Posições

Imagem: Robert Rauschenberg
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Por LUIZ EDUARDO MOTTA*

Prefácio à nova edição do livro de Louis Althusser

O livro Posições foi publicado originalmente na França pela Editions Sociales em 1976. A editora carioca Graal, fundada por Max da Costa Santos e ex-deputado do PSB e também membro da Frente Parlamentar Nacionalista, cassado em 1964 e falecido em 1978, publicou o livro em duas partes. Posições 1 incluía dois textos que não estavam presentes na edição original: “Resposta a John Lewis” e “Elementos de autocrítica”, e o Posições 2 reproduzia os textos da edição francesa excetuando “Sustentação em Amiens” que foi deslocado para o Posições 1. Este conjunto de textos configura o que se denomina de “fase de autocrítica” de Althusser, e sucede a sua primeira fase marcada pelos livros Pour Marx e Lire le Capital de 1965, considerada mais “teoricista”, e antecede a fase da “crise do marxismo” na qual Louis Althusser travou um combate direto às posições reformistas adotadas pelo PCF em meio à onda do chamado “eurocomunismo”.

A segunda fase de Louis Althussser é marcada por retificações da sua obra inicial, mas em nenhum momento isso significou o abandono das suas teses formuladas inicialmente como o corte epistemológico na obra de Karl Marx, da sua crítica ao humanismo teórico, na sua ênfase ao materialismo na obra de Marx e Engels em oposição às interpretações idealistas, da defesa da pluralidade das contradições e das determinações divergente às perspectivas monistas e reducionistas, e de seus efeitos políticos imediatos como o reformismo ou o esquerdismo, sem pé na realidade concreta.

Sobre os textos que compõem essa coletânea, “Freud e Lacan” é uma exceção, pois fora escrito em 1965 na mesma fase de Pour Marx e Lire le Capital. Neste artigo, Louis Althusser demarca a importância de Freud em fundar, assim como Marx, um novo continente científico, a psicanálise e construir um novo objeto científico, o inconsciente. Louis Althusser, distintamente de Herbert Marcuse, não pretendeu fundir marxismo com a psicanálise, visto que os objetos de análise são diferentes, mas sim delimitar a originalidade de Freud no campo do conhecimento a partir da leitura estabelecida por Lacan.

Assim como Lacan realizou uma defesa da originalidade científica de Freud, Louis Althusser visou o mesmo em relação à obra de Marx. E essa defesa da radicalidade científica (e política) de Marx deu projeção internacional das posições de Althusser, no que também resultou numa enxurrada de críticas e de oposições às suas posições inovadoras no campo do marxismo. E rótulos não faltaram como ser acusado de formalismo, funcionalismo, positivismo, stalinismo, estruturalismo e teoricismo. Também é importante ressaltar a sua empatia pelos movimentos revolucionários do Terceiro Mundo, e em especial às contribuições de Mao Zedong no campo teórico, como também da transição chinesa durante o contexto da Revolução Cultural.

Em meio a essa saraivada de críticas, em sua maioria de teor acusatório e desprovida de um conteúdo mais substancial, Louis Althusser retomou algumas dessas questões polêmicas (e que não foram poucas) e realizou algumas retificações da sua obra inicial. Mesmo assim, os seus críticos não ficaram satisfeitos, já que para eles Louis Althusser deveria ter renunciado por completo as suas teses e ter incorporado o que consideravam ser o “marxismo verdadeiro” de viés idealista e ontologizante calcado na categoria de trabalho alienado e na centralidade do homem como ponto de partida de análise, além da renúncia de suas posições políticas mais radicais. De fato, Louis Althusser retificou aquilo que ele denominou de desvio teoricista em seus primeiros escritos, e acentuou ainda mais a sua posição leninista na sua produção teórico-política.

O ponto dessa virada começa no texto de “A filosofia como arma da Revolução”, uma entrevista dada à Maria Antonieta Macchiocchi em abril de 1968. Aqui Louis Althusser estabelece uma diferença em sua obra inicial, visto que a filosofia não é mais definida como a Teoria que dá suporte às teorias científicas, mas sim a representação da luta de classes na teoria. A filosofia é uma luta, e fundamentalmente política, pois é a luta de classes.[i] A filosofia marxista-leninista representa a luta de classes proletária na teoria. E é na união da teoria marxista e do movimento operário a filosofia deixa, no dizer de Marx, de “interpretar o mundo”. Ela passa, assim, a ser uma arma para a sua “transformação”: a revolução. E essa nova definição da filosofia por Althusser permanecerá nos textos seguintes.

Isso fica bem demarcado no prefácio escrito por Althusser para o livro de Marta Harnecker Princípios elementares do materialismo histórico de 1970, intitulado “Marxismo e luta de classes”. Neste texto, Althusser critica a leitura genética – de origem e resultado – como se o processo tivesse um ponto de partida dado. A infraestrutura não cria as classes sociais (como também o Estado não deriva da estrutura econômica), e tampouco a luta de classes é um simples efeito da existência das classes. Para Louis Althussser, trata-se de uma deformação economicista burguesa no interior do marxismo.

Para Marx, as classes sociais não se restringem no último capítulo (e incompleto) do O capital, mas percorrem do início ao fim desta obra (sem falar em sua análise precedente do 18 Brumário), e a luta de classes não é um efeito, uma derivação da existência das classes sociais, já que a luta de classes e a existências das classes sociais são a mesma coisa. Assim sendo, Louis Althusser reafirma a sua tese anterior presente em Lire le Capital sobre a causalidade estrutural, pois nada deriva de uma externalidade, mas sim tem uma causalidade própria, uma origem própria. As classes sociais, portanto, não preexistem às lutas de classes já que ao falarmos de classes sociais as lutas já estão presentes em sua formação. Não existe um antes e um depois pois as estruturas, as práticas e as contradições se formam simultaneamente. Assim sendo, as lutas de classes são o motor do processo contraditório e antagônico em que as classes sociais estão entrelaçadas.

O capitalismo foi forjado por meio da violência, como bem destaca Marx em O capital, por intermédio do processo colonizador para a acumulação do capital. E Althusser destaca essa questão em Como ler O capital? publicado em 1969. A violência e a brutalidade capitalista não se restringiram no seu nascedouro, e muito menos teve uma faceta “humana” a exemplo das experiências do Welfare State e dos governos socialdemocratas. Essa brutalidade se estendeu (e ainda permanece) nas colônias por séculos, e Louis Althusser demarcou com precisão as lutas de libertação nacional e das guerras populares nas formações sociais do Terceiro Mundo.

Se a violência ao operariado diminuiu nas “metrópoles”, por seu turno essa violência se manteve nas colônias ao praticar sempre os mesmos métodos de roubo, de pilhagem e de massacres nas formações sociais que estão “à margem” dos países centrais. Mas, como ele mesmo observou, “os povos não se deixam mais massacrar: aprenderam a se organizar e a se defender, entre outros porque Marx e Lenin e seus sucessores, educaram os militantes revolucionários da luta de classes. E é porque o povo vietnamita está em vias de alcançar no terreno a vitória contra a agressão da maior potência militar do mundo, graças à guerra popular que ele realizou sob a direção das organizações que produziu”.[ii]

A passagem deste texto de Althusser é significativa, pois distintamente de outros intelectuais inseridos naquilo que se denomina de “marxismo ocidental” (e uma das exceções era Jean-Paul Sartre), a sua inserção no marxismo não se restringia ao mundo europeu a exemplo de György Lukács, Karl Korsh, Theodor Adorno entre tantos outros, pois sempre se manteve vinculado às lutas do chamado Terceiro Mundo, como podemos perceber pelo seu interesse nas experiências socialistas como Cuba, China, Argélia, a guerra popular do Vietnã, e também sobre a tática da guerrilha foquista (vide o seu texto sobre a morte de Che Guevara e da sua carta à Règis Debray).

Em 1970 foi publicado, certamente, o seu texto mais conhecido, Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. Já tratei mais detalhadamente deste texto em outra ocasião e, por isso, não vou me deter em seus pormenores[iii]. Mas é importante salientar que o artigo publicado no número 51 da revista La Pensée fora extraído do manuscrito, e publicado postumamente, Sobre a reprodução. A primeira parte do artigo é uma condensação de quase cem páginas em que Althusser abordou a problemática dos Aparelhos Ideológicos em seus diversos aspectos (escola, sindicatos, direito, partidos políticos, transição revolucionária).

Por ter se restringido no artigo ao papel dos aparelhos ideológicos escolares, Althusser foi alvo de várias críticas pela falta de imprecisão em sua análise, e de ser (des)classificado como reprodutivista, de funcionalista (bem presente nas crítica de Alain Badiou e de Nicos Poulantzas), e mesmo ter se omitido do papel da luta de classes. Althusser respondeu a essas críticas num texto publicado em 1976 “Notas sobre os Aparelhos Ideológicos de Estado” onde enfatizou o primado da luta de classes no interior dos AIE. No entanto, a questão do primado da luta de classes já estava bem presente no texto original que só veio a ser publicado em 1995.

De qualquer forma, esse texto marcou uma posição de Louis Althusser, ao retomar a concepção de Estado ampliado de Antonio Gramsci (termo cunhado por Christine Buci-Glucksmann em seu livro Gramsci e o Estado) e lhe dar um viés mais leninista ao substituir as categorias oriundas do pensamento moderno burguês, como sociedade civil e sociedade política, por aparelhos de Estado. Althusser acentua a ruptura da teoria marxista com o pensamento moderno ao alargar plenamente o conceito de Estado e o definir não apenas pelos aspectos coativos e jurídicos, mas também ideológicos, e não se restringindo espacialmente aos limites jurídicos da modernidade burguesa. Por outro lado, Althusser trouxe uma nova definição do conceito de ideologia que já vinha sendo esboçado desde o seu livro Pour Marx. Além do aspecto imaginário da ideologia em oposição à “falsa consciência”, e da sua materialidade prática, Louis Althusser insere a questão da interpelação ideológica na constituição dos sujeitos a partir de um Sujeito (a macro-ideologia) numa relação especular, inspirada na teoria dos espelhos de Jacques Lacan.

Chega a ser simplória a crítica dirigida a Louis Althusser de ser um autor “reprodutivista”. Como pensar a transformação e a ruptura se não houver o conhecimento dos mecanismos de reprodução? Para Althusser sempre há a primazia da luta de classes sobre as funções e o funcionamento dos aparatos estatais. Uma primazia que soa completamente incompatível com qualquer forma de funcionalismo, como também de “estruturalismo”. A reprodução da ideologia dominante não é a simples repetição, tampouco uma reprodução simples ou ampliada, automática, mecânica dos aparatos ideológicos definidos pelas suas funções, mas sim o combate pela unificação e renovação de elementos ideológicos anteriores, disparatados e contraditórios, numa unidade conquistada na e pela luta de classes, contra as formas anteriores e as novas tendências contraditórias e antagônicas à ideologia dominante.

Os três textos seguintes, “Resposta a John Lewis”, “Elementos de autocrítica” e “Sustentação em Amiens” formam o núcleo central dessa sua fase de autocrítica,[iv] e foram publicados em 1973, 1974 e 1976, respectivamente.

Em “Resposta a John Lewis”, Louis Althusser ratifica ainda mais a leninização da prática teórica (filosófica e científica) que já vinha demarcando em seus textos precedentes. A despeito de ter escolhido um obscuro intelectual do Partido Comunista da Grã-Bretanha, de pouca projeção internacional, Althusser respondeu implicitamente outras críticas já sidas desferidas anteriormente, não obstante tivesse rebatido algumas delas no seu livro A polêmica sobre o humanismo. Neste artigo publicado pela Marxism Today , Althusser retorna à sua visceral crítica ao chamado “humanismo teórico” prontamente defendido por John Lewis. Para Lewis o marxismo tem como cerne esses três princípios: (a) o homem faz a história; (b) o homem faz a história transcendendo a história; (c) o homem conhece apenas o que ele faz.

Louis Althusser rebate ponto por ponto os princípios defendidos por John Lewis: (a) “as massas fazem a história” e não o homem, categoria esta estranha e criticada por Marx nos seus textos pós-1845; (b) “a luta de classes é o motor da história”, pois esse motor é movido pelas contradições. Como diz Louis Althusser “as massas são várias classes, camadas e categorias sociais agrupadas num conjunto ao mesmo tempo complexo e móvel (as posições de diferentes classes e camadas, bem como de frações de classes no interior das classes, mudam no curso de um mesmo processo histórico ou revolucionário).”[v] Se são as massas que fazem a história, elas tem como primado a luta de classes exatamente por ser o motor que move, que faz avançar a história e realiza as revoluções, e não uma categoria de teor idealista como o “homem”. Para Louis Althusser, essa tese é decisiva, pois ela traça uma linha de demarcação radical entre os que defendem a via revolucionária e os defensores da via reformista; (c) “conhece-se apenas o que é” em oposição à tese de John Lewis que “o homem conhece apenas o que faz”. É a tese materialista fundamental do primado do ser sobre o pensamento. Isso significa dizer que o princípio de toda existência é a materialidade e toda a existência é objetiva, isto é, anterior à subjetividade que a conhece e independente dela. De acordo com Louis Althusser, a Tese do primado da prática sobre a teoria só tem sentido submetida à tese do primado do ser sobre o pensamento (posição já explicitada por Althusser em Pour Marx e Lire le Capital). E graças à prática é que se pode conhecer o que é: primado da prática sobre a teoria. Mas, como diz Louis Althusser, jamais se conhece algo que não seja aquilo que é: primado do ser sobre o pensamento.

“Resposta a John Lewis” ainda contém duas posições demarcadas por Althusser: a crítica ao “culto da personalidade” e o “processo sem sujeito nem fim (s)”. A primeira é uma crítica à categoria importada do pensamento burguês de matriz liberal na qual todos os problemas e desvios ocorridos durante os diferentes processos de transição, como também nas condutas dos PCs, fossem responsáveis por um indivíduo: Stalin. Nada mais estranho ao marxismo que esse tipo de redução. Ainda que tenha havido problemas e desvios no contexto de Stalin, seria um completo absurdo em reduzir tudo num indivíduo e conferindo-lhe um sentido ubíquo. Ademais, o principal efeito dessa análise redutora e simplista, para não dizer burguesa, é escamotear a análise sobre o primado das relações de produção nos processos de transição.

É neste conceito que a teoria marxista se fixa para o entendimento dos distintos processos históricos e das diferentes formas de transição, haja vista que o marxismo trata de todas as contradições que envolvem as práticas, não somente econômicas, mas também as políticas e ideológicas. A outra consequência dessa visão redutora foi à emergência de uma corrente até então inexpressiva no seio da esquerda: o trotskismo em suas diversas variantes. Com efeito, foi quem mais se beneficiou com o emprego dessa categoria quando fora empregada no XX Congresso do PCUS (e já era usada pelas correntes trotskistas). Paradoxalmente, ao empregarem a categoria do “culto à personalidade” essa corrente política marcada por desvios pequenos burgueses, também a emprega na sua prática política e ideológica visto que reduzem o marxismo na figura de Leon Trotsky, mas não pelo lado da “demonização”, mas sim pela “santificação” de todas as suas ações referentes ao período da Revolução Russa, e no período que se seguiu até a sua morte.

A tese do “processo sem sujeito nem fim (s)” é uma das maiores contribuições de Louis Althusser nesse contexto de sua autocrítica. Essa tese implode os preceitos idealistas e teleológicos que povoam certo marxismo impregnado pelo idealismo burguês. Para Louis Althusser não há um sujeito já dado na história que seja o portador de uma verdade absoluta, e nem um fim já dado. Há sim sujeitos na história, e que representam as diferentes conjunturas e contradições específicas nas diversas formações históricas de temporalidades diferentes.[vi] Como pensar as Revoluções chinesa e cubana sem o papel do campesinato que representava a maioria da massa explorada? Ou do movimento negro dos EUA nos anos 1960?

A própria mudança das relações de produção e das forças produtivas indicam novos sujeitos no atual cenário do capitalismo em articulação com o proletariado do século XXI, o que indica a formação de novas alianças e de novas estratégias. E tampouco existe um sujeito portador de uma verdade já pré-concebida com uma visão totalizante. Seria cairmos na armadilha do discurso judaico-cristão, impregnado de idealismo e sem materialismo, onde já haveria um telos definido. O próprio comunismo aparece como uma possibilidade e não como um fim histórico já dado (como próprio pensamento liberal tratou em décadas recentes com o chamado “fim da história” de Francis Fukuyama em que não haveria mais alternativa para além do liberalismo). Daí a necessidade de retomarmos Engels e Marx quando nos dizem que o processo histórico é marcado por acidentes e acasos. E tampouco o comunismo pode ser definido como um “nirvana” desprovido de sociabilidade, como teimam aqueles defensores da ideia do comunismo ser o “fim da política e da ideologia”. Um mundo sem classes não necessariamente teria o fim das contradições múltiplas. No mais, apostar nessa concepção teleológica é se sujeitar aos ditames idealistas, sem qualquer realismo político, e sem base na perspectiva materialista.

Em “Elementos de autocrítica”, Louis Althusser ratifica – e também retifica – alguns dos pontos defendidos nas suas obras pretéritas. O corte epistemológico, assim como a formação de um novo continente científico pelo marxismo, ainda se mantém em Althusser. A retificação é que a ciência marxista não rompe com a ideologia em geral, mas sim com a ideologia burguesa que sempre se faz presente no interior do próprio marxismo, tanto no aspecto teórico pelo idealismo humanista e pelo reducionismo econômico, como também na prática política de alguns partidos comunistas e socialistas.

A despeito de ser uma ciência, o marxismo tem um caráter revolucionário. Mas mesmo assim é uma ciência para desgosto que negam o caráter científico do marxismo, não somente pelos adversários de classe embebidos em concepções neoinstitucionalistas ou liberais, mas também dentro do marxismo que rejeitam toda ideia de teoria científica, e mesmo a palavra ciência, sob o pretexto de que toda a ciência ou mesmo toda teoria seriam na essência “reificantes”, “alienantes”, e logo burguesas.

Também neste texto, Louis Althusser refuta o rótulo de “estruturalista” tão propagado pelos seus “críticos”. A impressão que nos dá desses ditos “críticos” é não conhecerem nada a respeito do chamado “estruturalismo” francês, como também dos textos de Louis Althusser. Houve sim uma aliança tácita de Althusser com Lévi-Strauss, Foucault e Lacan na crítica ao humanismo de Sartre e no antropocentrismo em geral. O uso de Ferdinand Saussure também pareceu ser uma “heresia” para esses críticos, como se a linguística não tivesse nenhuma importância e não fosse possível um diálogo com a ciência da história.

Notáveis foram os trabalhos, pesquisas e avanços proporcionados por Michel Pêcheux, e no Brasil por Carlos Henrique Escobar, quando trataram da linguística a partir do marxismo. E nada mais estranho ao dito “estruturalismo” do que a multiplicidade de contradições, e da sobredeterminação delas, enfatizadas por Louis Althusser ao longo de suas obras. E, como Althusser enfatiza, o marxismo não se diferencia do estruturalismo pela prioridade do processo sobre a estrutura, mas do primado da contradição sobre o processo. Outra questão omitida pelos seus críticos, possivelmente por desconhecimento filosófico, é da influência de Spinoza em Louis Althusser na construção do conceito de causalidade estrutural (causalidade em si mesma), e da relação imaginária com o mundo real.

Spinoza está longe de ser um autor estranho a Marx e ao marxismo, vide os cadernos de Marx em sua juventude sobre Spinoza, e da influência de Spinoza no método da economia política de 1857 (separação entre o conceito e a realidade concreta), além das referências do filósofo materialista por Plekhanov e Bukharin. Para esses críticos, o marxismo é uma mera inversão de Hegel colocado em pé. Se, com efeito, Hegel está presente na obra de Marx, isso não significa uma diluição do marxismo no idealismo hegelianismo, e da sua originalidade enquanto teoria e ciência. Como negar também a influência de Rousseau e de Maquiavel em Marx? É só fazermos o enlace dos conceitos de ditadura do proletariado com a “vontade geral” de Jean Jacques Rousseau, ou com a definição do Estado ser fundado pela força, como entende Maquiavel. A prática teórica marxista reutiliza categorias precedentes e as transforma ao dar-lhes um novo significado conceitual. E por ser uma problemática aberta, e não findada ou fechada, o marxismo sempre traz consigo novos conceitos diante das novas questões emergentes.

Por fim, “Sustentação em Amiens” foi escrita em 1975, e publicada em Positions em 1976. Nesta intervenção, Althusser retoma as suas teses defendidas em Pour Marx, como a determinação em última instância, o processo de conhecimento e o humanismo teórico. Não me deterei nos detalhes deste texto, pois alguns aspectos já foram tratados acima. Mas, cabe sim destacar a importância do conceito do todo complexo articulado em distinção ao de totalidade. É nele que Marx demarca radicalmente sua diferença ao todo tipo de mecanicismo, e inaugura na determinação o papel das diferentes instâncias, o lugar de uma diferença real onde se inscreve a dialética.

A tópica, portanto, significa que a determinação em última instância pela base econômica só pode ser pensada em um todo diferenciado, complexo e articulado, onde a determinação econômica fixa a diferença real das outras instâncias, sua autonomia relativa e seu próprio modo de eficácia sobre a base. As instâncias se interpenetram por meio das contradições e das práticas articuladas. Nada mais distinto da perspectiva essencialista da “totalidade”, tão reproduzida pela visão idealista presente no marxismo brasileiro. A preferência de Althusser pelo todo e não pela totalidade é que no interior da totalidade se corre sempre o duplo risco: o de considerá-la como uma essência atual que abarca exaustivamente todas as suas manifestações, e de descobrir nela como um círculo, um centro que é sua essência. Por isso, a figura da última instância implode a figura do círculo ao afirmar as diferenças de eficácia. Se o círculo é fechado, o mesmo não pode ser visto no edifício da infraestrutura e da superestrutura, já que há diferenças e irredutibilidades entre elas, sem falar na desigualdade das contradições que perpassam por essas estruturas e práticas.

Esta edição também contém os prefácios originais de Manoel Barros da Motta e Severino Bezerra Cabral Filho, e a despeito de não estarem mais vinculados à perspectiva althusseriana, fizeram parte da primeira geração que tratou e divulgou as obras do filósofo franco-argelino. O prefácio publicado em Posições 2 é bastante interessante pois contextualiza a ruptura sino-albanesa no seio dos partidos comunistas marxistas-leninistas que estavam em oposição aos Partidos Comunistas pró-soviéticos, além de ressaltar a influência de Mao Zedong e da Revolução Chinesa nas intervenções políticas e teóricas de Louis Althusser nos anos 1970. Ademais, busca também trazer um diálogo entre a obra de Althusser com a de Foucault em certos aspectos relacionados às relações de poder reproduzidas pelos aparelhos de Estado, como afirma Althusser, ou dispositivos, no dizer de Foucault.

A editora Ciências Revolucionárias cumpre um importante papel ao relançar essa obra que fora publicada há 43 anos, e nunca mais foi relançada em nosso mercado editorial suprindo, assim, uma importante lacuna no campo marxista brasileiro, sobretudo para o público que reconhece no marxismo não apenas uma superação do modo de produção capitalista, mas sim a sua ruptura sem conciliação, com a formação de novas práticas, e de um olhar sempre renovador e dinâmico na teoria marxista.

*Luiz Eduardo Motta é professor de ciência política na UFRJ. Autor, entre outros livros, de A favor de Althusser: revolução e ruptura na teoria marxista (Contracorrente).

Referência


Louis Althusser. Posições. São Paulo, Editora Raízes da América \ Ciências Revolucionárias, 2022, 426 págs.

Notas


[i] Como observa Nicole-Edith Thévenin em seu livro Revisionnisme et philosophie de l’alienation (1977) a filosofia não é uma simples “técnica” já que ela produz efeitos práticos, e jamais é neutra, mesmo quando ela quer fazer crer nisso. A filosofia é sempre uma tomada de partido (cf. p. 229).

[ii] ALTHUSSER, Louis. Posições 2: p. 148.

[iii] Vide o capítulo 3 do meu livro A favor de Althusser, “Sobre o conceito de ideologia” publicado em 2021 pela editora Contracorrente. Sobre o conceito de ideologia em Althusser há outras indicações importantes sobre esse tema vide ESCOBAR, Carlos Henrique Ciência da história e ideologia. Rio de Janeiro: Graal, 1978; PIRES, Eginardo. “Ideologia e Estado em Althusser: uma resposta” in Encontros com a Civilização Brasileira, n° 6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978; LACLAU, Ernesto. Política e ideologia na teoria marxista. São Paulo: Paz e Terra, 1979; CLENNAN, Gregor e HALL, Stuart et alli Da ideologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1983; ZIZEK, Slavoj (org.) Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996; EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Boitempo, 1997; SAMPEDRO, Francisco. “A teoria da ideologia em Althusser” in NAVES, Márcio Bilharinho (org.) Presença de Althusser. Campinas: UNICAMP, 2010; ALMEIDA, Lúcio Flávio de ALMEIDA. “Um texto discretamente explosivo: Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado” in Lutas Sociais vol. 18, n° 33, São Paulo: PUC, 2014; Lúcio Flávio de, “Ideologia, ideologias, luta de classes: Althusser e os aparelhos ideológicos (de Estado)” in PINHEIRO, Jair (org.) Ler Althusser. Marília: Cultura Acadêmica, 2016.

[iv] Não incluí o texto “Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado” nesta lista por dois motivos: o primeiro por ter ganhado uma edição própria pela Graal e teve várias edições, além de ter sido também publicado no livro organizado por Zizek O mapa da ideologia; em segundo, pela edição do manuscrito Sobre a reprodução que vem a ser a versão completa deste texto, e está disponível em língua portuguesa pela editora Vozes.

[v] ALTHUSSER, Louis. Posições 1 p. 26.

[vi] Como bem observa Pierre Macherey “se há um sujeito na história, não é o sujeito que faz a história, mas o sujeito que a história faz” in WALDLOWSKI, Aliocha Por Althusser, São Paulo: Martins Fontes, 2022, p. 140.

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