interno, nas mudanças na produção agrária, no auge do comércio internacional e na abertura de linhas de circulação de mercadorias de/para o Oriente e, finalmente, de/para a América. Como sintetizou Earl J. Hamilton: “Embora houvesse outras forças que contribuíram para o nascimento do capitalismo moderno, os fenômenos associados com a descoberta da América e a rota do Cabo foram os principais fatores desse desenvolvimento. As viagens de longo percurso aumentaram o tamanho dos navios e a técnica da navegação. A ampliação do mercado facilitou a divisão do trabalho, e conduziu a melhoras técnicas. A introdução de novas mercadorias agrícolas da América e de novos bens agrícolas e manufaturados, especialmente artigos de luxo orientais, estimulou a atividade industrial para se obter a contrapartida que os pagasse.

A emigração às colônias do Novo Mundo e aos estabelecimentos do Leste diminuiu a pressão da população sobre o solo metropolitano e aumentou o excedente, o excesso da produção em relação à subsistência nacional, do qual pôde se obter a poupança. A abertura de mercados longínquos e de fontes de matérias primas foi um fator importante para que o controle da indústria e do comércio fosse transferida dos grêmios para os empresários capitalistas. A velha organização gremial, incapaz de lidar com os novos problemas da compra, produção e venda, começou a se desintegrar e cedeu, finalmente, seu lugar à empresa capitalista, meio mais eficiente de gestão”.[xxi]

As viagens interoceânicas de Cristóvão Colombo e Bartolomeu Dias foram o cume desse processo e, sobretudo, deram início a outro, de alcance mundial. Foram seguidas pela expedição de Fernando de Magalhães (1480–1521), navegador português a serviço da Espanha, que realizou a primeira viagem ao redor do globo terráqueo, iniciada em 1519 e concluída em 1521. O mundo foi se unificando não só pelo estabelecimento de rotas marítimas mundiais, mas também ao compasso da empresa colonizadora, quer esta assumisse a forma do enclave comercial, da feitoria ou da ocupação territorial. Buscando uma rota alternativa para a China, os europeus “descobriram” um novo continente, a América, que conquistaram e colonizaram, inicialmente em função subsidiária de sua busca e penetração do mercado chinês e extremo-oriental. As primeiras cartografias do novo continente foram elaboradas para determinar o ponto de passagem mais adequado para o Extremo Oriente.

As viagens intercontinentais configuraram uma unidade histórica com os processos que, na Europa, aceleravam as transformações sociais; aumento demográfico, superação das fomes e pestes do século XIV, retomada das guerras e modernização dos exércitos na segunda metade do século XV: “Essa impulsão interna foi finalmente sustentada, a partir do final do século XV, por uma injeção de riqueza externa devida à expansão marítima e colonial. A circunavegação da África, a descoberta da rota das Índias por Vasco da Gama, a da América por Colombo, e a viagem ao redor do mundo de Magalhães, elevaram o nível científico e ampliaram a concepção do mundo na Europa.

Ao mesmo tempo, e esse era o verdadeiro objetivo dos ‘descobridores’, o grande comércio de produtos exóticos, de escravos e metais preciosos, tornava a abrir-se, extraordinariamente ampliado. Uma era nova se abria para o capital mercantil, mais fecunda que a das repúblicas mediterrâneas da Idade Média, porque se constituía um mercado mundial, cuja impulsão afetava todo o sistema produtivo europeu, ao mesmo tempo em que grandes Estados (não já simples cidades), iam aproveitá-la para se constituir”.[xxii]

Assim, a expansão europeia finalmente unificou geográfica e economicamente o planeta. Immanuel Wallerstein propôs, como base da origem do “sistema mundial moderno” no século XVI europeu, uma ligeira superioridade de acumulação de capital no Reino Unido e na França, devida a circunstâncias inerentes ao final do feudalismo nesses países, que desencadeou uma expansão econômico-militar culminando em um sistema global de trocas que, no século XIX, incorporou quase todos os territórios do planeta. A afirmação de que se tratou de uma “europeização” do mundo esquece que foi esse processo que criou a “Europa” no sentido moderno:[xxiii] “Hoje, imaginamos que a África e a Europa são dois continentes completamente diferentes, separados por um abismo de civilização, mas até bem pouco tempo essa distinção não faria sentido. Por muitos séculos, bens e homens se moveram mais facilmente na água do que por terra, e o comércio e o império reuniram os povos do Mediterrâneo”.[xxiv]

A Europa moderna, berço inicial do capitalismo, surgiu, assim, simultaneamente de uma cisão, de uma diferenciação e de uma contraposição. Pois não foi, em definitiva, a Europa que criou a expansão mercantil mundial, mas essa expansão a que criou o conceito moderno de Europa; essa expansão, por outro lado, não foi puramente comercial, e foi por isso denominada também de “europeização”: “A construção do sistema-mundo moderno envolveu uma expansão de Europa, que era simultaneamente militar, política, econômica e religiosa. Dentro deste contexto, missionários cristãos atravessaram o globo, mas eram notoriamente mais bem-sucedidos em partes do mundo que não foram dominadas através das denominadas religiões mundiais. O número de convertidos em países largamente islâmicos, budistas, hindus e zonas confuciano-taoístas, eram relativamente poucos, e particularmente poucos em zonas islâmicas”.[xxv]

A expansão europeia tinha por base a expansão da produção manufatureira e industrial, que exigia uma expansão constante do mercado; devido a isso, ela atingiu todas as regiões do planeta, criando condições para “o entrelaçamento do todos os povos na rede do mercado mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista”.[xxvi] Essa expansão não criou automaticamente, por outro lado, a hegemonia ou superioridade econômica da Europa por cima do restante do mundo. Na China, ainda hegemônica no Extremo Oriente e resistente às investidas europeias, em 1645 houve a conquista do poder pela dinastia Manchu, que submeteu os povos tradicionais da China Central (os manchus provinham da região Norte da China, a Manchúria).

A máxima expansão da civilização chinesa foi atingida ainda no século XVIII, quando foram conquistadas as vastas regiões interiores da Mongólia, do Sinkiang e do Tibete. Na sequência, “Império do Meio” (Chi’In) foi perdendo seu lugar dominante: o PIB anual per capita chinês se manteve estável (600 dólares) entre 1280 e 1700, enquanto o europeu, no mesmo período, ascendeu de 500 até 870 dólares.[xxvii] No início do século XVII, no entanto, o PIB estimado da economia chinesa ainda era o primeiro do mundo (96 bilhões de “dólares Geary Khamis”), seguido pelo da Índia (74,25 bilhões) e, em terceiro lugar, a França (15,6 bilhões).[xxviii]

A expansão marítima europeia teve fortes repercussões internas, acelerando as transformações econômicas e sociais nos Estados europeus, quando ela se entrelaçou com a colonização e exploração dos “novos territórios”. Um fator que aumentou os ganhos dos arrendatários capitalistas foi a “revolução (aumento) dos preços” do século XVI, vinculada à expansão monetária derivada da exploração do Novo Mundo, um fenômeno inflacionário motivado pelo afluxo de metais preciosos, consecutivo à colonização e conquista da América.

Como a economia não estivesse ainda preparada para ajustar todos os rendimentos em função da inflação, aqueles que vendiam suas mercadorias (trabalhadores assalariados e capitalistas) lucraram de maneira desigual; aqueles que principalmente compravam, perderam (os consumidores em geral, e em parte os mesmos assalariados e capitalistas, só que estes ganhavam muito mais e perdiam muito menos). Os que viviam de rendas fixas e apenas compravam, arruinaram-se (basicamente, a aristocracia rural).

Para sobreviver economicamente, o Estado foi obrigado a criar outras formas de arrecadação (venda de títulos da dívida pública, e venda de cargos e títulos, que antes eram monopolizados pela nobreza de nascimento). A entrada enorme de metais preciosos de origem americana na Europa constituiu um episódio maior de sua história econômica e social: “Foi esse fato que desencadeou a crise dos preços do século XVI, e salvou a Europa de uma nova Idade Média, permitindo a reconstituição de seu estoque metálico”.[xxix] Ele desencadeou bem mais do que isso, pois antecipou o “clima (des)umano” de uma nova sociedade, por meio do “espanto desses homens ao longo de um século que começa antes de 1500 e durante o qual os preços não param de subir.

Tiveram a impressão de viver uma experiência sem precedente. Aos bons velhos tempos em que tudo se dava por nada, sucedeu o tempo desumano das carestias que não mais retrocediam”,[xxx] para os mais pobres, e dos lucros que não paravam de aumentar, para os novos ricos. Na Europa ocidental, o preço médio do trigo quadruplicou na segunda metade do século XVI. Os preços quadruplicaram na Espanha nesse século; na Itália, o preço do trigo multiplicou-se por 3,3; por 2,6 na Inglaterra, e por 2,2 na França.[xxxi]

A crise suscitada pela “revolução dos preços” (que, na média, quadriplicaram na Europa, ao longo do século XVI) contribuiu, através da inflação, para a ruína de inúmeros artesãos ou pequenos proprietários, criando novas condições sociais, suscetíveis de facilitar a passagem para um novo sistema econômico: o aparecimento de trabalhadores livres, despossuídos de qualquer propriedade a não ser a sua força de trabalho. O total de ouro circulante na Europa entre 1500 e 1650 passou de cinco mil para 180 mil toneladas, e o de prata de 16 mil para 60 mil toneladas.[xxxii]

Parte importante do novo e expansivo excedente monetário desviou-se para importar mercadorias do Oriente, mas outra parte alimentou o orçamento dos Estados que o despenderam em exércitos e armadas, emprestando dos banqueiros e criando o déficit fiscal (dívida pública), que Marx chamou de “credo do capital”: “Ela infunde força criadora no dinheiro improdutivo e o transforma, assim, em capital, sem que, para isso, tenha que se expor aos esforços e riscos inseparáveis da aplicação industrial e mesmo usurária… Daí que seja inteiramente coerente a doutrina moderna segundo a qual um povo se torna mais rico quanto mais se endivida. O crédito público se torna o credo do capital. E ao surgir o endividamento do Estado, o pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há perdão, cede seu lugar para a falta de fé na dívida pública”.[xxxiii] A primitiva dívida pública gerou a dependência crônica do Estado moderno em relação ao capital financeiro. Acompanhada de, e propiciada por um fenômeno inflacionário de dimensões sem precedentes, que a potenciou.

A rota da inflação acompanhou a rota de entrada e de transporte dos metais preciosos americanos na Europa: [xxxiv] “A descoberta e a conquista puseram em movimento um enorme fluxo de metal precioso da América à Europa, e o resultado foi uma grande elevação de preços – uma inflação ocasionada por um aumento da oferta do melhor tipo de dinheiro de boa qualidade. Quase ninguém na Europa estava tão afastado das influências do mercado para não sentir algum efeito sobre o seu salário, sobre o que vendia, ou sobre qualquer pequeno objeto que quisesse comprar. Os aumentos de preços ocorreram inicialmente na Espanha, onde os metais chegaram em primeiro lugar; a seguir, à medida que eram carregados pelo comércio (ou, talvez em menor escala, pelo contrabando ou por conquista) à França, aos Países Baixos e à Inglaterra, a inflação os seguiu. Na Andaluzia, entre 1500 e 1600, os preços subiram cinco vezes. Na Inglaterra, se tomássemos como 100 os preços da última metade do século XV, isto é, antes das viagens de Colombo, à altura da última década do século XVI estariam em 250; oitenta anos mais tarde, ou seja, na década de 1673 a 1682, estariam em 350, três vezes e meia acima do que haviam alcançado antes de Colombo, Cortez e Pizarro. Após 1680, estabilizaram-se e assim permaneceram, pois tinham caído muito antes na Espanha. Esses preços, não os relatos dos conquistadores, representaram a notícia de que a América tinha sido descoberta, para a grande maioria dos europeus”.[xxxv]

Se a importância da revolução dos preços do século XVI está fora de discussão, não acontece o mesmo com suas causas. O surto inflacionário deveu-se ao aumento de circulação de metais preciosos, ou também tiveram peso decisivo outros fatores? Para Licher Van Bath, alta geral dos preços teria sido anterior à vinda e fluxo americano de metais preciosos na Europa. Os preços dos produtos agrícolas aumentaram antes disso mais do que os dos bens manufaturados e, também, mais do que os salários.[xxxvi] O fator desencadeante da “revolução dos preços” teria sido, para esse autor, a explosão demográfica: o aumento da população teria levado ao aumento da procura por produtos de subsistência e, consequentemente, a um aumento nos preços. Com o crescimento da população houve uma maior oferta de mão de obra, o que levou a uma depreciação dos salários. Teria havido, também, um forte estímulo à produção agrícola de subsistência, evidenciado pelo aumento da área cultivada, e também pelo aumento do conhecimento agronômico.

O aumento dos preços se verificava diretamente no incremento do comércio urbano e no crescimento das cidades. Para Pierre Vilar, analogamente, a revolução dos preços não foi causada exclusivamente pelo aumento da circulação de metais provenientes da América: desde meados do século XV uma tendência ao aumento dos preços se configurava através da expansão demográfica e agrícola, dos avanços técnicos da extração de prata na Europa, das inovações financeiras, monetárias, comerciais e, finalmente, políticas.

A inflação do século XVI foi uma reviravolta crucial da economia europeia. Graças a ela, a crise do século XVII, com a crise da agricultura, o estancamento populacional, ensejaram o declínio final do feudalismo, o auge do capital comercial e a protoindustrialização, que foram os sintomas anunciadores de um novo modo de produção.[xxxvii] Os senhores feudais já recebiam as contribuições anuais dos servos em moeda, uma taxa fixa por pessoa. Ao dobrar a quantidade de ouro, permanecendo pouco alterada a produção, os preços duplicaram reduzindo pela metade os rendimentos reais dos senhores feudais: “A crise econômica da nobreza feudal deu início a uma grande transferência de riqueza, cujo exemplo macroscópico foi a venda dos feudos. Para piorar a condição econômica da aristocracia e aumentar os ganhos especulativos da burguesia comercial surgira uma circunstância muito particular: o rápido aumento da massa de capital circulante, que se seguiu à importação massiva de metais preciosos, determinando um amplo fenômeno de inflação dos preços que se repercutiu negativamente nos valores fundiários feudais”.[xxxviii]

A “revolução dos preços” não produziu, mas acelerou, a transição para um novo modo de produção. O aumento geral dos preços produziu uma transferência de renda dos senhores feudais para a classe comercial emergente, que não deixou de advertir o potencial político da rebelião popular contra os senhores como sinal anunciador de um novo regime social: “No início do século XVI a ordem estabelecida parecia ameaçada na Europa. A velha pressão da nobreza e a pressão renovada de alguns soberanos que reclamavam mais impostos e mais soldados, pesavam duramente sobre as camadas populares, especialmente sobre os camponeses. Seu mal-estar se expressava em revoltas cada vez mais frequentes, quase uma por ano.

Essas revoltas eram cada vez mais conscientes e radicais, com frequência delineavam exigências de reforma social. Não importa que reivindicassem uma ‘economia moral’ ilusória que supunham que os senhores tinham tornado vulnerável, ou que invocassem a lei divina e que fizessem uma leitura igualitária dos evangelhos, o que dava um caráter ‘tradicional’ a seu discurso. Por trás desses argumentos existia a esperança de uma nova sociedade na qual os homens seriam iguais em direitos, as autoridades eleitas, e a religião não seria um instrumento de controle social nas mãos dos clérigos”.[xxxix] Uma revolução não só econômica, mas também social, estava a caminho, alicerçada na rebelião no campo.

No terreno econômico, Paul Mantoux, especialmente,[xl] acentuou o papel do comércio e das cidades no período de gestação do capitalismo. Os grandes mercados urbanos surgiam das rotas percorridas pelos mercadores. A transição para compras e vendas contínuas, no entanto, só teve início nas cidades europeias em fins do século XVIII. Essa nova forma comercial sofreu influência e também propiciou o desenvolvimento de novos meios de transporte e da navegação a vapor; o grande entrave que impedia a expansão da economia mercantil era a falta de comunicação. O novo fluxo do comércio exigia ser conduzido por canais mais eficientes.

Com o desenvolvimento dos transportes, as feiras e mercados ocasionais se tornariam obsoletos na Europa ocidental (as feiras orientais da Europa mantiveram sua importância por mais tempo). Os métodos comerciais mudaram. As bolsas de produtos aos poucos foram tomando lugar das feiras, funcionando diária e permanentemente. As grandes compras e vendas se davam por amostras: o comércio tornou-se mais especulativo.

Como complemento necessário, surgiu a venda de títulos e os termos ou transações de seguro, mediante as quais o produtor se garantia quanto a qualquer perda que pudesse sofrer através de flutuações no preço da matéria prima. Os seguros garantiam o pagamento de uma multa pré-estabelecida caso o preço caísse; o comprador, por sua vez, garantia uma cobertura no valor eventualmente alterado do produto que desejava comprar. Havia um crescimento da confiança nos compromissos comerciais e na honestidade dos negócios.

O mercado, além disso, se diversificava, havia uma maior quantidade de suprimentos. Com a modificação dos transportes a variedade de produtos provenientes de lugares diferentes era muito maior. Os comerciantes começaram a se dedicar somente às vendas, se especializando em alguns setores. As bolsas de produtos utilizavam novos métodos de comunicação para se relacionar com outras bolsas: isso acarretou a tendência para a criação de um preço único internacional, cuja oscilação era notificada a todos os mercados. Os viajantes comerciais usavam novos meios de transporte para buscar compradores. As lojas foram se tornando variadas, passaram a ser dirigidas por um comerciante de artigos especializado: se tornavam assim empresas comerciais. Inicialmente pequenas e especializadas, se tornariam ulteriormente grandes e múltiplas, com filiais.

A circulação acelerada de mercadorias foi uma condição da valorização do capital na indústria e no comércio. Com a dissolução das vassalagens desmoronou progressivamente o sistema feudal no campo e a organização corporativa na cidade: o capital oriundo do comércio instalou-se nas manufaturas aproveitando-se do sistema urbano e da organização corporativa, buscando economias de escala mediante a centralização dos recursos produtivos. Marx resumiu o processo: “A transformação dos meios de produção individualmente dispersos em meios socialmente concentrados, da propriedade minúscula de muitos na propriedade gigantesca de poucos; a expropriação da grande massa da população, despojada de suas terras, de seus meios de subsistência e de seus instrumentos de trabalho, essa terrível e difícil expropriação, constituiu a pré-história do capital”.[xli]

Nesse novo quadro econômico, as sobrevivências feudais viravam um obstáculo para o desenvolvimento, cujo fracasso devolveria à Europa aos patamares produtivos e sociais da Idade Média: “Só uma transformação radical poderia provocar a mudança necessária para que se consolidasse a revolução agraria que tinha começado na Inglaterra… A premissa para a ampliação da produção manufatureira era a expansão interna e externa da demanda de mercadorias. A demanda de bens de consumo aumentava na medida em que aumentava a população. As repercussões do crescimento demográfico sobre a demanda eram, porém, limitadas, já que os salários reais caiam por causa do aumento dos preços dos produtos alimentícios.

Ao aumentar o poder aquisitivo dos produtos agrários, crescia a parte da renda camponesa que podia somar-se à demanda de produtos manufaturados. Ganhou peso também a demanda das camadas medias urbanas. Graças à incipiente comercialização da agricultura, à protoindustrialização e ao crescimento desproporcional das cidades, o número de lares que dependia do mercado aumentava de maneira extraordinariamente rápida. As economias domesticas para as que o mercado era periférico foram diminuindo paulatinamente. O mercado interno se ampliava. Por causa das melhoras agrícolas e da diminuição das crises de abastecimento, perderam força as crises de subconsumo das manufaturas”.[xlii] Outro tipo de crise tomaria seu lugar. A era das manufaturas e a era das cidades nasciam paralelamente.

Nos primeiros grandes centros financeiros da Europa, especialmente em Amsterdã, os inícios da acumulação capitalista vieram acompanhados de crises de um novo tipo. Inicialmente, elas foram atribuídas a fenômenos aleatórios, como foi o caso da “crise das tulipas”, a primeira crise econômica moderna registrada, que transcorreu entre 1636 e 1637, provocada pela especulação sobre o aumento de preços, e posterior desmoronamento dos mesmos, dessa flor exótica usada na decoração de jardins e também na medicina nos Países Baixos.

Foi a primeira “crise de sobreprodução” a ser registrada nos anais históricos: os comerciantes estavam abarrotados de bulbos de tulipas, e quebraram: a Corte holandesa não obrigava a execução do pagamento desses contratos, quando a “bolha dos preços” estourou. Versões menores, mas semelhantes, da “tulipamania” também ocorreram em outras partes da Europa. Um dos seus efeitos foi a sofisticação do sistema financeiro (através dos contratos de seguro) e a criação de novos mecanismos de troca comercial, como o mercado de opções.[xliii]

O centro de gravidade econômica europeu se deslocava para o Mar do Norte: com a entrada de Inglaterra, Holanda e França na expansão colonial, Fernand Braudel datou em 1650 a passagem da história do “mundo mediterrâneo” para a história mundial.[xliv] Desse modo, foi tendo como centro inicial os territórios vizinhos do Mar do Norte, em um processo de abrangência econômica muito mais ampla, que se gestaram, na Europa ocidental, as condições que possibilitaram o nascimento do capitalismo e de suas instituições. Suas bases de lançamento foram a violência social e política na Europa, e a violência geral derivada da colonização na América e na África – as primeiras crises de sobre acumulação de mercadorias, por sua vez, foram o sinal anunciador de seu doloroso parto.

*Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Teoria econômica marxista: uma introdução (Boitempo).

Notas

[i] Karl Marx. O Capital, Livro I, vol. 1.

[ii] Samuel K. Cohn. The Laboring Classes in Renaissance Florence. Nova York, Academic, 1980.

[iii] Karl Marx e Friedrich Engels. Manifesto Comunista. São Paulo, Cidade do Homem, 1980 [1848].

[iv] Cf. Carlos Astarita. O conflito social no feudalismo. História & Luta de Classes nº 14, Cândido Rondon, Universidade do Oeste do Paraná, setembro de 2012.

[v] Barbara W. Tuchman. Uno Specchio Lontano. Un secolo di avventure e calamità: il Trecento. Milão, Arnoldo Mondadori, 1992.

[vi] Charles Van Doren. Uma Breve História do Conhecimento. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2012.

[vii] Denominação derivada do francês arcaico genterie, o termo designava a classe possuidora rural que, embora desprovida de títulos nobiliárquicos, tinha aspirações a se transformar em aristocracia da terra.

[viii] Leo Huberman. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro, Zahar, 1974.

[ix] Francis Bacon. The Essays. Londres, Penguin, 1986 [c. 1625].

[x] Michael Perelman. A história secreta da acumulação primitiva e a economia política clássica. O Comuneiro nº 26, Lisboa, março de 2018..

[xi] Maurice Dobb. A Evolução do Capitalismo. Rio de Janeiro, Guanabara, 1987 [1947].

[xii] Karl Marx. Trabajo Asalariado y Capital. Pequim, Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1976 [1847].

[xiii] Ellen Meiskins Wood. The Origins of Capitalism. A longer view. Londres, Verso Books, 2002.

[xiv] Phyllis Deane. A Revolução Industrial. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.

[xv] Karl Marx. O Capital, Livro I, vol. 1, assim como as citações precedentes.

[xvi] A expressão provinha da na antiga Roma, onde ela designava o cidadão da última e mais baixa classe social, que não pagava impostos e era considerado útil apenas pelos filhos (prole) que gerava.

[xvii] Janet L. Abu-Lughod. Before European Hegemony. The world system 1250-1350. Nova York, Oxford University Press, 1989.

[xviii] Tony Judt. Pós-Guerra. Uma história de Europa desde 1945. Rio de Janeiro, Objetiva, 2011.

[xix] Fritz Rörig. The Medieval Town. Batsford, University of California Press, 1967 [1932].

[xx] Felipe Fernández-Armesto. Cristóbal Colón. Barcelona, Folio, 2004.

[xxi] Earl J. Hamilton. El Florecimiento del Capitalismo. Madri, Alianza Universidad, 1984.

[xxii] Pierre Vilar. La transition du féodalisme au capitalisme. In: CERM (Centre d’Études et Recherches Marxistes). Sur le Féodalisme. Paris, Éditions Sociales, 1971.

[xxiii] Os defensores da “Europa eterna” se basearam nas linhas de divisão geográfica traçadas pelos gregos clássicos que, naturalmente greco-cêntricos, nomearam as terras ao Leste como Ásia, as do Sul como África, e o restante como Europa, noção que, no entanto, englobava parte da África e se estendia até as fronteiras do Egito no Nilo, isto é, até onde chegava a civilização helênica, excluindo a península ibérica. A divisão geo-civilizatória grega, que caiu em desuso na Era Cristã, foi retomada (deturpada) na era moderna, pretendendo estabelecer uma linha de continuidade histórica direta entre a “Europa” grega com a Europa Ocidental moderna; o Mediterrâneo teria separado, desde sempre, o “Ocidente civilizado” do “Oriente bárbaro”. Nascia, assim, o “eurocentrismo”.

[xxiv] Nigel Cliff. Guerra Santa. Como as viagens de Vasco da Gama transformaram o mundo. São Paulo, Globo, 2012.

[xxv] Immanuel Wallerstein. Islam, the West, and the World. Lecture in series “Islam and World System,” Oxford Centre for Islamic Studies, outubro de 1998.

[xxvi] Karl Marx. O Capital. Livro I, vol. 1.

[xxvii] Angus Maddison. Chinese Economic Performance in the Long Run. Paris, OCDE, 1998.

[xxviii] O dólar Geary-Khamis é uma unidade de conta fictícia, que tem o mesmo poder aquisitivo em um dado país que o dólar americano nos Estados Unidos em um determinado momento.

[xxix] Pierre Chaunu. História da América Latina. São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1981.

[xxx] Fernand Braudel. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II. São Paulo, Edusp, 2016, vol. 1.

[xxxi] John H. Munro. Money, prices wages and profit inflation in Spain, the Southern Netherlands and England during the price revolution: 1520-1650. História e Economia vol. 4 nº 1, São Paulo, 1º semestre de 2008.

[xxxii] Earl J. Hamilton. El Tesoro Americano y la Revolución de los Precios en España 1501-1650. Barcelona, Crítica, 2000.

[xxxiii] Karl Marx. O Capital. Livro I, Seção VII.

[xxxiv] Cf. Fernand Braudel. Il tesoro americano e la rivoluzione dei prezzi. In: Ciro Manca (ed.). Formazione e Trasformazione dei Sistemi Economici in Europa dal Feudalesimo al Capitalismo. Padua, CEDAM, 1995.

[xxxv] John K. Galbraith. Moeda. De onde veio, para onde foi. São Paulo, Pioneira, 1977.

[xxxvi] H. Licher Van Bath. História Agrária da Europa Ocidental (500-1850). Lisboa, Presença, 1984.

[xxxvii] Eric J. Hobsbawm. A crise geral da economia europeia no século XVII. In: Charles Parain et al. El Feudalismo. Madri, SARPE, 1985.

[xxxviii] Giuliano Conte. Da Crise do Feudalismo ao Nascimento do Capitalismo. Lisboa, Presença, 1979.

[xxxix] Josep Fontana. A Europa diante do Espelho. Bauru, Edusc, 2005.

[xl] Paul Mantoux. A Revolução Industrial no Século XVIII. São Paulo, Hucitec, 1988.

[xli] Karl Marx. O Capital. Livro I, vol. 1.

[xlii] Peter Kriedte. Feudalismo Tardío y Capital Mercantil. Líneas maestras de la historia económica europea desde el siglo XVI hasta finales del XVIII. Barcelona, Critica, 1982.

[xliii] Osvaldo Coggiola. No século XVII: a crise das tulipas. História Viva nº 62, São Paulo, novembro de 2008.

[xliv] Fernand Braudel. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II, cit.

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