Bolsos cheios e cabeça vazia

Imagem: Mitchell Luo
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Por GILBERTO LOPES*

Considerações sobre a questão da dívida pública

O ministro da fazenda da Costa Rica, Nogui Acosta, vangloria-se de que, pela primeira vez em treze anos, o governo amortizará o valor principal da dívida. Ele sugere que este é “um marco na trajetória de consolidação das finanças públicas”. Pagar o principal em vez de renegociar a dívida e reativar a economia, o que não é feito por ninguém, exceto em condições muito especiais. Nenhum governo sério faz o que propõe o governo de Rodrigo Chaves, um ex-funcionário do Banco Mundial. Isso é um absurdo. Mas vender o patrimônio nacional para fazê-lo é mais do que absurdo!

A proposta de vender ativos para reduzir a dívida não é apenas um engano – que oculta a verdadeira ambição de comprar, a preços de liquidação, negócios muito rentáveis –, mas o verdadeiro objetivo destas propostas, que têm pouco – ou nada – a ver com a questão do controle da dívida.

Certamente, o problema da dívida deve ser tratado com seriedade, como parte de um programa de desenvolvimento do país, e não de nos submetermos a condições inaceitáveis e dolorosas a fim de satisfazer as exigências dos credores. Isso não faz sentido se as condições que geraram a dívida forem mantidas. A venda de ativos pode pagar alguma coisa, mas nada de significativo. Em pouco tempo, deveremos o mesmo ou mais. Se vendermos ativos nacionais para pagar a dívida, estaremos, a curto prazo, não só mais endividados, mas também mais pobres.

 

Dívida, uma bomba para desarmar

Há muito tempo, um economista espanhol, o professor Juan Torres López da Universidade de Sevilha, dedica-se à questão da dívida. Fui entrevistar o professor Torres em Sevilha há alguns anos e tenho acompanhado seus escritos. De seus textos, surge a ideia de que a dívida é uma bomba que deve ser desarmada, como no artigo publicado no jornal espanhol Público em 11 de junho de 2021.

Segundo ele, os dados sobre a evolução da dívida em todo o mundo nos mostram que “estamos sentados numa bomba que explodirá inevitavelmente, se não forem adotadas medidas adequadas para desarmá-la”. Ficou impressionado com os dados da dívida que acaba de divulgar o Banco de Compensações Internacionais (BIS), com sede em Basileia, Suíça. As dívidas acumuladas no mundo no final de 2020 tinham atingido cerca de 286 trilhões de dólares, cerca de 3,5 vezes o produto global.

Dessa dívida, 221,4 trilhões de dólares estavam no setor não financeiro: 53,8 trilhões de dólares em dívida das famílias; 83,4 trilhões de dólares em dívida dos governos; 78,6 trilhões de dólares em dívida das empresas não financeiras. A isto devem ser somados 65 trilhões de dólares do setor financeiro.

Um ano depois, essa dívida tinha subido para 303 trilhões de dólares, alimentada pela montanha de dinheiro injetado nas economias para enfrentar os efeitos da Covid-19 para empresas e indivíduos, segundo dados do Institute of International Finance (IIF), uma associação de instituições financeiras globais com sede em Washington. Estes números são graves por sua dimensão, mas, principalmente, por seu crescimento vertiginoso, acelerado pela pandemia. De acordo com o BIS, a dívida total do setor não financeiro triplicou desde 2000.

A análise da economia dos países da União Europeia (UE) é objeto de especial atenção de Juan Torres López. De acordo com os dados do Eurostat, que ele cita no artigo mencionado, a dívida pública de toda a União Europeia era de 12 trilhões de euros. A dos países da zona do euro era ligeiramente inferior, com 11,1 trilhões de euros. Isto, na opinião dele, demonstrava que as “mal denominadas” políticas de austeridade não serviam para diminuir a dívida, “mas justamente o contrário”. Desde 2000, diz ele, a dívida da zona do euro aumentou em 6,8 trilhões de euros. Um montante semelhante ao que pagaram, nesse período, em juros. Em 2020, em plena pandemia, os países da União Europeia tiveram que gastar 191,6 bilhões de euros no pagamento de juros. Em outras palavras, “em retribuição aos bancos que lhes emprestaram dinheiro criado quase inteiramente do nada, sem qualquer custo para eles”.

Há apenas uma semana, a BBC publicou uma reportagem revelando que havia pessoas comendo alimentos para animais de estimação na Grã-Bretanha e aquecendo sua comida com velas. Há alguns meses, dizia-nos que muitos britânicos com mais de 50 anos, incapazes de pagar aluguéis, tinham que viver em abrigos compartilhados. Talvez em poucos países as políticas de privatização e de contenção do gasto público tenham sido tão eficazes como na Grã-Bretanha. Estes exemplos evidenciam a necessidade de discutir como lidar com o problema da dívida. Não se trata de um problema técnico, mas político, como veremos.

 

Quem são os viciados na dívida?

Juan Torres López faz algumas perguntas. Uma delas é: quem são os viciados na dívida? Trata-se de um artigo que ele publicou há alguns anos, em 2017. Pouco antes disso, tinha publicado um livro com o título provocador Economia para não se deixar enganar pelos economistas. Um dos mitos mais difundidos sobre a vida econômica – diz em seu artigo – é que a enorme dívida acumulada no mundo é consequência de pessoas que vivem acima de suas possibilidades. Outro mito é que “os partidos de centro-esquerda são muito pródigos quando governam, produzindo grandes déficits que aumentam sem parar”.

Cita como exemplo as declarações da então chanceler alemã, Angela Merkel, de que nenhum Estado pode gastar mais do que recebe. Isso faz sentido no caso de uma família, mas não no caso de um Estado, diz Juan Torres López. Se o Estado deixa de gastar, provoca uma diminuição da renda das pessoas, o que não é o caso de uma família.

Trata-se, como tantas outras afirmações, “de uma falsidade que é facilmente desmentida pelo conhecimento elementar dos processos e dados econômicos”, afirma Torres. Os erros econômicos têm propósitos, diz ele. Os viciados em dívidas não são as famílias, muito menos famílias de baixa renda. São os bancos, “porque essa é a fonte de seus lucros e de seu incrível poder, não só financeiro, mas também midiático, cultural e político”. Quando nos dizem que os bancos devem ser salvos, o que se pretende é criar condições para que continuem endividando as pessoas.

A explicação para este processo é relativamente simples e clara. Dizem-nos que devem ser impostas políticas de corte de gastos a fim de criar poupança, reduzir o gasto e diminuir a dívida. Mas o que se procura, diz Juan Torres López, é o contrário: reduzir a capacidade de gerar renda própria para que os bancos voltem a conceder empréstimos, criando assim novas dívidas. A prova da farsa é que a dívida aumentou mais “justamente no período de implementação de políticas de cortes sociais e de resgate dos bancos”, que as autoridades financeiras afirmaram ser indispensáveis para diminuir a dívida.

 

Privatizar para pagar

Em 1 de dezembro, o economista brasileiro José Álvaro de Lima Cardoso denunciou a dívida pública como um “mecanismo infinito de drenagem de dinheiro público”. José Álvaro de Lima Cardoso referia-se à limitação dos gastos para atender as necessidades sociais impostas ao orçamento brasileiro após o golpe de Estado contra a presidente Dilma Rousseff em 2016. Uma medida semelhante à adotada na Costa Rica, através de uma lei aprovada sem a necessidade de um golpe de Estado. No Brasil, os gastos sociais do governo também foram congelados por 20 anos, resultando numa grave recessão econômica e em resultados sociais desastrosos.

Em 2004, em meio a uma nova crise financeira internacional, Ernesto Gutiérrez Betancor publicou um artigo na revista da UNAM Conceptos Sociales (reproduzido por vários meios de comunicação) intitulado “A dívida externa, quem deve a quem?”. Salientou ali que “nos últimos anos, as condições de vida da maioria da população na África, América Latina e Ásia pioraram drasticamente”. “Na África subsaariana, por exemplo, o consumo médio per capita é inferior ao que era em 1970. A renda da maioria dos latino-americanos também é 20% menor do que era em 1980. Esta situação desesperada é frequentemente apresentada como o produto da corrupção, incompetência ou ineficiência”.

Mas, diz Gutiérrez Betancor, as estatísticas mostram uma realidade muito diferente. “Em 1999, os 41 países pobres altamente endividados (PPAE) transferiram para o Norte 1,68 bilhão de dólares a mais do que receberam. No mesmo ano, os chamados países do ‘Terceiro Mundo’ em seu conjunto fizeram uma transferência líquida de recursos de 114,6 bilhões de dólares”. Apesar disso, uma dívida que, em 1982, chegava a 780 bilhões de dólares tinha subido para pouco mais de 2 trilhões de dólares, menos de 25 anos depois.

No final de 2019, a dívida externa total dos países de renda média e baixa (não de todo o chamado Terceiro Mundo, ou dos “mercados emergentes”) chegava a 8,1 trilhões de dólares, segundo dados do Banco Mundial, instituição responsável pelos programas de redução da dívida e da pobreza, onde trabalhava Rodrigo Chaves. Já na década de 1970, Robert McNamara, ex-executivo da Ford, secretário de defesa dos EUA durante a Guerra do Vietnã e depois presidente do Banco Mundial entre 1968 e 1981, advertiu que “a taxa média de aumento da dívida após a década de 1960 é cerca do dobro da taxa de crescimento das receitas de exportação, com as quais os países endividados devem garantir este serviço da dívida. Esta situação não pode continuar indefinidamente”.

Quando se tornou claro que os países subdesenvolvidos não seriam capazes de cumprir seus compromissos nas condições pactuadas, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional propuseram as chamadas “políticas de ajuste estrutural” como solução. As medidas fundamentais destas políticas são a redução do gasto público e a privatização de empresas estatais. Quarenta anos destas políticas resultaram na aceleração de um processo cujas consequências insustentáveis McNamara advertia contrariamente há 50 anos.

Na Costa Rica, o governo propõe a privatização do Banco da Costa Rica, um dos três bancos estatais. O ministro das finanças vangloria-se de que, pela primeira vez em treze anos, o governo amortizará o valor principal da dívida. Mas o segredo não está aí, e sim na venda do banco, um negócio excepcional, para o qual os potenciais compradores (incluindo os bancos colombianos) sempre tiveram os olhos voltados.

“Quanto seria amortizado com a venda do Banco da Costa Rica?”, perguntei a um economista que acompanha estes processos no país. “Não há um valor definido. Estima-se em cerca de 1,85 bilhão de dólares. É suficiente para pagar os juros da dívida durante seis meses. Mas este é um valor puramente contábil. O valor econômico do banco é muito superior. Para o país, deve ser considerado seu valor social, que inclui a formação de seu pessoal – cerca de quatro mil pessoas – o valor de suas instalações, os vários serviços que presta à sociedade, não somente financeiros, mas também o trâmite de documentos, tais como passaportes ou carteiras de habilitação”.

“O que significa ser muito eficiente para um banco privado?”, pergunta ele: significa ganhar o máximo de dinheiro possível. Isso é obtido através da redução de pessoal, dos salários e dos serviços prestados e, sobretudo, aumentando a taxa de juros dos empréstimos, que hoje é de 8,4% ao ano nos bancos públicos e mais de 15% nos bancos privados. Uma extorsão para o país!

Por outro lado, não há nenhuma proposta para eliminar ou reduzir as diversas isenções fiscais que favorecem os investidores, particularmente no regime de zonas francas. Entre as medidas de transferência de recursos para os bancos está um projeto de lei – negociado a pedido do setor financeiro – para permitir que 30% das poupanças do Regime Obrigatório de Aposentadorias Complementares (ROP) com problemas de dívida sejam transferidas para os credores. Uma medida que os afetará posteriormente, ao reduzir o montante de suas futuras pensões, além de enfraquecer o sistema de aposentadorias.

Em sua “Estratégia da dívida a médio prazo”, publicada em abril último, o Ministério da Fazenda da Costa Rica afirmou que a dívida do governo central é equivalente a 66,46% do PIB. Acrescentou que, “graças à dinâmica das receitas e à contenção das despesas, parece que o país caminha para uma estabilização das finanças públicas”. Nada é dito sobre as condições sociais, o desemprego estrutural, a crescente concentração da riqueza, ou o assalto sistemático às eficientes instituições públicas – bancos, telecomunicações, energia, saúde, educação, estradas, aeroportos, portos –, cujas medidas de privatização têm enfraquecido os serviços públicos, sem qualquer projeto de país que ofereça um modelo de desenvolvimento para reduzir a dívida ou a pobreza.

Há anos que os promotores destes projetos têm percorrido o mundo com os bolsos cheios e a cabeça vazia. Eles tentam vender-nos as velhas ideias, que nos trouxeram a esta crise, como uma solução para nossos problemas. Para isso contam, na Costa Rica, com o controle da presidência e uma confortável maioria na Assembleia Legislativa. A venda de ativos não resolverá o problema da dívida, mas agravará um processo de concentração da riqueza e de maior sofrimento social para a população da Costa Rica. Privatizações e contenção de gastos, uma receita infalível para a deterioração das condições de vida da população costa-riquenha, como a história tem demonstrado.

*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor de Crisis política del mundo moderno (Uruk).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

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