A revolução será feminista ou não será

Imagem: Elyeser Szturm
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Por Elenira Vilela*

Na maioria das organizações as mulheres aceitam cada dia menos o papel de coadjuvantes. Isso significa que nas lutas populares, nas ruas, nas redes e nas eleições a questão feminista tem que ser colocada no centro, a participação das mulheres tem que ser incentivada, garantida, fomentada, respeitada e com o devido protagonismo.

Mais um 8 de março e no Brasil temos números recordes de feminicídio, de violências, de estupros, vivemos um recrudescimento de pautas misóginas como o estatuto do nascituro e revogação do aborto legal. Mas, de alguma forma, seria um alento se esse fosse um problema brasileiro. No mundo inteiro o recrudescimento da direita, do fascismo, da xenofobia e das cruzadas religiosas – não somente cristãs, pois se considerarmos os casos de Israel e Índia vemos que o problema é das estruturas religiosas e não de uma religião ou igreja específica – vem tornando a vida das mulheres mais difícil e perigosa.

Vivemos uma tentativa de retrocesso e perda de muitos direitos que já haviam sido conquistados. E digo que seria um alento se fosse somente no Brasil porque poderíamos estar lidando com algo possível de se enfrentar nacionalmente. Mas se esse recrudescimento deve ser enfrentado nacionalmente, ele só será derrotado internacionalmente.

Essa percepção remete à tão repetida – quanto atual e representativa – frase de Simone de Beauvoir: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante por toda a sua vida”.

Agora considere que a crise é estrutural, uma crise do modo de produção com reflexos que a torna uma crise que se espraia nas dimensões econômica, política, religiosa, humanitária, de direito internacional e ambiental. O capitalismo se vira contra as mulheres e por muitos argumentos volta a nos tornar as inimigas sociais, as que pervertem, as que ameaçam, as que desestruturam (como se o sistema não fizesse isso por si) e contra nós são usados argumentos religiosos, pseudocientíficos, de defesa da tradição, argumentos para justificar o aumento progressivo da dominação de nossos corpos, de nossas capacidades, de nossa vontade, de nosso peso político e econômico, de nossa presença, inclusive.

Mas esse é um imenso processo de luta política porque a resistência é enorme nos diversos aspectos da vida cultural e social, nas comunidades nas quais nossas lutas foram vitoriosas, onde os direitos foram conquistados e nossa organização tornou-se estruturada e consistente.

Em toda a história da humanidade não existe processo de ruptura política que não tenha contado com participação significativa – no mínimo – e, bastante frequentemente, com protagonismo das mulheres nessas lutas. A expulsão dos yankees do Vietnã ou a Revolução Russa, entre muitas outras que é possível citar, teriam sido impossíveis sem a atuação das mulheres em todos os âmbitos: de análise e estratégia política e militar, de atuação na manutenção da coesão social e organização política, na produção de alimentos e insumos e nas frentes de batalha.

Quando o movimento feminista internacional passa a afirmar categoricamente que a revolução socialista ou será feminista ou não será, compreendo que há três aspectos essenciais.

1. Numérico

Parece ridículo reafirmar, mas não é possível libertar a classe trabalhadora se mais de sua metade estiver acorrentada duplamente. E não luta pela libertação contra a exploração capitalista quem permanece acorrentada pelo machismo e pela misoginia. Sim, somente uma mudança qualitativa na intervenção das mulheres na organização da classe trabalhadora permitirá um aumento quantitativo na linha de frente e de retaguarda das mulheres na luta. Obviamente é sabido que não é a totalidade da classe que luta, mas não será possível a libertação sem participação dos seus segmentos constituintes. Assim como foi essencial a participação organizada de operários e camponeses, também foi e é essencial a participação de homens e mulheres.

2. Estratégico

Para o capitalismo as mulheres detêm um poder que sempre colocou em risco o sistema. E não somente o capitalismo, mas o feudalismo e qualquer outro modo de produção baseado na exploração e na luta de classes: a reprodução da população humana, no caso do capitalismo especificamente da força de trabalho. Esses sistemas sempre se dedicaram com afinco a domarem os corpos e comportamentos das mulheres porque a acumulação de capital (e as formas de dominação anteriores) dependem da exploração do trabalho humano e da natureza. É preciso – na construção e sustentação ideológica do capitalismo – manter as mulheres sentindo-se fracas e impedidas de participar das esferas públicas de decisão e organização, para que elas não possam usar do poder que têm em relação à produção e reprodução da força de trabalho[i].

O capitalismo não escolhe seus inimigos aleatoriamente. A dominação dos corpos das mulheres é uma exigência do sistema. Seguindo o mesmo raciocínio sobre o que torna os operários sujeitos políticos da revolução, é possível perceber que as mulheres também o são. Mais ainda, a luta pela superação do capitalismo e pela construção de uma sociedade socialista ou comunista precisa ser feminista ou a construção dessa sociedade jamais será efetivada.

É óbvio que nem todo feminismo é socialista, nem mesmo anticapitalista. Não se questiona isso. E o feminismo liberal pouco interessa à luta da maioria das mulheres porque quando consegue avanços, estes são restritos a poucas mulheres e costumam ser os mais frágeis diante do retrocesso. O que se sustenta aqui é que não é possível construir a superação do capitalismo sem a participação das mulheres e sem que a luta feminista seja parte constituinte da luta pela superação do capital[ii].

Nesse sentido não é mais possível admitir entre nós na esquerda os falsos argumentos de que a luta feminista é uma luta que atrapalha a construção do socialismo porque desvia o foco. Esse pseudoargumento demonstra uma falsa compreensão da realidade. Esses dois aspectos são inseparáveis, como o combate ao racismo é inseparável da luta por direitos e liberdade no Brasil e em tantos outros países, como em Israel. Outro pseudoargumento é que essa é uma luta identitária ou uma pauta de costumes, denotando uma enorme falta de compreensão da situação. Essa é uma luta de vida ou morte e é uma luta por poder. Esse é um dos aspectos da luta democrática, passo estratégico na luta pela superação do capitalismo.

Todos os ataques capitalistas aprofundam as contradições internas do capitalismo e de maneira mais incisiva e cruel atingem a vida das mulheres em todo o globo. A destruição do meio ambiente, impondo a falta de água potável e a dificuldade de produção local de alimentos para a subsistência, por exemplo, o aumento da fome e do desemprego, a fragilização de direitos previdenciários, o desmonte dos sistemas de educação, atenção à saúde e de assistência públicos, a retirada de direitos trabalhistas, entre muitos outros processos que vivemos, atingem mais duramente as mulheres.

Nós vivemos com salários menores, mas a maioria nem sequer tem salário ou emprego; nós estudamos mais e mesmo assim temos menos representação em cargos de direção; quando os homens idosos ficam sem assistência de saúde e previdenciária é uma mulher que abre mão do emprego pra cuidar dele e quando uma creche fecha é uma mulher que fica sem emprego ou abandona os estudos pra cuidar das crianças; quando falta água, são as mulheres que têm que andar até mais longe com latas na cabeça pra buscar água. Isso tudo sem parar de contribuir com a renda familiar: pejotização, precariado, uberização, terceirização, empreendedorismo de fachada.

Nada disso é novidade para os milhões de mulheres que plantavam e beneficiavam o que colhiam para vender, que trabalham em fazer doces ou costurar, que trabalham em casa com softwares ou vendas por revistas enquanto cuidam das famílias e lares, que trabalham com o setor de serviços sem contrato nem direitos (de manicures a representantes comerciais, de pedreiras a trabalhadoras domésticas, de pesquisadoras – estudantes de pós-graduação com bolsa às que trabalham no transporte de crianças etc.). As mudanças concretas na estruturação e formas de exploração da classe trabalhadora impõe mudanças táticas e estratégicas na superação do capitalismo e na construção do socialismo, não compreender o papel estratégico da luta feminista é impossibilitar a vitória dos explorados sobre os exploradores.

3. Tático

Atualmente, a importância fundamental da luta feminista contra o avanço do fascismo salta aos olhos. A luta feminista tem ganhado relevância em processos como o enfrentamento à eleição de Donald Trump, a luta contra a xenofobia, a defesa das nações invadidas pelo imperialismo, a luta contra os retrocessos nas pautas ambientais, a luta contra os golpes e a fragilização ou destruição das democracias burguesas, especialmente na América Latina.

Emergem grandes lideranças de mulheres e feministas (com suas particularidades e nem todas com perfil socialista) desde Malala, Ângela Davis (que não emergiu agora, mas ganhou muito destaque), Judith Butler, Chimamanda Ngozi Adichie, Gretha Thunberg, Patricia Arce, Alexandría Ocásio Cortéz, Theresa Kachindamoto, Juana Payaba, entre muitas outras. O capitalismo e o autoritarismo sabem tanto da importância que tem tratado de assassinar e encarcerar muitas delas, como Marielle Franco, Juana Ramirez Santiago, Daniela Carrasco, Farkhunda Malikzada, María Eugenia Choque Quispe, Khalida Jarrar, Ahed Tamimi entre literalmente milhares de outras.

Em 2017 aconteceu uma virada. O 8 de março, Dia Internacional de Luta das Mulheres, ganhou outra conotação. Diante de grandes atos feministas em muitas partes do mundo em 2016, destacando o ato das Argentinas contra o estupro e assassinato de uma jovem consagrando a campanha Ni Una a Menos, as imensas passeatas antiTrump nos EUA, os protestos contra a proibição ao aborto na Polônia e as manifestações de mulheres do Fora Cunha no Brasil, entre outras, foi feito um chamado pelo “8M Greve Internacional de Mulheres – se nossas vidas não importam, que produzam sem nós” de enfrentamento ao machismo, misoginia e patriarcado, de caráter clara e explicitamente anticapitalista (que costuma ser consenso sem debate, como um pressuposto dado e fácil pra todas as militantes) e na luta na defesa da vida e dos direitos das mulheres.

A partir desse chamado o movimento internacional de mulheres ganhou nova articulação e uma condição privilegiada de enfrentar o retorno do fascismo internacionalmente, seguindo o lema de Brecht de que se enfrenta o fascismo lutando contra o capitalismo. Não é por acaso que das maiores mobilizações no Brasil contra o golpe, Temer, o fascismo e a quebra da democracia que representa o Bolsonaro foram organizadas a partir do movimento de mulheres. Além do Fora Cunha, das lutas contra o golpe e das enormes mobilizações dos 8M de 2017, 2018M Tempo de Rebelião contra a Reforma da Previdência e 2019 8Marielle, ainda foi o movimento feminista que construiu o #Elenão e nas periferias é entre as mulheres que Bolsonaro tem votações bem menores.

No atual momento histórico é fundamental que a esquerda pare de colocar essa como uma questão secundária e, pelo contrário, priorize a participação de mulheres e, principalmente, a luta feminista como sua de conjunto.

Já faz tempo em que na maioria das organizações as mulheres aceitam cada dia menos o papel de coadjuvantes. Isso significa que nas lutas populares, nas ruas, nas redes e nas eleições a questão feminista tem que ser colocada no centro, a participação das mulheres tem que ser incentivada, garantida, fomentada, respeitada e com o devido protagonismo. Devia ser pelo simples reconhecimento que não podemos aceitar uma sociedade que mata pessoas porque elas nasceram mulheres, porque elas não aceitam ser propriedade de outras pessoas (o nome disso seria escravidão?), porque elas sofrem violências terríveis desde a mais tenra infância, porque é injusto que alguém tão competente não possa assumir os postos de direção pelo gênero que tem ou que mesmo tendo formação maior fique com a parte menor da riqueza que produz, sendo superexploradas. Mas é também porque sem nós mulheres será impossível conquistar a liberdade da classe trabalhadora, será impossível tomar os meios de produção. Por tanto repetimos, pedindo licença poética:

Trabalhadoras e trabalhadores de todo o mundo, uni-vos na revolução!

Revolução que será feminista ou não será!

Até que construamos o que Rosa de Luxemburgo no ensinou: “Um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.

*Elenira Vilela é professora e membro da direção nacional do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (SINASEFE).


[i] Não desconsidero o fato de que há homens trans que podem também participar da reprodução da humanidade. Mas, por um lado essa participação é estatisticamente pequena (dentre os homens trans são poucos os que decidem engravidar e é desse aspecto específico que tratamos). Por outro lado sabemos que desses processos de violência e ataques a população trans sofre ainda mais do que as mulheres cis em geral. E que as mulheres trans são parte do contingente de reprodução não engravidando e parindo, mas assumindo o trabalho de cuidado. Essa é uma população que precisa ser acolhida e protegida porque contra ela a violência aumenta significativamente e de maneira brutal. Mas isso exige um artigo inteiro para que possamos compreender a condição de vida dessas pessoas.

[ii] O conceito de interseccionalidade tem sido fundamental no movimento feminista, na compreensão que as mulheres não são todas iguais. A depender se cis ou trans, se hetero ou LBT, se negras, indígenas, árabes, ou brancas, se proletárias ou burguesas, se escolarizadas ou não, se urbanas ou camponesas, se periféricas ou não, se jovens, maduras ou idosas, se praticantes de religiões cristãs, muçulmanas, de religiões de matriz afro, ou ateias, se com deficiência ou não, se gordas ou magras, entre muitos outros aspectos sociais, econômicos e culturais sua vida como mulher, o tipo de opressão que sofrem e as possibilidades de viver com liberdade e dignidade se alteram substancialmente. Por isso não será suficiente combater o machismo, a misoginia e o patriarcado, mas também é necessário o enfrentamento ao racismo, a LBTfobia, o capacitismo, o preconceito religioso, a credonormatividade, a gordofobia e toda e qualquer forma de opressão.

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