O terreno escorregadio das ocupações

Imagem: Engin Akyurt
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SLAVOJ ŽIŽEK*

Para condenar a colonização russa, é preciso ser consistente e condenar também a opressão israelense aos palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza

A única coisa a ser celebrada no primeiro aniversário da guerra russa é a escala e a coragem da resistência ucraniana, que surpreendeu a todos, inclusive os aliados da Ucrânia e talvez até mesmo os próprios ucranianos. Em sua autodefesa, a Ucrânia está conseguindo se autotransformar.

“O desejo das pessoas por justiça em seu país não diminuiu”, observa a jornalista ucraniana Kateryna Semchuk. “Na verdade, ele se fortaleceu – e com razão, posto que a maioria dos cidadãos está arriscando a própria vida para combater a ameaça genocida da Rússia. As pessoas estão tão pessoalmente engajadas no futuro da Ucrânia que se tornaram mais sensíveis do que nunca a qual tipo de país estamos nos tornando e como as coisas deverão ser depois da guerra”.

Quanto a esta nova disposição, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky demitiu recentemente diversos oficiais de alto escalão suspeitos de corrupção e outras ofensas. Mas ainda resta ver se a campanha ucraniana anticorrupção se tornará um questionamento mais radical sobre “como as coisas deverão ser depois da guerra”.

A Ucrânia apenas fará o catch-up com as democracias liberais do Ocidente e permitirá que as grandes corporações ocidentais a colonizem economicamente? Ela se unirá à reação populista contra a globalização e os livres mercados, como fez a Polônia? Ou ela fará a aposta maior e tentará ressuscitar a democracia social à moda antiga?

Estas questões estão ligadas à resposta internacional mista às agressões da Rússia. Para que se condene propriamente a colonização russa, é preciso ser consistente e condenar igualmente os outros exemplos de subjugação colonial, sobretudo a opressão israelense dos palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

É verdade, a ocupação israelense da Cisjordânia não é o resultado de uma ofensiva ou de uma invasão militar. Mais propriamente, ela é o legado da guerra árabe-israelense de 1967, da qual os estados árabes saíram derrotados. Além disso, deve-se tomar cuidado ao se engajar em discussões acerca da disputa israelense-palestina, pois ela é comumente usada para fomentar o antissemitismo – um problema crescente no Ocidente. Um tremendo cuidado é ainda mais necessário neste momento, agora que a violência dos israelenses e dos palestinos está novamente em alta.

De todo modo, é um fato inquestionável que a maioria dos atuais palestinos na Cisjordânia nasceram sob a ocupação, e, depois de quase seis décadas, não têm nenhum prospecto de conquistar uma soberania estatal real. Pelo contrário, são forçados a assistir impotentes à apropriação progressiva de seu território por colonos israelitas. A mídia ocidental não poupa elogios à “resistência heroica” dos ucranianos, mas cala-se diante da situação dos palestinos na Cisjordânia, que resistem a um regime que se torna cada vez mais comparável ao defunto sistema de apartheid da África do Sul.

Agora que o novo governo israelense, liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, está engajado em uma anexação de facto da Cisjordânia, ficou mais difícil negar o paralelo com a maneira com que a Rússia tem tratado a Ucrânia, com o presidente Vladimir Putin negando aos ucranianos o próprio direito de existir enquanto pessoas. Em dezembro de 2022, o governo de Israel afirmou explicitamente que “o povo judeu tem um direito exclusivo e indisputável a todas as partes do Território de Israel”, incluindo a Judeia e a Samaria – ou seja, a Cisjordânia.

E a coalizão de Benjamin Netanyahu não para por aqui. De acordo com uma análise da Just Security, uma iniciativa sediada na faculdade de direito da NYU, “os documentos fundadores do novo governo indicam uma virada clara e dramática no quadro normativo organizacional através do qual administra os territórios: da lei de ocupação a uma aplicação da lei doméstica de Israel”. Na prática, isso significa uma “anexação em tudo menos no nome”. Consequentemente, a mudança no direito fundiário inimigo devolverá as propriedades na Cisjordânia aos israelenses que as possuíam antes de 1948. Não é de surpreender que essa mudança opera apenas em mão única: propriedades em Israel anteriormente pertencentes a palestinos não serão igualmente “reconcedidas”.

Em princípio, uma tal mudança poderia ser um ato progressista, uma vez que implica que a aplicação de diferentes regimes legais para os israelenses e palestinos da Cisjordânia – um componente central da acusação de apartheid – não poderá mais ser justificada. Mas sabemos que o novo governo de Israel é tudo menos progressista. Então, como será conduzida a anexação? Se a Cisjordânia irá simplesmente se tornar parte de Israel, os quase três milhões de palestinos que vivem lá não deveriam se tornar cidadãos israelenses capazes de votar nas eleições do país?

Obviamente que este resultado seria inaceitável para Benjamin Netanyahu e seus aliados de direita. Contudo, eles têm apenas duas opções para evitá-lo. Eles podem, por um lado, expulsar o máximo de palestinos que puderem dos territórios anexados, ou, por outro lado, podem impor o que a Just Security descreve como um “regime institucionalizado de opressão e dominação sistemáticas de um grupo racial sobre outro, com a intenção de manter este regime, também conhecido como apartheid”.

Nos últimos meses, Israel foi sacudido por manifestações contra a tentativa do governo Netanyahu de subordinar o judiciário às suas vontades. Mas as centenas de milhares de israelenses liberais e amantes da liberdade que tomaram as ruas ignoraram em boa parte a situação dos palestinos (incluindo os árabes que compõem cerca de 20% da população de Israel), por mais que os últimos sejam os que mais sofrerão sob o novo governo e suas reformas iliberais. Na verdade, a legislação proposta foi tratada como um assunto interno dos judeus.

Um verdadeiro ato de protesto reconheceria o que realmente está em jogo. Para que se preserve a democracia e o estado de direito em Israel, os israelenses liberais devem forjar uma ampla coalizão liberal que inclua representantes dos palestinos. Sim, isso seria um gesto radical e ariscado, já que romperia com uma regra tácita da política israelense – aquela que diz que israelenses palestinos não devem decidir sobre os destinos do país.

Mas um tal radicalismo pode hoje ser a única forma de evitar que Israel se torne mais um estado fundamentalista religioso – até mesmo racista. Isso seria uma farsa. Seria um abandono da profunda filiação histórica dos judeus ao esclarecimento e à busca pela justiça – e mais uma vitória das forças dedicadas a ideais sombrios.

*Slavoj Žižek, professor de filosofia na European Graduate School, é diretor internacional do Birkbeck Institute for the Humanities da Universidade de Londres. Autor, entre outros livros, de Em defesa das causas perdidas (Boitempo).

Tradução: Daniel Pavan

Publicado originalmente no site Project Syndicate.


O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Everaldo de Oliveira Andrade Mariarosaria Fabris Bento Prado Jr. Marcos Aurélio da Silva Jean Pierre Chauvin Ronald León Núñez Luiz Marques Ricardo Fabbrini Marcelo Guimarães Lima Daniel Afonso da Silva André Singer Chico Alencar Juarez Guimarães Slavoj Žižek Paulo Martins Afrânio Catani Francisco de Oliveira Barros Júnior Eliziário Andrade Ladislau Dowbor Elias Jabbour Ronaldo Tadeu de Souza Kátia Gerab Baggio Chico Whitaker Walnice Nogueira Galvão Rubens Pinto Lyra João Adolfo Hansen Gerson Almeida João Paulo Ayub Fonseca Priscila Figueiredo Alexandre de Lima Castro Tranjan Henri Acselrad Mário Maestri Michel Goulart da Silva Tarso Genro Fernando Nogueira da Costa Gabriel Cohn Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Roberto Alves Manuel Domingos Neto Bernardo Ricupero Bruno Machado Tadeu Valadares Luís Fernando Vitagliano Dennis Oliveira José Dirceu Maria Rita Kehl Lorenzo Vitral Valerio Arcary Celso Favaretto Marjorie C. Marona Henry Burnett Manchetômetro Leonardo Sacramento Jean Marc Von Der Weid Atilio A. Boron Carla Teixeira Thomas Piketty Marilena Chauí Paulo Capel Narvai Celso Frederico Alexandre Juliete Rosa Francisco Fernandes Ladeira Jorge Branco Luciano Nascimento Francisco Pereira de Farias Salem Nasser Michael Roberts Dênis de Moraes Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Plínio de Arruda Sampaio Jr. Érico Andrade Remy José Fontana Andrés del Río Samuel Kilsztajn José Micaelson Lacerda Morais Antônio Sales Rios Neto Boaventura de Sousa Santos Annateresa Fabris Ari Marcelo Solon André Márcio Neves Soares Vanderlei Tenório Paulo Nogueira Batista Jr Ricardo Abramovay Fernão Pessoa Ramos José Machado Moita Neto Lucas Fiaschetti Estevez João Lanari Bo Caio Bugiato João Feres Júnior Julian Rodrigues João Carlos Loebens Antonio Martins Vladimir Safatle Jorge Luiz Souto Maior Alysson Leandro Mascaro Antonino Infranca Leonardo Avritzer Marcus Ianoni Osvaldo Coggiola João Sette Whitaker Ferreira Michael Löwy Rodrigo de Faria Marcos Silva Luis Felipe Miguel Paulo Fernandes Silveira Leonardo Boff Airton Paschoa Benicio Viero Schmidt Claudio Katz Anselm Jappe Ronald Rocha João Carlos Salles Yuri Martins-Fontes Alexandre de Freitas Barbosa Eleutério F. S. Prado Milton Pinheiro Sandra Bitencourt José Raimundo Trindade Daniel Brazil Flávio Aguiar José Luís Fiori Denilson Cordeiro Ricardo Antunes Luiz Renato Martins Eduardo Borges José Geraldo Couto Vinício Carrilho Martinez Heraldo Campos Leda Maria Paulani Matheus Silveira de Souza Eugênio Trivinho Paulo Sérgio Pinheiro Luiz Eduardo Soares Otaviano Helene Flávio R. Kothe Marcelo Módolo Sergio Amadeu da Silveira Ricardo Musse Rafael R. Ioris Lincoln Secco Andrew Korybko Bruno Fabricio Alcebino da Silva Daniel Costa José Costa Júnior Gilberto Maringoni Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Werneck Vianna Liszt Vieira Alexandre Aragão de Albuquerque Luiz Bernardo Pericás Tales Ab'Sáber Berenice Bento Renato Dagnino Eugênio Bucci Fábio Konder Comparato Gilberto Lopes Eleonora Albano Armando Boito Igor Felippe Santos Carlos Tautz

NOVAS PUBLICAÇÕES