Neofascismo e neoliberalismo

Imagem: Elyeser Szturm
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Por WÉCIO PINHEIRO ARAÚJO*

As gestões lulo-petistas não trabalharam ideologicamente a mentalidade política reacionária enraizada na formação social brasileira

A questão da política no Brasil contemporâneo se expressa na e pela contradição estabelecida entre, de um lado, o conteúdo das relações sociais sob a dominação do capital financeiro e sua lógica global rentista e autoexpansiva, e de outro, a forma política, que corresponde ao Estado como espaço no qual o poder adquire centralidade a partir da sociedade civil permeada pelos processos de subjetivação atinentes à racionalidade neoliberal na esteira de uma formação social fortemente reacionária. Portanto, trata-se de uma contradição entre o conteúdo social e a forma política.

É a partir deste argumento que, com essa terceira intervenção, pretendo fechar uma trilogia iniciada com o ensaio intitulado “Lawfare, golpe de Estado e neoconservadorismo” (agosto/2022), seguido por “Bolsonarismo e neofascismo” (janeiro/2023) –ambos publicados em A Terra é redonda.

Nesta direção, venho compartilhar esta breve nota na qual sinalizo alguns elementos para pensar um fenômeno que considero central para uma análise crítica do Brasil contemporâneo: a emersão de um neofascismo na forma política de um movimento de massas com forte representatividade institucional, a partir da costura estabelecida entre, de um lado, um neoconservadorismo reacionário, e de outro, o neoliberalismo enquanto uma racionalidade política contrária à lógica democrática da cidadania social – reitero: apesar das semelhanças, algo distinto do fascismo histórico registrado na Itália do início do século XX.

Neste contexto, surge a necessidade de pensar não apenas o fascismo histórico, mas sobretudo o fascismo como categoria analítica, e é neste ponto que chegamos ao conceito de neofascismo. Esta demanda se ampara uma hipótese que vem sendo corroborada pelos fatos, não somente no Brasil, mas na recente quadra histórica do ocidente democrático: mesmo após a ascensão e declínio do fascismo histórico, permaneceram se proliferando na esteira do cotidiano da sociedade civil e dos aparelhos institucionais, elementos microfascistas capazes de manter a reprodução ideológica silenciosa de um fundo reacionário estruturado em práticas discursivas entranhadas no processo de formação dos indivíduos enquanto sujeitos na experiência da vida em sociedade, desde o núcleo familiar até a escola, a igreja, o partido, o aparato institucional do Estado etc.

A crise da democracia liberal neste século XXI, em grande parte se deve a este processo de formação social e cultural, que acaba por adquirir um caráter de deformação político-ideológica no tocante as formas de os indivíduos vivenciarem o conteúdo das relações sociais na experiência da vida em sociedade sob a lógica democrática da cidadania social. Por isto a importância de falar nessa contradição estabelecida entre conteúdo e forma, situada no interior dos processos de subjetivação que formam (e deformam) os indivíduos como sujeitos políticos.

Ainda no contexto dessa contradição, surge a questão que se impôs na vida política contemporânea, de modo que fez vir à tona algumas fragilidades da tão jovem democracia brasileira. De maneira mais específica, trata-se da contradição estabelecida entre, de um lado, o frágil Estado democrático de direito brasileiro (a forma política), e de outro, o capitalismo e como este se desenvolveu na formação histórica do Brasil (o conteúdo social).[i] Esta contradição tem sua razão de ser nas entranhas das relações entre Estado e sociedade civil, sob as determinações do capital financeiro que ao longo da experiência social, se esconde ideologicamente pelos mesmos elementos por meio dos quais se revela no fenômeno do neoliberalismo.

Como uma racionalidade política este processo produz um sujeito empresarial completamente estranhado de si mesmo enquanto coletividade e seus valores políticos capazes de sustentar o espírito democrático não apenas como regime de governo, mas sobretudo com cultura – e é neste aspecto que a democracia guarda seu elo mais frágil; afinal, os rumos tomados pelas jornadas de junho foram a prova cabal desta fragilidade.

Junto disso, o estágio mais atual de exploração do trabalho, determinado em última instância pelo capital financeiro em tempos de digitalização algorítmica, encontra no neoliberalismo a racionalidade política adequada para engendrar as constantes ameaças aos direitos sociais e à lógica democrática da cidadania, advindas do movimento rentista de substantivação e autoexpansão da forma valor (Wertform) – conforme podemos compreender desde os primeiros apontamentos formulados por Marx no livro terceiro d’O capital, assim como nos dias atuais, estudiosos como Cedric Durand, Michael Hudson, François Chesnais, entre outros.

Na conjuntura brasileira hodierna, desde o golpe de 2016, este movimento se dá como uma costura, entre, de um lado, a racionalidade neoliberal consolidada na relação entre capital e trabalho pelo Governo Temer, e de outro, o neoconservadorismo reacionário empoderado no e pelo bolsonarismo. A partir do golpe de lawfare desferido contra o governo Dilma, este processo se volta contra os direitos sociais estabelecidos enquanto dever do Estado na Constituição de 1988. Este é o caminho que nos leva à costura estabelecida entre neoliberalismo e neoconservadorismo sob a dominação social das finanças mundializadas.

Sob a inferência do golpe de lawfare, manipulada juridicamente em seu conteúdo político, a lógica democrática da cidadania passa contraditoriamente a legitimar politicamente a sua própria destruição à medida que se mostra fortemente determinada pelo estabelecimento golpista do autoritarismo do Estado de direito – conforme já expliquei em exposições anteriores. Neste contexto, a racionalidade política neoliberal, cumpre então o papel de “harmonizar” de modo sub-reptício, não somente economicamente, mas sobretudo ideologicamente, a distensão entre o conteúdo social (a subsunção do trabalho ao capital) e a forma política (Estado) no interior dos processos de subjetivação formadores desse sujeito político reacionário/empresarial.

Deste modo, enquanto razão social imanente à relação entre Estado e sociedade civil, a forma valor – por meio do capital financeiro – fortalece a sua dominação social e econômica como dominação de classe no campo político, e pior: ancorada nesta racionalidade contrária à lógica democrática da cidadania social, catapulta um levante reacionário que nos últimos anos vimos desembocar em um neofascismo de massas. Portanto, o neoliberalismo, seja enquanto cartilha econômica ou como uma racionalidade política, é incompatível com a democracia.

Chegamos ao momento da necessária autocrítica: no caminho que levou ao derrube do governo Dilma, em sua cidadania do consumo, as gestões lulo-petistas não trabalharam ideologicamente a mentalidade política reacionária profundamente enraizada na formação social brasileira; não foi trabalhado a democracia como cultura. A ideologia ficou a cargo unicamente do fetiche da mercadoria em sua mediação que se constitui na forma como é vivenciada a lógica do capital, que neste caso, se deu por meio do consumo estimulado pelo Estado via sistema de crédito, o que incluiu desde o Bolsa Família até as desonerações fiscais, spreads bancários, etc.; ou seja, política social para trabalhadores e empresários; ou ainda, os governos petistas fizeram transferência de renda não somente para os pobres, mas também para os ricos.[ii]

Esta foi a receita política na qual apostou o lulismo com seu neoliberalismo de esquerda, uma espécie de arranjo político-econômico ornitorrínico de neoliberalismo com política social sob um pacto social conservador. Não podemos esquecer que em 30 de abril de 2003, o presidente Lula (ironicamente, assim como também fez Jair Bolsonaro em 2019) desceu a rampa do Planalto à frente de extensa comitiva para entregar pessoalmente ao Congresso Nacional, projeto com reforma conservadora da Previdência Social. Sabemos que Lula também fez todo o jogo do capital financeiro – vale lembrar que, conforme registra Singer (2012), só no primeiro ano do governo Lula, as instituições financeiras tiveram um resultado positivo 6,3% maior em relação ao período anterior (Governo FHC).

Na era lulista, o capital fictício aprofundou a sua dominação social por meio de uma cidadania ideologicamente lastreada unicamente pela lógica do consumo. Nesta promoção política do “cidadão-consumidor”, conforme analisam Pierre Dardot e Christian Laval (2016), “a figura do ‘cidadão’ investido de uma responsabilidade coletiva desaparece pouco a pouco e dá lugar ao homem empreendedor”; ou seja, a lógica democrática da cidadania social – ainda tão precária na sociedade brasileira – dá lugar à racionalidade neoliberal na gestão biopolítica da massa seduzida pelo consumo daqueles bens e serviços aos quais não tinha acesso anteriormente. Em suma, o consumo vivenciado como uma festa política da prosperidade sem educação político-ideológica junto às massas, não confrontou o trabalho ideológico que setores ultraconservadores vêm fazendo há mais de um século nas periferias do Brasil, a exemplo dos neopentecostais – haja vista igrejas como a Assembleia de Deus, que está há mais de cem anos atuando nesse país, conforme analisa Alderi Matos em Breve história do protestantismo no Brasil (MATOS, 2011).

No Brasil lulista, conforme analisou o sociólogo André Singer (2012), o consumo se tornou a única mediação para proporcionar a melhoria de vida dentro da ordem, capturando ideologicamente a subjetividade social das massas, por meio de condições objetivas sofisticadamente integradas ao processo global de acumulação do capital fictício, e sem trabalhar ideologicamente qualquer nível de criticidade no tocante à subjetividade política e sua constituição histórica na formação social brasileira determinada pelos microfascismos do cotidiano que sustentam historicamente a formação social de uma mentalidade política profundamente reacionária ancorada em um passado colonialista, escravista, racista e autoritário que insiste em subsistir no presente.

Na gestão do Estado brasileiro, ao mesmo tempo que prestou um grande serviço ao capital fictício, o lulismo também deixou um flanco aberto para a ascensão desse sujeito político reacionário, posto que, se por um lado encontrou uma forma de combater a miséria integrando-a à lógica rentista, por outro também mistificou ainda mais a luta de classes em suas determinações políticas e ideológicas na formação social brasileira. Estamos diante das consequências políticas daquilo que, do ponto de vista da economia política, o Alfredo Saad Filho e o Lecio Morais (2018) denominaram de neoliberalismo desenvolvimentista. Não seria este o terreno perfeito para um recrudescimento das tão recentes e frágeis conquistas democráticas alcançadas na Constituição de 1988?

Resumo dessa ópera política: na crise oriunda da tensão entre capital e democracia disparada com as jornadas de junho, a partir do caminho aberto pelo golpe de lawfare em 2016, os pequenos elementos fascistas latentes na microfísica da formação social brasileira são canalizados e amplificados ideologicamente em fenômenos como o bolsonarismo, que acabam por favorecer e fortalecer a eclosão de um neofascismo de massas alinhado com a racionalidade neoliberal.

Após a crise do governo Dilma e o golpe de 2016 que levou ao poder Michel Temer, veio o ataque ideológico constituído no antipetismo jurídico e politicamente organizado, que teve na Operação Lava Jato sua principal frente de combate por meio da lawfare coligada com a tradicional mídia golpista. Com a derrocada das gestões lulo-petistas, surge um momento favorável para que uma nova liderança política pudesse canalizar os microfascismos sedimentados no imaginário popular de uma sociedade recém-saída de uma ditadura civil-militar, processo que no campo ideológico representa uma síntese de toda a formação social brasileira.

Desta vez, sob o retorno daquele fundo civil autoritário e fascista – muito bem representado pelo deputado Jair Messias Bolsonaro – que continuou se proliferando de maneira silenciosa em cada núcleo familiar brasileiro, mesmo após o fim da ditadura civil-militar. Os militares caíram, mas este fundo civil autoritário jamais deixou de se reproduzir. Ele é a base da formação social do modelo familiar brasileiro historicamente consagrado pelo bolsonarismo e que, antes deste, foi ideologicamente trabalhado pela mítica neopentecostal no último século.

É precisamente neste contexto que essa mentalidade autoritária magnetiza o vetor neofascista: o avivamento de uma visão mítica de nação constituída sob um chauvinismo teocrático de base ideológica microfascista, que se projeta no poder a partir de um golpe de lawfare capaz de estabelecer o Estado de exceção como paradigma de governo, amparado em um moralismo autoritário costurado com a racionalidade política neoliberal.

Quatro apontamentos parecem razoáveis para tentar sintetizar a relação entre neoliberalismo e neofascismo: (i) O bolsonarismo é importante, mas se trata de um epifenômeno enquanto uma expressão de algo mais profundo que, ao longo da formação social brasileira, adquiriu ideologicamente a forma política de um neofascismo de massas. Este fenômeno se produziu à medida que por meio do microfascismo, as piores expressões da formação social brasileira desde a colonização, se fortaleceram como práticas discursivas moralmente sancionadas e modos de ser constituídos nas formas de os indivíduos vivenciarem politicamente o conteúdo das relações sociais, a exemplo do escravismo, do racismo, do machismo, do mandonismo e do negacionismo histórico;

(ii) O neofascismo não se reduz ao bolsonarismo, bem como este último não explica o primeiro, muito pelo contrário, o bolsonarismo se explica pelo microfascismo enquanto uma progressão imanente à formação do neofascismo e seus processos de subjetivação; (iii) A costura entre, de um lado, o neoliberalismo como uma racionalidade política, e de outro, o microfascismo, se mostra como um conduto de passagem para esse levante neofascista, disparado pelo limite ao qual chegou a tensão entre neoliberalismo e democracia, na forma da crise econômica (e política) agravada no governo Dilma Roussef, e como esta foi administrada pelo golpe de lawfare;

(iv) Em sua totalidade, o entrave se dá entre capital e democracia. Na periferia do capitalismo global, o Estado democrático de direito e a lógica democrática da cidadania social se tornaram um impasse para o “investimento rentável” do capital fictício, sob o que o David Harvey denominou de loucura da razão econômica.[iii]

Portanto, nesse período de 2016 a 2022, a relação entre o golpe de lawfare e a costura estabelecida entre neoliberalismo e neofascismo no Brasil contemporâneo pode ser assim resumida: de um lado, a forma política do Estado democrático de direito é golpeada por dentro do seu próprio conteúdo (a democracia) e em prol de um projeto político neofascista; e de outro, aprofunda-se o projeto de submissão do Estado à racionalidade neoliberal como estratégia política contrária à lógica democrática da cidadania social, em favor do capital fictício.

Tudo isso urdido sob o moralismo neoconservador dos neopentecostais,[iv] que comparece como um dos principais sistemas de significação ideológica neofascista, a partir dos microfascismos entranhados na formação social brasileira. Nesta direção, a democracia padece em uma expressão política meramente formal, e o neofascismo surge justamente quando chegamos ao limite do impasse entre a racionalidade neoliberal e a lógica da cidadania. É neste ponto que o lawfare cumpriu taticamente a missão de viabilizar “democraticamente”, a morte da própria democracia, que agoniza apenas como um significante vazio, constituindo o fenômeno que a cientista política Wendy Brown denominou de desdemocratização (de-democratization).[v]

O neofascismo brasileiro se consolida então como o significante ideológico dessa democracia desdemocratizada sob a racionalidade neoliberal; e o lawfare se revela como a sua normatividade jurídica sancionada pelo Estado de exceção permanente e seus representantes, em grande parte eleitos para as diversas esferas do poder legislativo em 2022. O desafio a partir de 2023 é sem dúvida o mais espinhoso de toda a história política brasileira pós-redemocratização.

*Wécio Pinheiro Araújo é professor de filosofia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Referências


BROWN, W. American Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization. Sage Publications. Political Theory, Vol. 34, No. 6, Dec. 2006, pp. 690-714.

DARDOT, P; LAVAL, C. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.

DIP, Andrea. Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder. 1ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

HARVEY, David. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2018.

MATOS, Alderi Souza de. Breve história do protestantismo no Brasil. Voz Faifae: Revista de Teologia da Faculdade FASSEB, v. 3, n. 1, 2011, p. 1-26.

SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: Neoliberalismo versus Democracia. São Paulo: Boitempo, 2018.

SINGER, A. [et al.]. Estado e democracia. Rio Janeiro: Zahar, 2021.

Notas

[i] Neste ponto, é fundamental recorrer à contribuição da teoria marxista da dependência, sobretudo em estudiosos como Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, Theotonio dos Santos e Vania Bambirra.

[ii] Laura Carvalho analisa essa questão na sua obra Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico (2018).

[iii] Cf. HARVEY,2018.

[iv] Vide o trabalho da jornalista Andrea Dip (2018).

[v] Cf. BROWN, 2006.

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