A ordem do capital

Banksy, Idiotas, 2007
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Clara E. Mattei

Clara E. Mattei lançou neste ano o livro A ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo, cuja leitura é muito oportuna para o atual debate público brasileiro. Desde a economia de guerra inglesa, emergiram os economistas tecnocratas; desde a instauração do fascismo na Itália, emergiu o hábito de os governos, ao enfrentarem déficits fiscais e fazerem cortes de gastos, cortarem primeiro os serviços prestados a seus cidadãos. Por qual razão isso aconteceu?

O efeito austeridade corresponde ao sofrimento social provocado quando Estados cortam benefícios públicos em nome da sua solvência (capacidade de cumprir os compromissos) para o resgate de títulos de dívida pública em longo prazo. As políticas de austeridade enfatizam os traços mais comuns da política econômica contemporânea: cortes orçamentários especialmente em gastos com bem-estar social, como educação pública, saúde, habitação e seguro-desemprego, tributação regressiva, crise deflacionária, privatização, repressão salarial até a “flexibilização” neoliberal do mercado de trabalho via corte de direitos trabalhistas.

Esse conjunto de políticas públicas concede total primazia ao mercado de títulos de dívida pública e, em consequência, concentra a riqueza financeira em seus possuidores – e em todos os investidores em pós-fixados – via elevação dos juros compostos. Pior, é apresentado, reiteradamente, como capaz de “guiar a Nação para dias melhores”.

Essas políticas são repetidas por governos neofascistas ao somar ataques aos sindicatos contra os direitos de negociação coletiva dos trabalhadores. Não permitem a reposição inflacionária e o ganho real no salário-mínimo, indispensável aos pobres.

Adotam ou mantêm políticas fiscais regressivas, capazes de imporem uma divisão desigual na cobertura fiscal das despesas públicas: uma parcela maior da receita tributária proveniente dos impostos regressivos sobre o consumo, pagos por toda a sociedade em suas compras, é combinada com isenções de impostos progressivos sobre lucros e dividendos, recebidos pelas faixas de renda mais altas. No Brasil, ocorreu essa queda da carga tributária sobre as pessoas físicas mais ricas, a partir de dezembro de 1995, no primeiro mandato do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso.

No entanto, Clara E. Mattei mostra que a austeridade não é nova, nem é produto da chamada Era neoliberal, iniciada no fim dos anos 1970 de estagflação. Fora, talvez, as três décadas de expansão socialdemocrata, seguintes ao fim da Segunda Guerra Mundial, a austeridade tem sido um dos pilares do capitalismo desigualitário.

O costumeiro discurso de ex-tecnocratas ou altos funcionários, detentores no passado do poder de comando estatal, aparentemente, busca apenas soluções técnicas ou racionais para os problemas, sem levar em conta os aspectos humanos e sociais. Chegam a anunciar uma falsa ameaça: “o crédito público no Brasil está evaporando”.

O termo “tecnocracia” era usado, originalmente, para designar a aplicação do método científico na resolução de problemas sociais, em contraste com a tradicional abordagem política. No entanto, passou a ser usado, popularmente, para indicar qualquer tipo de administração feito por especialistas, detentores do poder da técnica.

A etimologia de tecnocrata mostra derivação das palavras gregas tekhne, com significado de técnica, destreza, habilidade ou aptidão, mais kratos, designadora de governo. Designou um grupo de economistas sob a cobertura do governo fascista de Benito Mussolini, O Duce, após 1922, orientador de políticas de austeridade na Itália.

Esses economistas italianos tiveram poderes excepcionais para aplicar a austeridade fiscal. Aproveitaram essa oportunidade de coerção para explorar os alcances da considerada “economia pura”, apresentada como lei natural e alinhada à austeridade.

Eles desfrutavam de uma vantagem sem precedentes na governança. Podiam implementar modelos econômicos diretamente da abstração às decisões práticas, sem o ônus de procedimentos democráticos na mediação dos conflitos de interesses políticos e sociais. Graças ao Mussolini, contavam com a ajuda da opressão política.

Para persistir, até hoje, a austeridade requer especialistas sempre dispostos a falar sobre suas abstratas virtudes. Essa propaganda enganosa permanece através de um elenco midiático de figuras tecnocráticas.

Os economistas, imersos no fascismo e/ou na economia de guerra, inclusive cultural, assumiram papéis sem precedentes na formulação e implementação de políticas econômicas para orientar as reformas favoráveis ao livre-funcionamento de O Mercado pseudo sobrenatural – onipresente, onipotente, mas não onisciente. Esses economistas apoiaram-se, teoricamente, nos princípios da “economia pura” – então um paradigma emergente, mas tornado fundamental para a Economia ainda dominante em corações e mentes dos tecnocratas de hoje, dentro da tradição neoclássica do mainstream.

O paradigma da “economia pura” é apenas o primeiro passo no método de análise econômica politicamente “neutra” em relação aos comportamentos individuais e à desigualdade social. Ao dissociar o processo econômico dos conflitos de interesses políticos – isto é, ao apresentar a teoria econômica como racionalidade abstrata e conceituar os mercados como livres das relações sociais de dominação – a economia pura iludiu a opinião pública em busca de consentimento nos sistemas capitalistas. Permitiu suas relações de dominação se mascararem como racionalidade econômica.

Sob o ponto de vista marxista de Clara Mattei, a força da tecnocracia residia nesse poder de enquadrar os objetivos mais fundamentais da austeridade – restabelecer as relações capitalistas de produção e subjugar a classe trabalhadora para aceitar a inviolabilidade da propriedade privada e das relações salariais – como um retorno ao estado natural da economia, no caso, a atividade de produção e venda de mercadorias.

A teoria “apolítica” desses economistas estava centrada em uma caricatura idealizada de um ser econômico: o poupador racional. Criou a ilusão de qualquer um poder ser, independentemente de suas condições e dotes materiais, caso trabalhasse bastante.

Com esse (falso) discurso, desacreditou e desvalorizou os trabalhadores sem sobras de renda. Eles deixaram de ser entendidos como membros produtivos da sociedade para serem vistos como sujeitos passivos, dada sua incapacidade de praticar o comportamento econômico virtuoso como a parcimônia. Como as pessoas podem economizar dinheiro sem o terem recebido de maneira excedente?!

Economistas midiáticos são contra o Partido dos Trabalhadores porque, por suas lentes neoliberais/neofascistas, a classe produtiva na sociedade não é a classe trabalhadora, mas sim a classe capitalista. Respeitam só as pessoas capazes de poupar e investir, assim contribuindo para a acumulação privada de capital e o carregamento da dívida pública.

O livro de Clara Mattei mergulha no paradoxo de uma doutrina apresentada como apolítica, mas com o propósito central da “domação (e/ou dominação) dos homens”. Sob a aparência de despolitização, os economistas tecnocratas realizam a maior ação política de todas: curvar as classes trabalhadoras às vontades e necessidades das classes proprietárias de capital para o enriquecimento dessa pequena minoria.

A austeridade se mostra eficaz em proteger as hierarquias capitalistas de danos, durante momentos de pretendida mudança social por parte do eleitorado. Ela entra em cena como protetora do capitalismo, é anunciada como um meio de “consertar” a economia, aumentando sua “eficiência” ao propor reajustes salariais com perdas em curto prazo para supostos ganhos em longo prazo.

As limitações austeras, impostas aos gastos públicos, aos salários dos servidores e ao salário-mínimo dos aposentados, pressupostamente, garantiriam, para “quem trabalhar muito e economizar muito”, o único caminho para a sobrevivência.

O despertar coletivo anticapitalista foi acentuado pelas extraordinárias medidas governamentais, durante a economia de guerra (e a recente pandemia), inclusive interrompendo temporariamente a acumulação privada de capital. Para enfrentar o esforço de produção bélica (e vacinação), os governos de todas as nações foram forçados a intervir naquilo, até então, visto como domínio imaculado do livre-mercado.

O intervencionismo estatal não apenas superou a guerra e a pandemia. Também deixou claro as relações salariais e a privatização da produção – longe de serem “naturais” – serem escolhas políticas de uma sociedade com uma hegemonia classista capitalista.

Encorajados pelos novos precedentes econômicos do esforço de mobilização, os trabalhadores votaram a favor do governo assumir sua responsabilidade social. No entanto, a pregação diuturna da responsabilidade fiscal visa preservar o mundo como os economistas tecnocratas pensam existir: sem questionamento do capitalismo.

Uma sensação de terror assola os economistas neofascistas em torno da ameaça de colapso da ordem do capital. Contra isso, defendem uma solução austera, para a crise capitalista, quando os países teriam de marginalizar até as propostas políticas recém-eleitas. Essa austeridade poderia fazer, indiretamente, o equivalente à violência física das milícias fascistas contra os trabalhadores: defender a ordem capitalista.

O Estado nacional não é apresentado como a conciliação do conflito entre classes, mas como o instrumento de tecnocratas iluminados. Para eles, os pilares do capitalismo deveriam ser salvaguardados acima de tudo com todos os cidadãos aceitando o governo dos especialistas. Estes direitistas continuam praticantes do antigo fascismo austero.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Rede de apoio e enriquecimento. Disponível em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2022/09/20/rede-de-apoio-e-enriquecimento-baixe-o-livro/

Referência


Clara E. Mattei. A Ordem do Capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo. Chicago, The University of Chicago Press, 2022, 480 págs.

 

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