A pedagogia da baderna

Imagem: Manifesto Coletivo
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO*

A construção do 8 de janeiro foi um processo que se deu ao longo não de dias ou de semanas, mas de anos

Se a posse para o terceiro mandato de Luis Inácio Lula da Silva representou simbolicamente o início de um processo de reconstrução nacional, pautado pela diversidade e a tentativa de enfrentamento das desigualdades estruturais que caracterizam o país, o domingo seguinte, no dia 8 de janeiro, foi a encenação do caos, da desordem e da destruição das instituições, da cultura e da democracia. Agora é preciso perguntar: quem fez isso, com qual propósito, em nome de qual objetivo, para que se possam apurar as responsabilidades políticas e as responsabilidades criminais do que ocorreu.

A construção do 8 de janeiro foi um processo que se deu ao longo não de dias ou de semanas, mas de anos. Figuras como Olavo de Carvalho, jornalistas obscuros e integrantes das castas mais altas da burocracia do Estado, como juízes, promotores e oficiais das Forças Armadas, cumpriram papel fundamental para a construção da narrativa iliberal,[i] ganhando corações e mentes para a cruzada contra instituições que estariam corroídas pelos males da modernidade e vulneráveis à ameaça comunista.

Surgida no período dos governos de Lula e de Dilma Rousseff, essa vertente ideológica se conecta, de um lado, com uma onda mundial de reacionarismo antimoderno, que leva ao poder autocratas interessados em minar as bases da democracia liberal, acabando com o equilíbrio entre os poderes, a liberdade de imprensa e a alternância no poder, com o apoio militante de economistas neoliberais. De outro, com vertentes tradicionais do pensamento político brasileiro, como o integralismo fascista e o positivismo militarista presente nas Forças Armadas desde sempre.

Por injunções históricas e senso de oportunidade aguçado, Jair Bolsonaro se tornou o representante deste movimento no Brasil, dando a ele características ainda mais sombrias, como a associação com milícias urbanas, policiais corruptos e violentos e produtores rurais e garimpeiros interessados no desmatamento e na rapina de áreas indígenas e de preservação ambiental. O que melhor representa a heterogeneidade destes apoios é a defesa do armamento da população civil, caminho para a dilapidação da ideia de comunidade e a afirmação de uma ideia de liberdade elevada a princípio absoluto e inegociável.

A transformação deste conjunto de questões em ideário e movimento se deu com a utilização das mídias sociais, com cursos online, produtoras de conteúdo audiovisual, comunicadores monetizados pela combinação de algoritmos com radicalização política, tudo potencializado com a constituição do famoso “gabinete do ódio”.

Acrescente-se a tudo isso o papel da imensa rede de templos neopentecostais nos quais a militância política de extrema direita se tornou prioridade, demonizando a esquerda e consolidando a “agenda de costumes”, e já temos a conformação de um campo capaz de influenciar milhões de eleitores, e até de mobilizar alguns milhares para se manterem atuantes, mesmo após a derrota eleitoral, acampados em frente a quartéis amistosos e prontos para uma cruzada contra o Tribunal Eleitoral, o STF, o novo Presidente, o Congresso Nacional e a imprensa livre, todos “contaminados” pelos vírus da corrupção e do comunismo.

Jair Bolsonaro apostou desde sempre na narrativa da fraude eleitoral, que permitiria virar a mesa em caso de derrota. Mas apostou também em ganhar a eleição, aparelhando o Estado (vide Polícia Rodoviária Federal), comprando votos (auxílio emergencial, redução do preço dos combustíveis, auxílios direcionados a caminhoneiros etc.), e disseminando mentiras e desinformação via redes sociais e aplicativos de mensagem.

O dia 8 de janeiro, que irá para a história como o dia da infâmia (ou a revolta dos manés) mostrou até onde pode chegar a radicalização e a barbárie. Se sobressaíram entre os até agora fichados pela polícia homens e mulheres de meia-idade, parte deles com condenações criminais, militares reformados e policiais aposentados, trabalhadores autônomos de áreas rurais, pequenos empresários, etc. Ou seja, representantes de um lumpenbolsonarismo com muito pouco a perder, e muito a ganhar em caso de uma sublevação bem-sucedida.

Se mais nenhuma alternativa teve qualquer viabilidade no processo eleitoral, apesar dos vários chamamentos por uma “Terceira Via”, e Lula se consolidou e venceu apesar de tudo, é porque era o único que podia contrapor às narrativas do ódio e do individualismo bolsonarista a narrativa de uma vida pública: o nordestino pobre que foge da miséria e faz a vida em São Paulo, ingressa na militância sindical e assume a liderança na construção do maior partido de esquerda da América Latina, chega por duas vezes à Presidência, com governos de coalizão marcados pelo crescimento econômico e a distribuição de renda, elege a sucessora, depois impedida por um golpe parlamentar, é acusado, julgado e condenado por um juiz parcial, vai preso sem provas e sem trânsito em julgado, fica um ano na prisão e é liberado pelo reconhecimento na nulidade do processo. As críticas e dificuldades das gestões petistas não foram suficientes para desmerecer uma trajetória como essa, e em torno dela se construiu a grande frente democrática, com partidos e sociedade civil, para enfrentar a deriva autoritária.

Necessário destacar o papel do Tribunal Superior Eleitoral, e especialmente de seu presidente, ministro Alexandre de Moraes, tanto na viabilização do processo eleitoral regular, derrubando a desinformação, sempre que identificada, a pedido dos partidos de oposição, monitorando e punindo as lideranças da desinformação nas redes, garantindo uma resposta rápida e eficaz para a redução dos danos dos métodos ilícitos de campanha. E depois da eleição, viabilizando a posse dos eleitos e rechaçando a chicana de pedidos como o do PL, para a invalidação de milhares de urnas eletrônicas, sem qualquer prova ou critério. Fundamentando as decisões, a tese da democracia militante para o enfrentamento da ameaça autoritária.[ii]

Depois do 8 de janeiro, foi graças à intervenção federal na segurança do DF e às decisões do ministro Alexandre de Moraes que os baderneiros golpistas foram presos e passaram a responder processo criminal, entre os quais o ex-ministro da justiça de Jair Bolsonaro, e então secretário de segurança do DF, o delegado de polícia federal Anderson Torres, que depois se veio a saber, graças ao deferimento do pedido de busca e apreensão da Polícia Federal, que guardava em sua casa a minuta da institucionalização do golpe, pronta para a assinatura do agora ex-presidente.

A resposta à tentativa de golpe de Estado, cada vez mais caracterizada, porque envolvia não apenas a destruição de prédios em Brasília, mas a inviabilização do governo eleito, envolve questões de curto, médio e longo prazo, e a ação dos três poderes e da sociedade civil. Mas há um caminho central em torno do qual a resposta terá que ser dada: instituições funcionando e cumprindo o seu papel, sistema de pesos e contrapesos, autonomia dos mecanismos de controle, recomposição de protocolos e cadeias de comando nas polícias militares e nas Forças Armadas.

Não teremos uma ampla reforma ou uma refundação das polícias ou do Exército, e sim uma concertação em torno de padrões profissionais e burocráticos de funcionamento em democracia. Não há outro caminho, apesar das ilusões voluntaristas que sempre surgem nestes contextos. Não serão alteradas mentalidades arraigadas. O que se espera é que condutas de sublevação e apoio à desordem dentro das forças de segurança e defesa sejam sancionadas, dentro da lei.

Para tanto, importante destacar o papel que vem cumprindo o ministro Flávio Dino, que se de um lado foi iludido e sabotado pela secretaria de segurança pública do Distrito Federal nos atos do dia 8 de janeiro, de outro agiu rapidamente para propor ao Presidente a intervenção federal poucas horas depois do início da baderna, e desde então vem atuando com equilíbrio e moderação na condução da crise. A escolha política da manutenção da Justiça e Segurança Pública em uma mesma pasta ganhou maior solidez, como bem argumenta Fábio Sá e Silva em recente publicação,[iii] não por ser a melhor opção técnica, mas pela importância política de um Ministério da Justiça robusto para a condução dos primeiros meses de governo em terreno minado pelo golpismo e a contaminação das polícias.

No momento em que as práticas de subversão da verdade permitem a um ex-presidente fomentar o golpe nas redes e declarar que nada tem a ver com isso na imprensa, em que a tradição de criminalização da vítima é atualizada por um governador de estado que insinua que o governo federal deixou de agir para evitar a baderna e utilizá-la em benefício próprio, em que “garantistas de ocasião” se apresentam em artigos na imprensa para oferecer seus serviços jurídicos aos golpistas ameaçados pela prisão e a responsabilização criminal, e em que as redes bolsonaristas se dividem entre o aplauso envergonhado à baderna e a culpabilização de “esquerdistas infiltrados”, é preciso renovar o compromisso democrático, com a defesa do devido processo contra os golpistas e da recomposição das relações institucionais entre as forças de segurança e defesa e o governo civil.

Afinal, nos mares agitados pelo ascenso do fascismo e pela crise dos ideais civilizatórios, nada mais necessário do que amarrar-nos aos mastros da institucionalidade democrática e afirmar mais uma vez: não passarão!

*Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, sociólogo, é professor da Escola de Direito da PUC-RS.

Notas


[i] Democracia iliberal, democracia de baixa intensidade, democratura ou democracia guiada, é um sistema de governo no qual, embora eleições ocorram, os mecanismos de controle sobre as atividades daqueles que exercem poder executivo são minados, por conta da falta de liberdades civis e da quebra do equilíbrio entre os Poderes. Em um discurso de 2014, após a reeleição, Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, descreveu o futuro do seu país como um “Estado iliberal”. Na sua interpretação, o “Estado iliberal” não rejeita os valores da democracia liberal, mas não os adota como elemento central da organização do Estado.

[ii] Atuação de Moraes põe à prova tese da democracia militante – 20/11/2022 – Poder – Folha (uol.com.br)

[iii] Lula evita ministério-quartel com Justiça e Segurança juntas (theintercept.com)

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
João Lanari Bo Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Adolfo Hansen Chico Whitaker Samuel Kilsztajn Lorenzo Vitral Fábio Konder Comparato Manchetômetro Henri Acselrad Benicio Viero Schmidt Anselm Jappe José Machado Moita Neto Fernão Pessoa Ramos João Feres Júnior Gilberto Maringoni Tadeu Valadares Eduardo Borges Lincoln Secco Berenice Bento Marcus Ianoni Tarso Genro Priscila Figueiredo Eugênio Bucci Tales Ab'Sáber Carlos Tautz Ronald León Núñez Plínio de Arruda Sampaio Jr. Osvaldo Coggiola Vanderlei Tenório Ari Marcelo Solon Leonardo Sacramento Ricardo Fabbrini Ricardo Abramovay Matheus Silveira de Souza Michael Roberts Marjorie C. Marona Yuri Martins-Fontes Daniel Brazil Rodrigo de Faria André Márcio Neves Soares Denilson Cordeiro Paulo Capel Narvai Milton Pinheiro Paulo Fernandes Silveira Airton Paschoa Francisco de Oliveira Barros Júnior Paulo Sérgio Pinheiro Antonio Martins Ricardo Musse Otaviano Helene Alexandre de Lima Castro Tranjan Caio Bugiato Elias Jabbour Vladimir Safatle Flávio Aguiar Luiz Roberto Alves Henry Burnett Luiz Renato Martins Annateresa Fabris Luis Felipe Miguel Liszt Vieira Carla Teixeira Luiz Carlos Bresser-Pereira Armando Boito João Paulo Ayub Fonseca José Micaelson Lacerda Morais Vinício Carrilho Martinez Atilio A. Boron Ricardo Antunes Bernardo Ricupero Fernando Nogueira da Costa Ronald Rocha Paulo Nogueira Batista Jr Jean Marc Von Der Weid Igor Felippe Santos Claudio Katz Chico Alencar Sandra Bitencourt Francisco Fernandes Ladeira Flávio R. Kothe Manuel Domingos Neto Jean Pierre Chauvin Bruno Machado Eleutério F. S. Prado Andrew Korybko Gabriel Cohn Daniel Costa Rafael R. Ioris Antônio Sales Rios Neto Jorge Branco Luiz Werneck Vianna João Sette Whitaker Ferreira Everaldo de Oliveira Andrade Leda Maria Paulani Luiz Eduardo Soares Michael Löwy Marilena Chauí Julian Rodrigues Walnice Nogueira Galvão Afrânio Catani Paulo Martins Leonardo Boff Juarez Guimarães Luís Fernando Vitagliano Antonino Infranca Marcos Silva Dênis de Moraes Rubens Pinto Lyra Lucas Fiaschetti Estevez Jorge Luiz Souto Maior Valerio Arcary Eleonora Albano José Costa Júnior Sergio Amadeu da Silveira José Luís Fiori Renato Dagnino Alexandre de Freitas Barbosa Érico Andrade Luiz Bernardo Pericás Mariarosaria Fabris Salem Nasser Eliziário Andrade Andrés del Río Leonardo Avritzer Eugênio Trivinho Celso Frederico Marcelo Módolo Remy José Fontana Kátia Gerab Baggio Ladislau Dowbor Boaventura de Sousa Santos José Raimundo Trindade André Singer Dennis Oliveira José Dirceu João Carlos Loebens Luiz Marques Ronaldo Tadeu de Souza Alysson Leandro Mascaro Michel Goulart da Silva Thomas Piketty Marcelo Guimarães Lima Alexandre Aragão de Albuquerque Marilia Pacheco Fiorillo Gerson Almeida Alexandre Juliete Rosa Luciano Nascimento Maria Rita Kehl Mário Maestri Daniel Afonso da Silva Bruno Fabricio Alcebino da Silva Celso Favaretto Bento Prado Jr. Slavoj Žižek Heraldo Campos José Geraldo Couto Marcos Aurélio da Silva Francisco Pereira de Farias Gilberto Lopes João Carlos Salles

NOVAS PUBLICAÇÕES