12 meses de conflito

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Por DANIEL AFONSO DA SILVA*

O presente contencioso entre Ucrânia e Rússia não é uma guerra convencional, tampouco uma guerra entre Ucrânia e Rússia

Hoje, a fase mais recente do longo contencioso entre Ucrânia versus Rússia completa um ano. No dia 24 de fevereiro de 2022, o presidente Vladimir Putin anunciou que iniciaria uma operação de contraofensiva ao encontro da Ucrânia, que estava às voltas de ingressar em instituições ocidentais, notadamente na OTAN, na União Europeia e na aliança atlântica com os Estados Unidos.

Não é o caso de se retomar todos os argumentos de parte a parte. Mas é importante se ressaltar que a OTAN deveria ter deixado de existir após 1989-1991. Por conseguinte, ela não deveria seguir se expandindo ao encontro do espaço vital de influência da Rússia E, por fim, os ucranianos jamais deveriam ter se deixado seduzir pelos gracejos dessa instituição-símbolo da ofensiva do mundo livre contra o mundo soviético no pós-Segunda Guerra Mundial.

Dito de modo mais enfático, o presente contencioso entre Ucrânia e Rússia não é uma guerra convencional, tampouco uma guerra entre Ucrânia e Rússia. Faz parte de uma disputa mundial pela hegemonia do sistema internacional e tem indicativos fortes de se transformar numa terceira guerra mundial – aliás, para alguns, como o demógrafo francês Emmanuel Todd, essa “terceira guerra mundial já começou”.

De toda sorte, quem acompanhou as movimentações do conflito nos últimos 12 meses desde Paris, Londres, Roma, Nova York ou Camberra teve reflexos comuns de solidariedade contra o “inimigo-invasor-russo”. Quem viu tudo de alguma varanda distante desde São Paulo, Buenos Aires, Joanesburgo, Ancara, Xangai ou Bamako teve impressões menos assertivas, mais dispersas e, muitas vezes, até indiferentes. A realidade para os habitantes desses mundos virou real demais para ser contida no certo versus errado, no bom versus ruim, no bonzinho versus malvado.

Enquanto tanques russos iam singrando pelo território ucraniano para tomar Kiev e outros pontos estratégicos do país, os países oponentes às ações de Moscou aceleraram tratativas de sanções e embargos contra a Rússia. Sanções e embargos claramente ilegais e imorais. Sanções e embargos aprovados às margens do Direito Internacional e dos acordos e tratados consagrados entre os países-membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Sanções e embargos que levaram analistas, economistas e politólogos a prever a debacle inclemente da economia, do poder e da altivez dos herdeiros de León Tolstói.

Às vésperas do primeiro aniversário dessa tensão, saiu o World Economic Outlook do FMI (Fundo Monetário Internacional), relatório que apresenta as projeções mundiais de crescimento econômico para o biênio 2023-2024. Nelas, a Rússia figura com uma estimativa de crescimento de 2,1%, a Zona do Euro, 1,6%, e os Estados Unidos, 1%. Como explicar? No mesmo diapasão, os anunciadores do Armagedão antecipavam um crescimento negativo de 8% a 10% na economia russa. A queda real, também contabilizada pelo FMI, foi de -2,2%. No mesmo sentido, previa-se uma asfixia da produção e da comercialização do principal produto de exportação russo que é o petróleo. Quando se cotejam os números, nota-se que os russos venderam, em 2022, por volta de US$ 24 bilhões em petróleo, o que significa um retorno similar aos “tempos de paz”, anteriores ao 24 de fevereiro de 2022. Como entender?

Desde a saída dos Estados Unidos dos acordos de Bretton Woods, em decorrência de sua humilhação e desacorçoo no Vietnã, que o que se entende por Ocidente avança sorrateiramente para a irrelevância. Os 30 anos gloriosos de crescimento e prosperidade europeus após 1945 desapareceram para nunca mais voltarem aos níveis de bem-estar social e felicidade outrora projetados. A implosão do mundo soviético, anos depois, em 1989-1991, promoveu, por um lado, “a maior tragédia geopolítica do século 20” e, por outro lado, o maior vazio de referências na história da humanidade desde o início da era moderna.

O “fim da história”, alardeado por Francis Fukuyama, observado retrospectivamente, era um grito de desespero frente à marcha intransigente da história que tendia a esmagar a integralidade do sentido e da existência do Ocidente. O “parêntesis ocidental” de quatro a cinco séculos de dominação – mental, moral, intelectual, econômica e racional do mundo – estava às voltas de terminar.

A aceleração da globalização e da mundialização dos espíritos e da imanência da vida a partir do fim do conflito Leste-Oeste entre o mundo liberal liderado pelo Ocidente versus o espaço socialista, comunista e soviético liderado pela URSS fragmentou as dinâmicas de decisão, poder e realização. O multilateralismo ancorado nas Organizações das Nações Unidas precisou, quase que subitamente, incorporar, mesmo que virtualmente, as pressões da multipolaridade mundial. Percebeu-se, muito rápida e amargamente, que Paris, Londres, Nova York, Berlim, Tóquio e Washington não estavam à sós nem eram os únicos aspirantes a maiorais do mundo.

A primeira mostra extremamente contundente dessa expressiva revanche da história veio com os ataques de 11 de setembro de 2001. Diante do espetáculo da colisão de aviões de carreira nas simbólicas Torres Gêmeas, os entusiastas do western culture meaning precisaram reconhecer que Turquia, Síria, Irã, Israel, Paquistão, Arábia Saudita, Afeganistão, Iraque, Iêmen, Jordânia, Omã também existiam, existem e também aspiravam e aspiram um lugar ao sol.

A crise financeira de 2008 revelou algo ainda mais contundente. As projeções da financeira Goldman Sachs indicavam que a economia dos países emergentes, liderada pelas nações que compõem o BRICs – Brasil, Rússia, Índia e China; a África do Sul ingressaria depois –, somariam 50% do PIB mundial por volta de 2020. Diante da concretude dessa projeção lastreada em expectativas de mercado futuro, o que era tido como ilusões fantasmagóricas de obscuros pensadores à coté de la plaque anunciadores de choques de civilizações virou uma batalha desesperada pela manutenção da integridade física e moral do Ocidente numa ambiência onde a sua respeitabilidade além-fronteiras já não existia mais.

Quando o presidente Barack Obama sinalizou que os Estados Unidos não admitiriam o uso de armas químicas nem biológicas no conflito da Síria e que o eventual uso seria a readline para uma intervenção internacional devastadora no país presidido por Bashar al-Assad, os habitantes dos países não-ocidentais, notadamente africanos e asiáticos, simplesmente sorriram. Os norte-americanos e os europeus não amedrontavam nem constrangiam mais ninguém. Menos ainda esses, outrora, desterrados e desprezados da Terra.

Quem acompanhou com serenidade a irresponsabilidade norte-americana na invasão do Iraque em 2003 e a inconsequência internacional no fustigar da Primavera Árabe, em 2010-2011, selada na perseguição e abate de Muammar al-Gaddafi na Líbia, em outubro de 2011, jamais se desvencilhou da convicção de que os ocidentais perderam o rumo e o prumo. Ao se desconjuntar o odiento governo de Bengasi, os europeus – italianos, franceses, alemães e ingleses – foram, sim, obrigados a, moralmente, acolher “toda a miséria do mundo” plasticamente simbolizada nas catadupas de refugiados oriundos de Estados falidos, que eles próprios, europeus e norte-americanos, ajudaram a produzir na África e no Oriente Médio.

Ninguém pode ter dúvidas por um segundo sequer que esse verdadeiro pandemônio mesclado a pasmaceira mundial jogou água no moinho de fenômenos inimagináveis em tempos normais que foram e são o Brexit, a Operação Lava Jato, a emergência da tentação autoritária de lideranças extremistas como Marine Le Pen, na França, Heinz-Cristian Strache, na Áustria, Geert Wilders, na Holanda, Matteo Salvinni e Giorgia Meloni, na Itália, assim como a aceitação inapelável de irremediáveis bonifrates como Donald J. Trump, nos Estados Unidos, Viktor Orbán, na Hungria, Jair Messias Bolsonaro, no Brasil, e Volodymyr Zelensky, na Ucrânia – sendo Zelensky um cômico bonifrate também de profissão.

Tudo isso movimenta o torvelinho do rebaixamento imoderado de tudo que um dia se entendeu por rêve européen, american way of life ou estilo de vida ocidental como modelos de perfeição, dignidade e racionalidade. Ninguém que acompanha Bollywood tem saudades dos filmes produzidos no estado norte-americano da Flórida.

Com a pandemia de covid-19, no biênio de 2020-2021, ficou ainda mais evidente o peso da bigorna da realidade mundial. Como respeitar países econômica e tecnologicamente tão avançados como os ocidentais que nada anteciparam, nada anunciaram e nada contiveram da verdadeira hecatombe provocada pelo vírus?

Quando esses paladinos do Ocidente mobilizaram todas as suas forças para desestabilizar a Rússia com a inserção da Ucrânia em seu espectro de influência e, em seguida, com a aceleração de sanções e embargos, acreditaram que os códigos dos gladiadores internacionais do século de Vestfália teriam, hoje, a mesma valência. Justamente hoje no século da multipolaridade assertiva e ativa.

Quando tentaram desvalorizar o rublo ao longo de 2022, os russos encontraram mecanismos para manter a paridade de sua moeda em níveis estáveis com a manutenção da credibilidade de suas empresas. Quando ameaçaram não mais comprar produtos russos tipo petróleo, a Rússia começou a vender seus excedentes para Índia, Turquia e China a preços melhores e a partir de contratos mais alongados. Quando tentaram escalpelar o moral russo e pregar-lhe a pecha de agressor implacável dos “pobres” dos ucranianos, três a quatro quintos dos países-membros das Nações Unidas simplesmente deram de ombro e foram cuidar de suas vidas.

Esses 12 meses de escaramuças deixam vários ensinamentos. Mas, talvez, o mais importante seja a intermitência da ilusão dos europeus e norte-americanos em acreditar que continuam com o monopólio mundial do coração, da alma e da razão. O recado dado pelo mundo a eles é claro: não; não mesmo; não mais.

*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ).

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