A alegria reencontrada

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TADEU VALADARES*

Carta a uma amiga costarriquenha

“For all its charms, the island is uninhabited,\ and the faint footprints scattered on its beaches\ turn without exception to the sea,\\ As if all you can do here is leave\ and plunge, never to return, into the depths.\\ Into unfathomable life.” (Wistawa Szymborska, Utopia).

A., amiga querida,

Sim, anteontem, dia 30, depois de longa angústia, alcançamos gigantesco triunfo microscópico.

Apesar da real correlação de forças imperante, e de todos os tantos crimes eleitorais perpetrados pelo governo, conseguimos assegurar o essencial, o nosso direito de sobreviver por quatro anos mais. Dito desta maneira, com linguagem ancorada na brutalidade dos fatos, parece pouco, o feito. Na realidade, o conseguido é imenso. Derrota nossa haveria sido catástrofe completa, algo assim como o povo cometer/sofrer seu terceiro haraquiri político no curto lapso de seis anos.

O primeiro, o golpe neoliberal de Michel Temer, a prisão de Lula e sua condenação por delito inexistente, por isso mesmo jamais comprovado. Lula livre após 580 dias de cárcere injustificado, Lula inocente contra vento e maré, esse o fato que nos permitiu chegar à vitória no dia de ontem. Sem Lula, ela seria impossível.

O segundo haraquiri, a vitória, quatro anos atrás, do máximo representante, até agora, do neofascismo neoliberal brasileiro, fenômeno que surpreendeu a maioria dos analistas profissionais. Neofascismo, sim, à maneira do século. Mas neofascismo por igual tributário do experimento inaugural em que se distinguiram Pinochet, Thatcher, Reagan e Kissinger, o assassinato de Allende e da democracia chilena. Os cultores das genealogias podem estender esse exercício até Mussolini e Hitler. Não carece.

Do terceiro escapamos por pouco, providencial escapar construído, convém nunca esquecer, pelo voto consciente do eleitorado nordestino. Grande júbilo, o nosso. Celebrações maciças, generalizadas. Bem-vindos exorcismos carnavalescos à Bakhtin, das quais participaram e continuam a participar milhões de brasileiros e brasileiras. A festa apenas começa; a alegria reencontrada é, por isso mesmo, renovada e multiplicada.

Neste momento festivo, os partidos vitoriosos se apresentam unidos e harmônicos. Dele também participam amplos setores sociais, o mundo do trabalho, os militantes, simpatizantes e ativistas de praticamente todos os movimentos e grupos de nossa algo indefinível esquerda. A eles e elas se somam franjas empresariais talvez (?) minoritárias, bem como os que, personagens distintos do conformado pelos representantes do mundo do capital, se veem como integrantes da sociedade civil progressista e organizada.

Noutras palavras, nossa mais do que merecida festa congrega um leque de interesses diversificados, cada qual destacável em si mesmo, mas também – e por isso mesmo – interesses divergentes. No mais profundo, isso obedece a certa homologia inevitável às sociedades antagônicas como a nossa. Esses interesses de vários tipos, entre divergentes e contraditórios, estão temporariamente em surdina, por mais que, no cotidiano e também no longo prazo, sejam geradores de tensões permanentes de caráter estrutural, conflitos de classe inerentes à dinâmica da economia, do estado, da sociedade e da cultura e do capitalismo brasileiro.

Frente amplíssima, portanto, a nossa. Frente frágil, sim, mas frente que se revelou, na prova dos fatos, algo estrategicamente indispensável para que Lula, seu arquiteto-mor, saísse vencedor, junto com Geraldo Alckmin, no embate contra o tenebroso capitão e seu apagado general. Na minha maneira de ver, essa frente foi a alavanca arquimediana que – junto com o Nordeste, nunca esquecer o Nordeste – afinal nos permitiu começar a longa marcha de superação do pesadelo ‘bolsoguediano’. A vitória apertada, inferior à que Dilma Rousseff conseguiu sobre Aécio Neves, oito anos atrás. Sua função, se um ateu pode usar linguagem religiosa, foi salvífica. Sim, fomos salvos politicamente, fomos salvos psicologicamente. Mantivemos o espaço mínimo de uma democracia em franco debilitar-se. Temos muito, mesmo, por comemorar.

Mas se damos um passo atrás, passo necessariamente reflexivo, passo que é distanciamento mínimo diante da vitória que também tem seu lado ilusoriamente sedutor, algo me parece claro: imediatamente nos damos conta de que o perigo afastado o foi, sim, mas não muito. O risco de o neofascismo imperar no país sofreu um revés. Conseguimos sair dessa trilha trágica, mas continuamos diante dos mesmos desafios. Nesse sentido preciso, nada de essencial mudou substancialmente. Mas outro empuxe tem a nossa esperança. Essa sim, foi turbinada.

O que as urnas reafirmaram? A prática divisão do país em duas metades contrapostas, situação ao que tudo indica insuperável no curto e no médio prazos. No longo, estaremos mortos. A causa é aparentemente simples: como poderão liberais-democratas, socialdemocratas e gentes mais à esquerda conciliar com o neofascismo neoliberal? Esse talvez seja o núcleo duro da nossa problemática convivência com os que no limite desejam nossa eliminação. Essa, a questão que não tem, até onde a vista alcança, como ser superada. Não há Aufhebung para isso, por mais que o discurso de união e harmonia convoque todo o povo e a nação inteira para uma reconciliação que tem muito de religiosa.

A beleza formal e a força retórica desse discurso, incontestes. A fala, em termos de cerimonial, necessariamente indispensável. A fala, virtuosa. A fala, de virtuosa se transmuta em prática discursiva. Linguagem que é ato. Mais ainda: nesse campo também não há terceira via. Desenho o problema, não o soluciono. Dito isso tudo, fica em aberto qual será a eficácia desse discurso. Para dançar tango há que ter dois. E não há qualquer evidência de que os neofascistas neoliberais queiram dançar conosco. Queremos dançar com eles?

Uma das metades à outra oposta, a que se vê como o núcleo do campo democrático-liberal-representativo, está articulada, queira ou não, com sua variante, digamos, de esquerda, a centrada no projeto que busca instalar no país uma democracia realmente participativa. Projeto que vem dos anos 80 do século passado, que se reconhece ao menos em partes da constituição de 1988, projeto que se mantém vivo e atuante. A outra metade oscila, a depender das conjunturas, entre o tradicional conservadorismo reacionário-oligárquico e o autoritarismo de novo tipo, forjado no Brasil a partir da eclosão do movimento neofascista à Bolsonaro.

Essa me parece ser a realidade político-ideológica de um país profundamente dividido, não importa o que se diga em contrário. Essa a realidade com a qual Lula, o PT e os demais integrantes do arco da esquerda nossa, algo invertebrada, estarão obrigados a levar em conta a partir de agora. Sei: neste momento de celebração da vida sobre a morte há que se deixar levar por ao menos um pouco de utopismo; há que se deixar de lado a acidez do realismo.

Então, dito isso, o que desejo? Que cheguemos sem golpes institucionais, sejam eles de caráter bolsonarista, militar ou ‘parlamentar’, até dezembro de 2026, quando Lula idealmente passará o comando do executivo para alguém cujo nome é, hoje e ainda por muito tempo, pura incógnita.

De uma coisa estou certo, e isso me faz feliz. Com os pouco mais de 60 milhões de votos conferidos a Lula no segundo turno, e apesar o desempenho superior ao esperado por parte de seu contendor, a civilização em construção no país mais escravocrata da América Latina ganhou, ontem, novo fôlego. Conseguiu se impor sobre a barbárie total, totalitária. Começamos nova etapa que, se a analisamos com lentes realistas, pondo de novo a utopia entre parênteses, nos abre a possibilidade de outra vez tentar, passo a passo, cada passo dado cuidadosamente porque o terreno é minado, avançar na (re)construção de um Brasil que decididamente se afaste da anomia ou do fascismo como resultante da anomia.

A democracia de 1988 está debilitada, mas ainda respira. Por quanto tempo, não se sabe. A democracia em crise só pode, ao longo dos próximos anos, creio, funcionar como espaço de defesa, como nosso espaço operacional. Sem ilusões normativas, sem discursos moralizantes, sem metafísica. Como a menina que comia chocolates na padaria do Esteves.

O primeiro passo foi dado: começamos a deixar para trás o inferno bolsonarista, começamos a ingressar no purgatório lulista. Mas, bem-vindas ironia e astúcia da história, nosso purgatório é paradoxal: exala perfume de paraíso prometido. Que se cumpra a promessa.

Abraço carinhoso.

*Tadeu Valadares é embaixador aposentado.

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Thomas Piketty Luciano Nascimento Luiz Renato Martins Jorge Branco Ronald León Núñez Maria Rita Kehl Vladimir Safatle Walnice Nogueira Galvão Samuel Kilsztajn Alexandre de Lima Castro Tranjan Paulo Nogueira Batista Jr Daniel Afonso da Silva Antonino Infranca Bruno Fabricio Alcebino da Silva Kátia Gerab Baggio Claudio Katz Luiz Carlos Bresser-Pereira Gabriel Cohn Leonardo Boff Everaldo de Oliveira Andrade Leda Maria Paulani Ricardo Abramovay Vinício Carrilho Martinez Otaviano Helene Luiz Bernardo Pericás Boaventura de Sousa Santos Fernão Pessoa Ramos Denilson Cordeiro Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Bernardo Ricupero Benicio Viero Schmidt Airton Paschoa Andrés del Río Gerson Almeida Afrânio Catani Jorge Luiz Souto Maior Luiz Roberto Alves Luis Felipe Miguel Lucas Fiaschetti Estevez Ronald Rocha Eugênio Trivinho Marcus Ianoni Bruno Machado Sergio Amadeu da Silveira João Sette Whitaker Ferreira Marcelo Módolo Valerio Arcary Luiz Werneck Vianna Gilberto Lopes João Paulo Ayub Fonseca Luiz Marques Priscila Figueiredo Dennis Oliveira Yuri Martins-Fontes Leonardo Avritzer Eleonora Albano Marcos Silva Alexandre Aragão de Albuquerque Liszt Vieira Ricardo Fabbrini João Adolfo Hansen Heraldo Campos Eliziário Andrade Francisco Pereira de Farias Mariarosaria Fabris José Geraldo Couto Luís Fernando Vitagliano Francisco de Oliveira Barros Júnior Bento Prado Jr. Manuel Domingos Neto Ari Marcelo Solon Dênis de Moraes Tadeu Valadares Daniel Brazil Salem Nasser Sandra Bitencourt João Feres Júnior Igor Felippe Santos Paulo Sérgio Pinheiro Slavoj Žižek Osvaldo Coggiola Eleutério F. S. Prado João Lanari Bo Alysson Leandro Mascaro Juarez Guimarães Ricardo Musse Eugênio Bucci Celso Frederico João Carlos Loebens Paulo Capel Narvai Daniel Costa Ricardo Antunes Matheus Silveira de Souza Armando Boito Marilia Pacheco Fiorillo Lincoln Secco Elias Jabbour Antonio Martins Mário Maestri Jean Pierre Chauvin Érico Andrade Marilena Chauí Francisco Fernandes Ladeira Carlos Tautz Rubens Pinto Lyra Leonardo Sacramento Fábio Konder Comparato Andrew Korybko Rodrigo de Faria Michael Löwy Marjorie C. Marona Paulo Martins Renato Dagnino José Luís Fiori Milton Pinheiro Ladislau Dowbor Alexandre Juliete Rosa Luiz Eduardo Soares José Micaelson Lacerda Morais Jean Marc Von Der Weid Fernando Nogueira da Costa Marcelo Guimarães Lima Tales Ab'Sáber Michel Goulart da Silva Chico Alencar João Carlos Salles Gilberto Maringoni André Singer Ronaldo Tadeu de Souza Paulo Fernandes Silveira Alexandre de Freitas Barbosa Henri Acselrad Vanderlei Tenório José Raimundo Trindade Rafael R. Ioris Flávio Aguiar Atilio A. Boron Carla Teixeira Julian Rodrigues José Dirceu Michael Roberts Antônio Sales Rios Neto André Márcio Neves Soares Annateresa Fabris Plínio de Arruda Sampaio Jr. José Costa Júnior Manchetômetro Henry Burnett Celso Favaretto Anselm Jappe Caio Bugiato Chico Whitaker Berenice Bento José Machado Moita Neto Eduardo Borges Tarso Genro Flávio R. Kothe Lorenzo Vitral Marcos Aurélio da Silva Remy José Fontana

NOVAS PUBLICAÇÕES