Nota sobre a Escola Austríaca

Imagem: Cottonbro
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

A Escola Austríaca não divulga ciência, mas sim uma ideologia em defesa do capitalismo

Economistas da Escola Austríaca consideram que o único meio de elaboração de uma teoria econômica válida é a derivação lógica a partir dos princípios básicos da ação humana, um método denominado praxeologia experimental. É uma tentativa de erro ou acerto. Os agentes econômicos buscariam repetir a ação bem-sucedida.

Daí, catalogando essa prática instintiva, imaginam construir uma teoria das melhores decisões, útil como guia cotidiano. Para eles, a economia restringe-se à análise da ação humana, segundo a perspectiva dos agentes individuais.

Este individualismo metodológico permitiria a descoberta de leis econômicas fundamentais, válidas para toda a ação humana. Distingue-se do holismo metodológico, onde se busca captar as leis de movimento social, ou seja, os fatores responsáveis pela dinâmica – variações ao longo do tempo – do sistema capitalista.

Os “austríacos” buscam a explicação para os fenômenos macroeconômicos com base na ação dos indivíduos, e não em entidades coletivas, como por exemplo faz o historicismo ou o marxismo. Rejeitam quaisquer conceitos e agregados macroeconômicos se não forem fundamentados na ação individual.

Nesse sentido, discordam de Aristóteles. Há mais de 2.500 anos, afirmou: “o todo é distinto da mera soma de suas partes”. Isso é estranho na Matemática, onde o resultado da soma de um mais um são dois. Porém, em outras áreas do conhecimento, essa mudança qualitativa do todo, quando estão reunidos uma certa quantidade de indivíduos particulares, é adequada.

O individualismo metodológico tem suas origens filosóficas no racionalismo. Coloca o sujeito particular como principal responsável pela elaboração do processo de conhecimento. Ao teórico caberia o papel de ordenar os dados da experiência, segundo categorias lógicas, e, por conseguinte, inatas ao intelecto.

Assim, as atitudes individuais a priori independeriam da experiência, inclusive coletiva, quando, por exemplo, das interações entre os agentes econômicos emergiria um sistema complexo. O desafio dos adeptos do holismo é interpretar essa complexidade com simplicidade, sem o reducionismo cartesiano binário tipo “nós contra eles”.

A ação humana individual é o ponto de partida para a escolha dos agentes. Uma das premissas do Neoclassicismo, cujo fio-condutor ainda alimenta os “corações e mentes” dos economistas auto classificados como pertencentes ao mainstream (“corrente principal”), é o princípio da racionalidade.

Segundo esse racionalismo, os agentes econômicos maximizam suas funções de utilidade e lucro, isto é, agem racionalmente. Defendem também o atomismo: os mercados livres, inclusive o mercado de trabalho, tendem para o equilíbrio via flexibilidade de preços relativos. Coroam essa trilogia com a premissa da simetria de informações: todos os agentes têm informação perfeita e jamais se enganam

Ludwig von Mises (1881-1973) e Friedrich Hayek (1899-1992), gurus dos “austríacos” ultraliberais, também defendem a ideia de ordem espontânea: o sistema de preços relativos livres indica melhor alocação de capital contra a “tirania da maioria coletivista”.

O anticomunismo deles se confunde com a defesa do Estado mínimo: empresários se absteriam de investir quando temessem os gastos públicos levarem a aumento de impostos ou inflação. Completam esse pensamento anacrônico frente à história real com a Lei de Say de apenas a poupança ser canalizada para o investimento: para eles, as recessões são consequências de ciclo artificial de crédito, cujas consequentes quebras e bancarrotas devem ser suportadas, mas não curadas por Estado.

Os economistas austríacos rejeitam a testabilidade na economia por dizerem ser virtualmente impossível, pois os atores humanos não podem ser colocados em um cenário de laboratório sem serem alteradas suas possíveis ações. Outros economistas, inclusive ortodoxos do mainstream, criticam a metodologia adotada pela Economia “austríaca”: careceria de rigor científico, porque não se submete à teste de falseabilidade contra evidências empíricas e/ou estatísticas.

A Economia comportamental critica sua premissa de racionalidade. Ao contrário, os agentes econômicos baseiam suas decisões em regras de bolso inconsistentes, crenças enviesadas ou maus argumentos. Têm percepção sobre o risco e o retorno influenciada pela forma como o problema é apresentado, sem manter a pressuposta racionalidade.

Esse pensamento econômico da Escola Austríaca é o típico da extrema direita. Adota o dogma da meritocracia como o princípio explicativo da desigualdade social.

Pressupõe se todos os indivíduos possuíssem idêntico poder de barganha, todos tivessem começado exatamente na mesma linha de partida, ou seja, sem nenhum começar já com alguma vantagem, e ninguém tivesse recorrido à violência, fatalmente, alguns indivíduos mais competentes veriam seu patrimônio crescer enquanto outros menos competentes veriam seu patrimônio estagnar ou mesmo encolher.

Levanta a hipótese de haver três grandes grupos de indivíduos: o primeiro é constituído por quem poupa estritamente o necessário para repor seu capital; o segundo poupa mais além do estritamente necessário; e por fim quem poupa abaixo do necessário.O primeiro grupo de indivíduos conseguirá apenas conservar seu capital. O segundo grupo tenderá a aumentar seu capital e fabricar uma maior quantidade de bens de consumo no futuro. O terceiro grupo verá seu patrimônio encolher.

Alguns indivíduos consumiriam muito no presente à custa de ter de se desfazer do seu capital, outros aumentariam seu capital à custa de consumir muito pouco no presente. Só por esta razão comportamental perante à poupança, ocorrerão profundas alterações patrimoniais.

Os indivíduos nascidos com o “azar do berço” teriam antecedentes pouco cautelosos por terem se desfeito de todo o seu capital. Os descendentes de escravos terão sempre de trabalhar para outros indivíduos capazes de manterem ou aumentarem seu capital.

Distante dessa realidade histórica do escravismo, os “austríacos” dizem ser a decisão comportamental entre poupar ou consumir a crucial para explicar a diferença de patrimônio dos capitalistas e dos “outros”. A Escola Austríaca não divulga ciência, mas sim uma ideologia em defesa do capitalismo, isto é, conservadora do status quo.

O acerto nos empreendimentos é a principal causa explicativa da razão pela qual alguns indivíduos podem aumentar seu capital enquanto outros podem se descapitalizar. Têm, consequentemente, de trabalhar para os primeiros até conseguirem poupar de seu salário um capital suficiente para voltarem a ser produtores autônomos.

Há ainda outra causa. Em parte derivada da anterior, a propensão a assumir riscos também explica como o patrimônio das pessoas poderia se tornar desigual.

Portanto, haveria três virtudes econômicas valiosas em todos capitalistas: adiamento do seu consumo próprio para financiar investimentos, seleção de projetos de investimentos bem-sucedidos, e concentração patrimonial de riscos.

O fato de o trabalhador não receber o valor total da produção, para os “austríacos”, nada tem a ver com exploração denunciada pelos marxistas. Simplesmente, reflete o fato de ser impossível trocar bens futuros por bens presentes sem haver um desconto. Os salários representam bens presentes, enquanto o valor adicionado pela mão-de-obra representa bens futuros. Daí surgiriam as diferenças patrimoniais: a compensação pelo “sacrifício” dos capitalistas em aguardar o desfrute futuro.

Sempre alguém terá de concentrar as funções desempenhadas hoje pelos capitalistas. Esse alguém ficaria com a remuneração atualmente recebida pelos capitalistas. E aí toda a desigualdade patrimonial estaria de volta.

O Estado poderia substituir todos os capitalistas? Caridades ou assistencialismo lidam com a redistribuição de riqueza: elas coordenam a transferência do excedente de algumas pessoas para suprir a escassez de outras.  Os negócios do setor privado, por sua vez, lidam com a criação de riqueza por meio da produção e venda de bens e serviços desejados pelas pessoas.

Segundo a direita, “só o capitalismo pode fazer a ganância e o egoísmo melhorarem a vida das pessoas. A caridade é essencial, mas não elimina a pobreza; só o capitalismo o faz”. A Escola Austríaca não testa tal afirmação ideológica com evidências estatísticas.

Perante esse reducionismo binário, entre o Estado e o mercado, o terceiro incluído é a comunidade. Conquistou o Estado de Bem-Estar Social, depois da derrota do nazifascismo, quando seu poder de barganha, através de partidos de origem trabalhista com sua ideologia de esquerda, alcançou os poderes Republicanos.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Rede de apoio e enriquecimento. Disponível em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2022/09/20/rede-de-apoio-e-enriquecimento-baixe-o-livro/

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