A retórica da morte

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Por SANDRA BITENCOURT*

No governo Bolsonaro nenhum limite foi poupado, nenhum decoro, nenhum pudor, nenhum princípio

Em 2019, fui convidada pela Associação dos Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na França (APEB-Fr) para o seminário «O cenário da comunicação pública no Brasil contemporâneo», realizado em parceria com a Associação para a Pesquisa sobre o Brasil na Europa (ARBRE) na Maison des Initiatives Etudiantes (Paris, França). Nessa luxuosa oportunidade, apresentei o trabalho intitulado “A disputa pela atenção no Brasil pós-eleições de 2018: arenas, atores e anomalias na comunicação pública”. O principal objetivo foi descrever e analisar como a movimentação dos atores protagonistas do debate político fazia a disputa pela atenção pública e já naquele início de governo promovia anomalias nos parâmetros de funcionamento da comunicação pública após a eleição de 2018 no Brasil.

No final de 2018, o presidente eleito do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, era seguido por 3,42 milhões de internautas na sua página da rede social Twitter. Em dois meses de governo, o presidente aumentou o número de seguidores em 25% e fez, em média, oito postagens por dia. Se no Twitter o novo mandatário do Planalto conquistou 686 mil novos follows apenas entre 1º de janeiro e 1º de março de 2019, na rede Instagram ele alcançou, logo no início do ano, 10 milhões de seguidores, o maior patamar da América Latina, se aproximando do presidente americano Donald Trump.

Ao longo do mandato construiu uma poderosa máquina de manipulação e mentiras no ambiente digital. A falsidade, aliás, é a marca mais forte. A ferramenta Fake Followers Audit é capaz de rastrear quantos deles são perfis falsos, inativos ou robôs. A porcentagem de Bolsonaro chega a mais de 60% de seguidores falsos na rede social, embora mantenha um alto índice de engajamento, ou seja, mantém fidelidade dos seguidores que não são falsos, o que requer uma sofisticada articulação. Isso foi feito em escala, mantendo coerência com o perfil que fez um parlamentar inexpressivo e um militar inepto ganhar destaque: violência, brutalidade, distorção da realidade, excentricidades, metáforas de cunho sexual e mentiras persistentes.

Após ser eleito, Jair Bolsonaro utilizou o Twitter para anunciar os nomes de 1º e 2º escalões do governo e rebater veículos de mídia, mantendo o padrão de falas coloquiais e vídeos curtos que garantiram a visibilidade ainda na pré-campanha eleitoral. Quando fui falar para pesquisadores franceses já assombrados com o fenômeno de extrema direita brasileira, a polêmica que ganhou manchetes mundiais foi a postagem publicada no carnaval daquele ano, discutindo com artistas e divulgando um vídeo de caráter pornográfico.

Foram seis Tweets, incluindo o compartilhamento de uma performance feita em São Paulo e a continuidade da controvérsia na pergunta sobre o fetiche sexual Golden Shower. Depois de o presidente Jair Bolsonaro perguntar o que era a prática fetichista, o site Pornhub fez um tweet agradecendo, com gráfico que mostra que as buscas pelo termo golden shower no site aumentaram mais de 600% naquele momento. No vídeo, em uma das cenas, um homem urina na cabeça de outra pessoa. O presidente afirmou que as imagens tinham sido filmadas em um bloco de carnaval de rua e que não se sentia “confortável” em mostrar, mas que precisava “expor a verdade” para a população. O tweet foi ao ar sem nenhum alerta de conteúdo impróprio. E, claro, não era um festejo do carnaval. Mentira, pornografia, ameaças se articulam constantemente no modo da mais alta autoridade do país se dirigir à nação.

De lá para cá, passamos pelo eloquente “imbrochável” na cerimônia de celebração dos 200 anos de Independência e por uma torrente de absurdos, mentiras e insultos, não raro dirigido a mulheres. Parte expressiva do conteúdo se relaciona com as questões de gênero atravessadas por um viés moral e vinculadas ao mote da defesa da família. De modo muito hábil, a comunicação presidencial reverbera as posições conservadoras e reacionárias. O chamado, invariavelmente é a defesa da família e o respeito às leis de Deus.

É preciso entender que os mecanismos de formação da opinião pública são complexos e permeáveis aos esforços de agendamento estratégico de temas com viés moral e religioso por grupos que se mostraram vitoriosos no último pleito. Aborto e religião são misturados desde o pleito de 2010. O modelo naturalizado de família cristã e a fé em Deus passaram a ser atributo para candidatos, especialmente a cargos executivos. Isso explica em parte como uma liderança tão incapaz, insensível, cruel e pervertida consegue a adesão de percentuais ainda tão altos de parte bastante esclarecida da população.

Em contrapartida, os movimentos progressistas buscam combater o posicionamento religioso com argumentos científicos, estatísticos e jurídicos. Mas a bagaceirice tem lá seu apelo. Isso é inegável.

O modo como foi constituída a identidade e a imagem do novo governo mostra que as táticas na gestão mantêm as matilhas reagindo sedenta às posições conservadoras mais radicalizadas e, não raro, absurdas.

Nenhum limite foi poupado. Nenhum decoro, nenhum pudor, nenhum princípio.

A comunicação pública, aliás, tem três princípios orientadores que a definem como tal: o cognitivo, que visa o esclarecimento; o caráter agonístico, que põe em confronto opiniões divergentes; e a argumentação, que diz respeito à qualificação do discurso entre os interlocutores (Esteves, 2011). A anomalia que me referia como alerta lá no início do governo se confirmou pela degradação completa. Talvez nunca registrada antes. É tamanho o disparate que é difícil fazer a seleção de todos eles.

Os pronunciamentos feitos durante o carnaval de 2019 auxiliaram a mapear a topografia inicial dos discursos circulantes e o perfil daqueles estranhos titulares de um governo corrompido em todos os âmbitos. A sequência de absurdos que se seguiu a essas primeiras polêmicas é chocante. Tanto absurdo foi sendo absorvido que uma certa anestesia das pessoas e da mídia foi tolerando o horror. Foi então que o discurso carregado de violência simbólica tomou forma concreta e gerou mortes em profusão.

Especialmente em um período trágico, esse tipo de fala estava diretamente associado à sobrevivência de milhares de pessoas na maior pandemia mundial da história. O que se seguiu foi tragédia: negação da ciência, prescrição de remédios falsos, promoção do risco, desorientação quanto a vacinas. O requinte de uso da retórica da morte foi tanto que um presidente foi mentir ao seu povo que tomar vacina provocava AIDS. Não há similar no mundo. Assim como não há perdão para 700 mil mortos.

Mas não era o bastante. O presidente chamou para o Palácio da Alvorada as representações diplomáticas dos principais países do mundo para ameaçar e atacar o sistema eleitoral brasileiro. São tantas violações e crimes em um único gesto que chega a parecer ficção. A jornada para desinformar, mentir, ameaçar, segue célere. Nesta semana, o Partido do candidato que está sem fôlego na disputa (agora de verdade e não imitando os doentes) decidiu lançar uma nota para embaraçar as eleições e gerar caos. É o esgoto correndo a céu aberto.

A menção ao Goldem Shower até parece inocente diante da perversão sexual que mostra apoiador sugando canos de escopeta enquanto murmura o nome do presidente ou a tara de homens fortes espancando a pauladas uma menina que defendia sua escolha política. São assassinatos, ameaças, violência explícita. Uma deformação asquerosa. Muitos abandonaram, ainda que tardiamente, esse barco. Alguns síndicos de condomínio de elite (dizer prefeito da cidade seria exagero) seguem renitentes e buscam impedir os pobres de votar na capital dos gaúchos. Mas temos a esperança de sair dessa imundície no domingo.

Voltando às postagens do carnaval de 2019, o presidente disse que tão importante quanto a economia seria resgatar uma cultura destruída pelo socialismo. Nesta quarta-feira, artistas se reuniram no mítico Terreira da Tribo, em Porto Alegre. O grande cartunista Edgar Vasquez resumiu a tarefa: vamos precisar recompor nossa identidade nacional. Somos um espelho que foi quebrado. Os anos de azar estão chegando ao fim.

*Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em comunicação e informação pela UFRGS, diretora de comunicação do Instituo Novos Paradigmas (INP).

Referência


ESTEVES, João P. Comunicação, media e identidades: sobre políticas de reconhecimento, novas identidades e movimentos sociais. In: ESTEVES, João P. (Org.). Comunicação e identidades sociais. Lisboa: Horizonte, 2008. Sociologia da comunicação. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.

 

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