Douglas Germano – a tempestade e o mar

Ivor Abrahams, Caminhos III, 1975
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Por VITOR MORAIS*

Comentário sobre a produção musical do sambista paulista.

“Os gêneros de música urbana reconhecidos como mais autenticamente cariocas – a marcha e o samba – surgiram da necessidade de um ritmo para a desordem do carnaval” (José Ramos Tinhorão, Pequena História da Música Popular, p. 139).

“O problema da linguagem é um problema de consciência que substitui o conceito ufanista de nacionalismo romântico. Esta linguagem não se faz de hora para outra da mesma forma que a consciência do Brasil ainda não atingiu um nível que se permita conceituar nossa civilização. Mesmo que aspectos sociais, econômicos e políticos já sofram conceituação mais precisa, isto não quer dizer que estes dados sejam suficientes para se formular uma ‘civilização brasileira’. O cinema, inserido no processo cultural, deverá ser, em última instância, a linguagem de uma ‘civilização’” (Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, p. 99).

 

1.

Até onde reza a lenda, durante um show de Johnny Alf na boate Cave, então localizada na rua da Consolação, o poeta Vinícius de Moraes teria vaticinado: “São Paulo é o túmulo do samba”. Que a afirmação não possuía beira nem eira não são precisas muitas explicações. Acontece que por detrás da suposta colocação de Vinícius de Moraes há um indício geográfico claro: o Rio de Janeiro é onde o samba se realiza plenamente.

Isso, constatado há tantos por tantos, quer pelas razões históricas, quer pelas sociais, parece se confirmar à medida que no Rio o samba, gênero sempre em transformação e atento às dinâmicas de seu tempo, desdobrou-se em outros tão populares como o pagode e o funk. O que não se esperava era que em meio de uma equação tão bem resolvida como essa, surgisse um paulista, natural da capital, mas que cresceu na periférica Poá, a fazer os melhores sambas dos últimos tempos. Seu nome? Douglas Germano.[i]

Já faz alguns anos, é verdade, que a cena cultural da cidade de São Paulo vê florescer uma valiosa nova leva de cantautores, a ponto de muita gente falar em vanguarda. Gente como Juçara Marçal, Kiko Dinucci, Thiago França, Rodrigo Campos, Rômulo Fróes e… Douglas Germano. Sim, um sambista em meio à dita vanguarda. Douglas Germanof az questão, contudo, de se colocar à parte: “Se a gente se encontrar todo mundo se abraça, mas eu não faço parte”.[ii] É curioso analisar a sonoridade dos nomes acima elencados e compará-los aos de Douglas Germano, e não digo isso para alimentar díades de outrora, senão para potencializar seu trabalho realmente exímio.

Vejamos. Em seu seminal Getúlio da Paixão Cearense, José Miguel Wisnik aponta: “a conjugação entre o nacional e o popular na arte visa à criação de um espaço estratégico onde o projeto de autonomia nacional contém uma posição defensiva contra o avanço da modernidade capitalista, representada pelos sinais de ruptura lançados pela vanguarda estética e pelo mercado cultural”[iii]. Não quero com essa citação colocar Douglas Germano como um artista nacional-popular, denominação espezinhada pela razão tropicalista que vigorou no Brasil dos anos 1960 até a hecatombe bolsonarista[iv], mas me parece claro que há um ponto de distanciamento a justificar sua própria colocação, à parte do grupo.

A situação fica mais curiosa quando vemos que Douglas Germano, o qual já havia sido gravado anos antes pelos “Os originais do samba”, teve seu primeiro trabalho de fôlego gravado junto de Kiko Dinucci no Duo Moviola, em 2009. Douglas Germanoh abita a mesma cena dos supracitados, faz shows pelos Sescs, Casa de Francisca, participa até de alguns projetos junto, mas sua obra está deslocada ali. O motivo que encontro para essas questões todas é a seguinte: Douglas Germano é um sambista por excelência.

 

2.

Disso caímos em outra discussão, na qual pretendo ser mais breve: que é o samba? A genealogia que proponho acompanha José Ramos Tinhorão e o já citado José Miguel Wisnik. Segundo Tinhorão, o samba nasce da mistura do choro com o maxixe, este por sua vez derivado da polca, quando a arraia miúda da sociedade carioca decide se afirmar socialmente após a abolição da escravidão em 1888.[v] José Miguel Wisnik aponta que esse processo, cujo nascimento mitológico residiria na composição coletiva (depois assumida unicamente por Donga) do samba “Pelo telefone” na casa de Tia Ciata, vinha carregado de suas idas e vindas.

Valendo-se de uma metáfora lançada por Muniz Sodré em Samba, o dono do corpo, para o qual a casa de Tia Ciata era constituída de biombos culturais, José Miguel Wisnik explorará a conjugação do samba praticado no quintal da casa, entre o salão de baile e o terreiro de candomblé, com os meios de difusão em expansão à época, sobretudo o rádio, cujas primeiras emissões no Brasil datam de 1922.[vi]

Esse gênero, portanto, que nasce marginalizado, anseia por se entronizar socialmente como maneira de empoderar corpos e mentes para revolucionar o mundo estabelecido. Só que o mundo em que nasce também se revolucionava com a emersão do Estado varguista em 1930, em um processo de modernização conservadora. Daí que o samba passe a exercer uma relação ambígua entre poder e marginalidade: de um lado a necessidade de ancorar-se no projeto de tutela autoritária de Vargas, endossando o trabalho como ente supremo para sobrevivência própria; de outro, a recusa a esse processo, valorizando a malandragem como elemento definidor do cidadão precário, sujeito do samba.[vii]

Esse conflito nos remete por fim – é inevitável – ao estudo de Antonio Candido Dialética da malandragem, em que, ao analisar o romance de Manuel Antônio de Almeida Memórias de um sargento de milícias, aponta para o sujeito que vive entre o mundo da ordem e da desordem. Esse ser flanante habitaria o “mundo sem culpa”, assim caracterizado: “As pessoas fazem coisas que poderiam ser qualificadas como reprováveis, mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam. E como todos têm defeitos, ninguém merece censura”.[viii] Espaço esse, que terá no carnaval seu êxito maior, justamente aquele em que o samba aflorará, e que colocará no limite – como ninguém – as diatribes acima elencadas entre o endosso ora da marginalidade ora a aceitação do trabalhismo; afinal, “o malandro é um traidor em potencial”,[ix] dado que a sobrevivência está acima da ideologia.

 

3.

Dito isso, voltemos para Douglas Germano. Afinal, esse é seu mundo. Só que não é o de quem o consome – vide as duras declarações na entrevista supracitada para Pedro Alexandre Sanches –, o que leva a uma dupla contradição sobre o sentido do samba na atualidade. E isso diz muito sobre o samba de Douglas Germano. Seus dois trabalhos de maior fôlego são os álbuns Golpe de Vista (2016) e Escumalha (2019). No primeiro, a introspecção de quem acaba de ser derrotado; no segundo, o corpo erguido para a batalha de vida ou morte. E é justamente na introspeção do primeiro que podemos encontrar respostas para as contradições que o afligem.

Golpe de Vista é um disco para dentro, que se contrapõe à pulsão de vida de seu anterior, o belíssimo Orí (2011), lançado unicamente de maneira virtual por questões orçamentárias. Mas como diz o próprio título, o golpe sofrido meses antes – o álbum é de outubro de 2016 – é uma questão de ponto de vista, e não se trata de negar a gravidade da situação, senão de apontar caminhos, organizar as ideias, para enfrentar o dia que se anuncia. E nisso o samba metalinguístico possui papel fundamental. São várias as composições de Golpe de Vista que tratam dessa questão, e ela desdobra-se, até onde vejo, noutro ponto que dialoga com o segundo movimento desse escrito: qual o papel do samba numa hora de agonia?

Walter Benjamin nos ensina que para a tradição dos oprimidos o “estado de exceção” seria nada mais que a normalidade.[x] Se não estou errado, o samba é justamente o gênero por excelência dessa tradição que já vem acostumada com ferro e fogo cotidianamente. Ele permite sobreviver a ela e à medida que a denuncia permite esperançar um paradigma de transformação social para sua comunidade (noção essa fundamental para se pensar o samba).

Daí que num momento de abalo, denote-se essa radical transformação estética na obra de Douglas Germano entre o estreante Orí e o para dentro Golpe de Vista. O dilema, que acompanha a complexa relação entre a intelligentsia musical tropicalista e a indústria cultural, sobre o que fazer de um gênero que os tropicalistas condenaram à morte quarenta e poucos anos antes;[xi] a angústia em relação à perda do poder de criação musical pelas classes populares (que Tinhorão desde tão cedo denunciou); o desespero ante à alienação do povo, consequência direta do fenômeno da reificação capitalista do fetiche da mercadoria, notado tão antes por Lukács em História e consciência de classe.[xii]

Tudo isso despenca em Golpe de Vista. Na faixa que fecha o álbum, “Lama”, originalmente defendida por Adriana Moreira em festival da TV Cultura, o dilema assim aparece, sob a instrumentação reduzida de violão e caixa de fósforos: “Um samba que fale das coisas do mundo / Um samba que ninguém precisa explicar”. Este samba tão metalinguístico de Douglas Germano expõe o impasse, o que deve ser feito em matéria de forma, mas ainda não se consegue pelo golpe sofrido. É antes um aviso misturado com desejo.

A coisa se escancara em “Cansaço”: “Cansei / Mas quem não vai se cansar / Vendo tudo terminar / Sem nem ter começado / Sem nem ter resistido / Sem se quer um passado / E o futuro guardado / Com quem quer nos guiar”. A falência do país do futuro dos anos lulistas anunciada de maneira sublime. Este, o mote de Golpe de Vista, preparar o terreno para a resistência, encontrar a forma para a denúncia das espoliações: “Meu samba não é de lamento / É muito mais de atormentar” (Golpe de Vista). “Meu samba é um golpe de vista / Termina onde quer começar / Meu samba é ruim da cabeça / Meu samba até manca pra andar”. Sobra até para Jesus em “Zeirô, Zeirô”, profético em relação ao fundamentalismo religioso dominante nas periferias do país e sua negação cristã da doutrina do Cristo.

Entremeando tudo isso, Golpe de Vista lança mão de um sofisticado programa de resistência às tendências progressistas e liberais daquele momento, sem soar atrasado.[xiii] Duas canções são significativas nesse aspecto: “Canção para ninar Oxum”, gravada também por Juçara Marçal em seu emblemático “Encarnado” (2014), e “Maria de Vila Matilde”, que entrou no disco mais importante, em termos estéticos e de difusão, da nova cena paulista, o “Mulher do fim do mundo” (2015), de Elza Soares. Se a primeira acalenta a entidade derrotada – “Chora não, Oxum / De quê, chorar” – a segunda propõe uma ruptura paradigmática em relação à violência contra a mulher, mas sem entrar em pormenores identitários. Afinal, a comunidade do samba está acima da comunidade identitária e é preciso união entre seus entes para superar as feridas amiúde expostas pelo mundo sem culpa, nosso veneno remédio.[xiv]

Na mesma entrevista a Pedro Alexandre Sanches supracitada, Douglas Germano comenta a relação entre sua canção “O que se cala”, gravada por Elza Soares em Deus é Mulher (2018) e a ascensão do identitarismo nas tribos culturais da esquerda (liberal? Tropicalista? Pós-moderna?): “… uma coisa completamente contra o identitarismo, mas o identitarismo absorveu a seu favor… porque as perguntas todas que faço ali vão no sentido contrário. Eu já começo com ‘pra que separar?/ pra que desunir?/ por que só gritar?/ por que nunca ouvir?’. São perguntas que seriam diretamente voltadas para as instâncias de poder, não entre nós. Se a gente não perceber que está todo mundo no mesmo barco, que tem que fechar e juntar contra uma coisa que é maior, contra esse capitalismo absurdo que joga todo mundo nessa objetificação, vai chegar um momento em que eu vou ficar sozinho num quadrado, no quadrado dos carecas, reclamando o meu reconhecimento. A música ia se chamar originalmente ‘Lugar de Fala’, mas eles acharam melhor não”.[xv] Reforço que a análise deve ser feita tendo em vista a coesão na comunidade do samba, que por sua vez se coloca enquanto nacional, e não como um endosso ao mito da democracia racial, tão cara aos tropicalistas e cuja relação ainda está por ser estudada.

 

4.

Isto porque o que incomoda Douglas Germano não é uma questão de identidade senão de classe. Essa percepção de que o samba se encurralou, que os melhores sambistas de uma geração são consumidos pela elite cultural do país em espaços requintados inacessíveis àqueles para os quais destinar-se-ia em origem preocupa Douglas Germano. Afinal, é como se o samba tivesse deixado de ser samba sem a pulsão de vida das populações que foram, junto à evolução da modernidade capitalista, trocando o samba ente de resistência pelo samba integrado, que depois se desdobraria no pagode integrado.[xvi] (Parêntesis: esse dilema foi magnificamente explorado no longa-metragem Curtas jornadas noite adentro, de Thiago Mendonça: o cinismo dos eruditos intelectuais no trato com os sambistas; a necessidade de fazer samba em um espaço estrangeiro porque é, afinal, o que restou de público; a criminalização do gênero que teima em se fazer existente pelas forças de coerção e tutela policial, as quais enxergam no samba atitudes de ócio, anti-trabalho, o que não deixa de ser verdade. Tudo isso está no filme de Thiago Mendonça[xvii]).

Todas preocupações que levam ao limite a tensão na obra de Douglas Germano quando se coloca como realidade a ascensão da extrema direita no país. A resposta aos impasses de Golpe de Vista tenta ser dada, com sucesso eu diria, no grande disco de Douglas Germano, Escumalha (2019). Aqui não há introspecção, o corpo está empoderado; ou melhor, os corpos, no plural. A comunidade vai dar a voz e o tom da resistência, afinal, são mestres nisso. Gostaria de basear minha análise em dois dos mais significativos sambas de Escumalha, álbum dedicado na íntegra a responder Golpe de Vista, à exceção de “Tempo Velho”, faixa que o fecha e que comentarei adiante. Falo das duas primeiras faixas: “Àgbá” e “Valhacouto” (parceria com ninguém mais ninguém menos que Aldir Blanc).

Em “Àgbá”, canção para Exu, é dado o mote do álbum, a ação ativa: “Ontem caiu uma pedra lá fora / Que o lançador só vai jogar agora / É dele transformar, é dele pôr pra andar / (Ê ê Àgbá, ê Adaguê, ê Elebô)”[xviii]. É hora de transformar o mundo, aproveitar a desordem para, da fresta carnavalesca, instituir uma nação festeira e potente, que não permite a vitória do que havia então vencido. Essa percepção de denúncia e transformação se escancara em “Valhacouto”, samba erudito e popular ao mesmo tempo como só a junção de dois grandes feito Douglas Germano e Aldir Blanc poderia produzir. A estrutura da canção se dá em dois movimentos, que se alternam e repetem até o fim. A primeira parte, com Douglas solista, denuncia a “escumalha” que “fez armas virarem leis” e que teria começado na Alemanha – nos shows ao vivo apresentados em 2019, pré-pandemia, imagens da Alemanha Nazista apareciam em telão.

Mas é justamente na segunda porção que se concentra a genialidade de “Valhacouto”. É a melhor definição, junto da canção “Lembranças que Guardei” (Juçara Marçal / Fernando Catatau / Kiko Dinucci), gravada em Delta Estácio Blues (2021), de matéria estética de compreensão e engajamento na resistência ao bolsonarismo – e além[xix]. Trata-se de um raro samba que consegue situar quem escuta num camarote de um teatro de ópera, numa clara indireta ao contorno de classe que atordoa a obra de Douglas Germano em relação a quem a consome, isto é, no limite, os radicais de classe média[xx].

Canto lírico, coro e o solo de Douglas entoam, todos juntos, com os instrumentos em polvorosa: “Quero danças sobre as ruínas / Dos reinos da escuridão / Riam, riam, o circo começou a lamber / Eu quero beber pelas esquinas, reza, rimas / Mas vou precisar de vocês”. É uma das estrofes mais bonitas e com arranjo melhor construído dos últimos tempos: fazer das tripas coração. Dançar sobre a ruína do país do futuro (“Aqui tudo parece que era ainda construção / E já é ruína” – Caetano Veloso, “Fora da ordem”). Dançar em hora de destruição, dançar para construir algo novo do que já inexiste. Gozar dos que teimam em perpetuar uma sociabilidade farsesca, machadiana – “o circo começou a lamber” – e gozar o novo tempo do mundo. A resistência é, aqui, malandra – “Eu quero beber pelas esquinas, reza, rimas” – e coletiva – “Mas vou precisar de vocês”. O canto lírico envolvendo todo esse trecho sintetiza os conflitos de classe em Douglas Germano e cutuca o ouvinte: o que você vai fazer agora[xxi]?

Tudo isso torna Escumalha um disco pesado, benjaminiano dos “novos bárbaros” do artigo “Experiência e pobreza”. Falar em vanguarda após o Tropicalismo torna tudo mais difícil pois ela se institucionaliza e muitas vezes pende para a acriticidade. Caso oposto ao de nosso objeto, que mantém compromisso radical entre forma estética avançada e intervenção crítica no cotidiano. Esta é a conexão entre Douglas Germano e os apontados “vanguardistas” paulistanos. E eis que para surpresa seu fecho se volta ao passado, às pequenas coisas do cotidiano. Ao que passou. “Tempo Velho”. A melodia é amena, a letra rememorativa, a reminiscência de uma memória, o agradecimento por estar vivo ante ao horror institucionalizado. “Eu nem sei de nada, não / Minha voz é vento / E eu sussurro tempo / Pra você olhar”. “Eu quase vi nada, não / Eu senti por dentro / Mas o pensamento / Não dá pra trancar”. “Faz teu caminho de bem e se alembra / Que o mundo mais lindo só tem em pedra pequenina”.

Para Douglas Germano, “Tempo Velho” funciona “para encerrar e para transformar aquela porradaria toda em algo mais leve, para entregar um pouco de esperança. Você tem que ter esse radar também, muitas vezes vai entregar para uma pessoa algo que ela já sabe, já está cansada ou recorre à música exatamente para esquecer um pouco. Chega ali e topa com aquilo de novo”[xxii]. Talvez isso explique os quase cinco milhões de streamings da canção no Spotify quando da escrita deste texto.

“Tempo Velho”, embora inserida nos ditames e contradições do ambiente em que circula, opera com as sábias rezadeiras, com as pedrinhas miudinhas das tradições populares periféricas, marginalizadas, que se um dia sonharam, pensando com Tinhorão, em se afirmar nacionalmente como símbolo do país, foram destituídas de sua forma original e deturpadas por tenebrosas transações. Se por um lado isso explica o fascínio das novas gerações de intelectuais pela cultura popular – tradicional ou não –, não deixa também de ser um recado de que essas epistemologias continuam a ser a melhor resposta para se enfrentar os duros tempos vividos no Brasil desde então. E convém lembrar que Escumalha é um disco pré-pandêmico, a qual só veio confirmar seu caráter apocalíptico-messiânico.

 

5.

É justamente esse ponto, entre o fim de um tempo e a redenção, ponte para outro momento, que instiga Douglas Germano. Sua preocupação em popularizar sua obra sem perder a consistência estética, demonstrada em Partido Alto (2021), seu último álbum, em parceria com os Batuqueiros e Sua Gente, quando recorre ao samba de partido alto, aquele mais resistente entre todos os tipos de samba posto que coletivo (justamente num momento em que nos víamos apartados uns dos outros pelo distanciamento pandêmico), é algo realmente a ser apreciado. Uma consciência de artista.

Essa pontuação nos leva a retomar o caráter apocalíptico-messiânico do samba, para além de sua obra, ente de singularidade redentora do país no “mundo sem culpa” de Antonio Candido. Segundo José Miguel Wisnik, o Brasil seria uma droga, para a qual a depender da dosagem os resultados serão de remédio ou de veneno: “Esse mundo tem largo alcance numa história cultural popular brasileira subjacente ao desenvolvimento do samba, e vai desembocar por outro lado, como já dissemos, nos escritos de João Saldanha sobre Garrincha.

De maneira desidealizada e sem maiores moralismos, essa cultura goza do privilégio de não levar as mascaradas do poder demasiado à risca e de manter uma considerável margem de folga perante apelos produtivistas estritos”[xxiii]. É justamente essa capacidade de gingar e driblar que garante sua capacidade apocalíptico-messiânica. Fernando Novais, comentando as Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, vaticinou uma síntese poderosa da obra: “(…) ou nos modernizamos, e deixamos de ser o que somos; ou nos mantemos como somos, e não nos modernizamos”[xxiv]. Um impasse que se revela no samba de Douglas Germano – afinal, houve modernização, mas em se tratando de desenvolvimento desigual e combinado, lacunas ficaram pelo caminho e é nelas que nossas esperanças devem focalizarem-se – e que se condensa numa entidade central da cultura brasileira, de Glauber a Caymmi, que desemboca em Douglas Germano: o mar.

Ainda que Partido Alto feche com “Minas Gerais não tem mar / Jaci e Maré Cheia” (essa última que já havia sido gravada em Orí), o que poderia questionar o poder redentor do mar, é justamente a primeira canção da safra solo de Douglas Germano que sintetiza minha percepção: “Orí” – “Em Orí tem um mar / E Orí fez um mar / Pra te entregar / Vá navegar”. É claro que temos de ir navegar – trata-se de imperativo – para encontrar esse mar salgado – e sonhado – que pode nos redimir. Mas sabemos, graças a uma entidade sagrada, que ele existe, e que ele pode nos salvar[xxv]. Se assim é, Douglas Germano é a certeza de que o mar que São Paulo não tem existe, e que é de seu gingado que hemos de levantarmo-nos deste túmulo em que fomos colocados. [xxvi]

*Vitor Morais é graduando em história na Universidade de São Paulo (USP).

Notas


[i] É claro que o mistério do samba paulista tem lastro histórico, vide a ampla gama de sambistas que captaram o momento de amplo crescimento populacional – isto é, desenvolvimento da modernidade capitalista – contrastado com a perda da aura provinciana de São Paulo. Adoniran Barbosa numa ponta e Paulo Vanzolini na outra representam essa dualidade do samba paulista perfeitamente. Acontece que entre eles e nosso objeto há anos a fio…

[ii] SANCHES, Pedro Alexandre. Douglas Germano, o homem na bolha. Farofafá, 26.ago.2021. Disponível em: https://farofafa.com.br/2021/08/26/douglas-germano-o-homem-na-bolha/#:~:text=O%20artista%20paulistano%20Douglas%20Germano,%C3%A1gua%20fervendo%20se%20voc%C3%AA%20se..

[iii] WISNIK, José Miguel. Getúlio da Paixão Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo). In: SQUEFF, Ênio/_______. Música (O nacional e o popular na cultura brasileira). São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 134. É claro que alimentar a díade entre nacional-popular e vanguarda-mercado não passa de anacronismo, afinal, o momento é outro, entrecortado pelos custos até hoje colhidos da hecatombe chamada 1964. Acredito, contudo, que a baliza é boa para situar Douglas à parte dos ditos vanguardistas que tem agitado os meios intelectuais paulistanos nos últimos tempos.

[iv] Para uma pioneira análise da razão tropicalista, ver ALAMBERT, Francisco. A realidade tropical. In: ___. História, arte e cultura: ensaios. São Paulo: Intermeios, 2020, pp. 31 – 40.

[v] Uma boa análise da formação da música popular no Brasil segundo Tinhorão pode ser encontrada em BASTOS, Manoel Dourado. Um marxismo sincopado: método e crítica em José Ramos Tinhorão. Tempos históricos, vol. 15, 1º semestre de 2011, pp. 289 – 314.

[vi] WISNIK, José Miguel. Getúlio da Paixão Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo). In: SQUEFF, Ênio/_______. Música (O nacional e o popular na cultura brasileira). São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 159. Tinhorão também se debruçou neste tema em TINHORÃO, José Ramos. Música popular: do gramofone ao rádio e TV. São Paulo: Editora 34, 2012.

[vii] O termo é de Wisnik no já citado ensaio à página 161. Sobre essa dualidade no samba, ver a célebre polêmica musical entre Noel Rosa e Wilson Batista, iniciada quando da composição, pelo segundo, de “Lenço no pescoço”.

[viii] CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem (Caracterização das Memórias de um sargento de milícias). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, nº. 8, p. 84. Roberto Schwarz fará uma leitura a contrapelo do ensaio e apontará que se deve ter cautela com as potencialidades salvadoras do singular “mundo sem culpa”. Ver SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da Malandragem”. In: _______. Que horas são? Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 129 – 156. E Francisco Alambert e Tiago Ferro situaram que esse processo está intrinsecamente ligado ao momento histórico com o qual Candido e Schwarz se identificam e, quiçá, pertencem: “Antonio Candido teria sido um dos grandes intérpretes do Brasil no contexto da revolução de 1930 até o Golpe Civil-Militar de 1964; Roberto Schwarz também o foi, sobretudo a partir do contexto do Golpe”. ALAMBERT, Francisco / FERRO, Tiago. Dois críticos, uma semana, um século. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, nº. 74, dez. 2019, pp. 162 – 177.

[ix] Marcos Napolitano em comunicação pessoal, 17.11.2020.

[x] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: ___. Obras escolhidas volume I: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 226.

[xi] Quem primeiro notou isso, até onde tenho ciência, foi Pedro Alexandre Sanches em SANCHES, Pedro Alexandre. Tropicalismo: decadência bonita do samba. São Paulo: Boitempo editorial, 2000. Sanches aponta na canção veloseana “A voz do morto”, composta para a I Bienal do Samba da TV Record, 1968, para ser defendida pelo samba em pessoa, Aracy de Almeida, e dela desclassificada por conter guitarras elétricas no arranjo original, a síntese da ideologia tropicalista calcada na eliminação do samba enquanto gênero musical de síntese nacional (na linha de Tinhorão. Convém citar também que João Camilo Penna em PENNA, João Camilo. Os povos do Tropicalismo: música popular e populismo. In: DUARTE, Pedro (Org.). Objeto não-identificado: Caetano Veloso 80 anos – ensaios. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, pp. 189 – 215 aponta que um dos pilares para o Tropicalismo seria justamente responder ao método de Tinhorão, que valorizava o samba, mas criticava as contradições da ideologia nacional-popular). Esta discussão retoma a hipótese lançada por Caetano Veloso em 1966 em sua intervenção no célebre debate “Que rumo deve tomar a Música Popular Brasileira?” na Revista Civilização Brasileira de uma certa “linha evolutiva da música popular brasileira”, na qual  João Gilberto e Dorival Caymmi atuariam como mediadores do samba à luz da nova realidade brasileira daquele momento pré-1964, o governo de Juscelino. Com o golpe civil-militar de 1964, a situação mudaria e caberia ao Tropicalismo superar João e Caymmi, incorporando-os ao esquema da linha evolutiva. Que esse processo tenha recalcado modalidades valorizadas por Tinhorão como o moderno samba urbano, não deixa de ser curioso.

[xii] LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[xiii] Ver o debate sobre a “razão tropicalista” feito no já citado ensaio de Francisco Alambert “A realidade tropical”. Entendo que o governo Dilma 2 escancara o limite de uma hegemonia da razão tropicalista para além dos tropicalistas. Quando Dilma cai em 2016, cai junto essa razão que há cerca de cinquenta anos mantinha estática a cultura brasileira oficial em matéria de música.

[xiv] O termo é de José Miguel Wisnik em WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Ver sobretudo o quarto capítulo. Voltarei ao tema adiante, embora ele se encontre sintetizado no segundo movimento deste ensaio.

[xv] SANCHES, Pedro Alexandre. Douglas Germano, o homem na bolha. Farofafá, 26.ago.2021. Disponível em: https://farofafa.com.br/2021/08/26/douglas-germano-o-homem-na-bolha/#:~:text=O%20artista%20paulistano%20Douglas%20Germano,%C3%A1gua%20fervendo%20se%20voc%C3%AA%20se. Acesso em: 18.01.2023.

[xvi] O caso do funk parece ser mais complexo. Lucas Paolillo argumentou, em comunicação pessoal, haver uma resistência em meio ao que enxergo como transe controlado. Todo modo, ver o já clássico VIANNA, Hermano. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

[xvii] Agradeço a Francisco Alambert pela indicação do longa-metragem.

[xviii] Douglas está glosando aqui o próverbio iorubano “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”. Emicida, em outra chave, também recupera este provérbio para abrir o seu “AmarElo – É tudo pra ontem”. Agradeço a Sheyla Diniz pela lembrança do provérbio.

[xix] Analisei “Delta Estácio Blues” em MORAIS, Vitor. Juçara Marçal – luto e redenção. A terra é redonda, 28.04.2022.

[xx] Conferir a clássica análise de Antonio Candido dos radicais de classe média em CANDIDO, Antonio. Radicalismos. In: _______. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, pp. 195 – 216.

[xxi] Em ao menos duas canções de Doulgas Germano tem-se um conflito de classe transposto a um conflito de coros, entre o lírico e o popular: “You S/A” e “Valhacouto”. Convém lembrar que o coro (das pastorinhas, das baianas, de partido alto, …) é ente fundamental de diversas modalidades de samba e retoma as tradições orais das quais origina-se. Agradeço Sheyla Diniz pela lembrança de “You S/A”.

[xxii] SANCHES, Pedro Alexandre. Douglas Germano, o homem na bolha. Farofafá, 26.ago.2021. Disponível em: https://farofafa.com.br/2021/08/26/douglas-germano-o-homem-na-bolha/#:~:text=O%20artista%20paulistano%20Douglas%20Germano,%C3%A1gua%20fervendo%20se%20voc%C3%AA%20se.

[xxiii] WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 423 – 424.

[xxiv] NOVAIS, Fernando A. De volta ao homem cordial. In: _____. Aproximações: estudos de História e historiografia. São Paulo: Editora 34, 2022, p. 330. Citado também por José Miguel Wisnik em seu livro sobre o futebol e o Brasil.

[xxv] Baseio-me claramente na interpretação de Ismail Xavier do final teleológico de “Deus e o diabo na terra do Sol” (1964), quando Manuel, após Corisco ser morto por Antonio das Mortes, corre à procura do mar. Ver XAVIER, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Editora 34, 2019.

[xxvi] Agradeço a leitura, comentários e trocas intelectuais de Julio d’Ávila e Sheyla Diniz quanto ao presente ensaio.

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