Por MARCIO LUIZ MIOTTO*
A intenção inicial do Facebook era publicitária e não política. Mas o instrumento foi cada vez mais utilizado para propósitos políticos
Quem acompanhou as últimas eleições não deixou de ver a emergência de uma figura curiosa, que no Brasil passou a ser chamada de “tio do WhatsApp”. O “tio” é por vezes uma pessoa comum, daquelas cuja transição do analógico para o digital talvez não tenha sido bem resolvida. Muitos são aqueles personagens que outrora precisariam de um celular com teclas grandes, ou ainda caíam no “gemidão do WhatsApp“.
Outros, vitimados com certa facilidade em golpes de phishing (que exigem a capacidade de distinguir entre links e sites autênticos e falsos), julgam-se capazes de considerar verdadeiras notícias que logo depois são comprovadas falsas. Mas não obstante a falsidade das notícias que vincula, o “tio” efetivamente ajudou a tecer nos últimos anos uma incrível rede de narrativas as quais, se são falsas, ocasionaram efeitos muito concretos.
O “tio do WhatsApp” (o termo independe de gênero ou idade) é em geral pessoa tida como confiável, trabalhadora, portando certos valores morais ou autoridade familiar. Como tal, ele é inserido numa rede de outras pessoas confiáveis. A confiabilidade é o que garante, em boa parte, a credibilidade da mensagem. E se o “tio” não é produtor da mensagem, ao menos é seu difusor, e difunde conteúdos geralmente considerados verossímeis – logo, também confiáveis – antes que o desmentido chegue (isso se o desmentido chegar). Ele é quem, nos últimos anos, alertou as famílias sobre falsidades como as “conspirações chinesas” que levaram à proliferação do Coronavirus, a importância do “tratamento precoce” ou o “perigo da esquerda” contra um certo “mito” supostamente ungido por Deus. Ele é quem soube multiplicar mensagens, muitas delas criadas por terceiros, mas na medida exata para que o “tio” julgasse realizar tudo por si próprio.
Mas a despeito desses estereótipos todos, é importante compreender que tais posições carregam uma função precisa. Se a figura do “tio do whatsapp” em países como o Brasil é novidade, a função que essa figura realiza não é nova. Ela já era prevista pela história da publicidade e das campanhas eleitorais, embora jamais fosse realizada, ao menos até a década de 2010.
Martin Moore, no livro Democracia hackeada, analisa como as redes sociais contribuíram para a crise das democracias contemporâneas. Dentre outros argumentos, ele apresenta ali um problema das campanhas eleitorais já enfrentado em pesquisas das décadas de 1930-1950, mas cujo desfecho foi indiretamente realizado pelo Facebook (empresa que é dona do WhatsApp).
Moore cita para isso duas pesquisas. A primeira, de Harold Lasswell (Propaganda Technique in the World War, de 1927), foi realizada ao fim dos anos 1920. Ela comprovaria que a opinião pública é essencialmente flutuante, suscetível a qualquer tipo de mídia como “um marisco a flutuar indefeso e alheio a tudo, na esteira dos navios de guerra britânicos” (Moore, p. 172)). No contexto dessas declarações figurava o rádio e o medo de que transmissões apócrifas pudessem induzir as multidões.
Mas a segunda pesquisa, encabeçada por Paul Lazarsfeld (The People’s Choice: How the Voter Makes Up His Mind in a Presidential Campaign, de 1948), chegou a resultados diversos e inesperados. Conforme comenta Martin Moore, “Lazarsfeld, Berelson e Gaudet descobriram que a visão política das pessoas não era, como pensavam seus contemporâneos, muito modificada pelo que liam ou ouviam na mídia. Amigos, familiares e colegas – em outras palavras, a rede social – as influenciavam bem mais. A sugestão pessoal é mais difusa e menos autosseletiva que a mídia formal”, escreveram os pesquisadores. “Ou seja, a política atinge, em especial no caso dos indiferentes, com muito mais facilidade por meio de contatos pessoais que de qualquer outro modo, pelo simples fato de que se apresenta inesperadamente como um assunto secundário ou marginal em uma conversa descontraída” (Moore p. 173).
Em suma: a publicidade política ou eleitoral mais eficiente não ocorreria de cima para baixo, entre a campanha e o eleitor, e sim horizontalmente, entre os próprios eleitores; além disso, numa campanha bem sucedida o caráter natural, informal e cotidiano da comunicação entre eleitores afastaria, camuflaria a presença da campanha política como agente inicial e desencadeante; finalmente, na relação entre eleitores, o distanciamento da campanha ocasionaria uma impressão de autonomia, liberdade e auto-descoberta.
Disso, um agente publicitário que conseguisse utilizar não apenas uma mensagem vertical, mas a fizesse circular na capilaridade das relações pessoais, e mesmo sob a impressão de que cada difusor seria agente (e não paciente) da própria mensagem, conseguiria encontrar a galinha dos ovos de ouro da publicidade. Uma publicidade capilar e que conseguisse apagar a figura do publicitário, encarnada em múltiplas pessoas confiáveis, seria a melhor publicidade possível.
A pesquisa de Paul Lazarsfeld supunha, com isso, um segundo resultado: dentro dessas relações horizontais, na difusão das mensagens haveria pontos focais, clusters de mensagens, representados por pessoas que, mais informadas do que as outras, seriam encaradas como mais confiáveis. Essas pessoas foram denominadas por Lazarsfeld et alli. como “líderes de opinião” (Moore 2022, 173). A melhor publicidade, portanto, não seria apenas aquela que conseguisse circular horizontalmente (e conseguindo apagar, ou ao menos borrar a figura vertical da campanha política), mas também aquela que conseguisse angariar o máximo possível de “líderes de opinião”.
Tais achados – ainda comenta Martin Moore – permaneceram sem aplicação efetiva, uma vez que, até a virada do século XX, não havia um equipamento que fizesse uma campanha ultrapassar o vínculo vertical com o eleitor e atingir seus filtros horizontais, des-hierarquizados e informais, especialmente entrevistos nos “líderes de opinião”. Mas o ponto de virada foi o das redes sociais, e não só: trata-se das redes sociais baseadas em big data e segmentação a partir dos anos 2010, seguindo as maneiras do Google investir em publicidade (focada em cookies que recolhem as ações do usuário), tendo como modelo maior de implementação o Facebook e o modo como passou a recolher e utilizar os dados de seus usuários. O Facebook, como plataforma de recolhimento de dados e de ultra-segmentação, tornou possível modelos de publicidade cuja segmentação não atingia apenas o usuário, mas também localizava “líderes de opinião”.
Como se sabe, a intenção inicial do Facebook era publicitária e não política. Mas o instrumento foi cada vez mais utilizado para propósitos políticos. Pessoas que interagem (clicam, curtem, compartilham etc.) com certo conteúdo (link, mídia etc.) tornam possível a circulação desse conteúdo para outras pessoas, independente da existência de um emissor inicial. Tem-se, conforme Martin Moore dizia acima, precisamente a criação de uma circunstância marginal, secundária, descontraída, em suma, uma circunstância organicamente inserida nas relações naturais e espontâneas entre as pessoas que utilizam o instrumento.
Figuras como a do influenciador digital, e também a do “tio do whatsapp“, tornam-se possíveis precisamente sob essa arquitetura. Uma posição de influência – seja qual for – não é importante apenas para gerar e manter o engajamento de outros na plataforma, mas também para difundir temas sob filtros horizontalizados. Eis a invenção de um lugar, que dentre outros é ocupado pela figura do “tio”: este participa de campanhas coordenadas, produz ou difunde conteúdos, recruta ou cancela pessoas, organiza grupos, realiza ataques ou defesas orientadas, enfim, ajuda a costurar uma narrativa geral que pode ser até imune aos fatos.
O “tio” recebe o conteúdo de terceiros e ajuda a filtrá-lo, ele o endossa, torna-o confiável para os próximos sob seu próprio imprimatur. Sob tais posturas, a figura do político é apagada, podendo dar lugar a temas como o da “liberdade de expressão” e o dos complôs da esquerda que dominaria a imprensa e tentaria “censurar” as mídias sociais. Sem essa função, seria impossível ver fake news como a da prisão de Alexandre de Moraes ocasionarem resultados tão efetivos: pessoas choravam, pulavam de alegria ou gritavam, mobilizados por uma notícia que, embora vinda de gente confiável, era falsa.
Como se sabe, o Facebook comprou o WhatsApp por uma série de motivos: ampliar o alcance para além dos computadores e rumo aos smartphones, avançar sobre mídias alternativas (ocorreu o mesmo com a compra do Instagram) e aprimorar o recolhimento de big data. Sob esse contexto, o WhatsApp permite cobrir ainda mais as interações entre os usuários. Não é à toa, nisso, que campanhas bem orientadas que permitam compartilhar informações não apenas entre usuários, mas a partir de “líderes de opinião” (influencers, “tiozões” etc.), são melhor sucedidas que as outras.
Na composição dessa maquinaria há muitos outros detalhes importantes (tais como o cultivo de fazendas de trolls, de assédio orientado, de coordenação entre ativistas e bots etc.). Mas um fator fundamental é a criação de uma ou mais plataformas nas quais todos esses meios permitem a comunicação horizontalizada. As táticas horizontais e aplicadas em líderes de opinião permitem executar estratégias que apagam a presença de agentes políticos e garantem maior eficácia da campanha.
*Marcio Luiz Miotto é professor de psicologia na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Referência
Martin Moore. Democracia hackeada. São Paulo, Ed. Hábito, 2022.
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