Por SLAVOJ ŽIŽEK*
Para condenar a colonização russa, é preciso ser consistente e condenar também a opressão israelense aos palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza
A única coisa a ser celebrada no primeiro aniversário da guerra russa é a escala e a coragem da resistência ucraniana, que surpreendeu a todos, inclusive os aliados da Ucrânia e talvez até mesmo os próprios ucranianos. Em sua autodefesa, a Ucrânia está conseguindo se autotransformar.
“O desejo das pessoas por justiça em seu país não diminuiu”, observa a jornalista ucraniana Kateryna Semchuk. “Na verdade, ele se fortaleceu – e com razão, posto que a maioria dos cidadãos está arriscando a própria vida para combater a ameaça genocida da Rússia. As pessoas estão tão pessoalmente engajadas no futuro da Ucrânia que se tornaram mais sensíveis do que nunca a qual tipo de país estamos nos tornando e como as coisas deverão ser depois da guerra”.
Quanto a esta nova disposição, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky demitiu recentemente diversos oficiais de alto escalão suspeitos de corrupção e outras ofensas. Mas ainda resta ver se a campanha ucraniana anticorrupção se tornará um questionamento mais radical sobre “como as coisas deverão ser depois da guerra”.
A Ucrânia apenas fará o catch-up com as democracias liberais do Ocidente e permitirá que as grandes corporações ocidentais a colonizem economicamente? Ela se unirá à reação populista contra a globalização e os livres mercados, como fez a Polônia? Ou ela fará a aposta maior e tentará ressuscitar a democracia social à moda antiga?
Estas questões estão ligadas à resposta internacional mista às agressões da Rússia. Para que se condene propriamente a colonização russa, é preciso ser consistente e condenar igualmente os outros exemplos de subjugação colonial, sobretudo a opressão israelense dos palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.
É verdade, a ocupação israelense da Cisjordânia não é o resultado de uma ofensiva ou de uma invasão militar. Mais propriamente, ela é o legado da guerra árabe-israelense de 1967, da qual os estados árabes saíram derrotados. Além disso, deve-se tomar cuidado ao se engajar em discussões acerca da disputa israelense-palestina, pois ela é comumente usada para fomentar o antissemitismo – um problema crescente no Ocidente. Um tremendo cuidado é ainda mais necessário neste momento, agora que a violência dos israelenses e dos palestinos está novamente em alta.
De todo modo, é um fato inquestionável que a maioria dos atuais palestinos na Cisjordânia nasceram sob a ocupação, e, depois de quase seis décadas, não têm nenhum prospecto de conquistar uma soberania estatal real. Pelo contrário, são forçados a assistir impotentes à apropriação progressiva de seu território por colonos israelitas. A mídia ocidental não poupa elogios à “resistência heroica” dos ucranianos, mas cala-se diante da situação dos palestinos na Cisjordânia, que resistem a um regime que se torna cada vez mais comparável ao defunto sistema de apartheid da África do Sul.
Agora que o novo governo israelense, liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, está engajado em uma anexação de facto da Cisjordânia, ficou mais difícil negar o paralelo com a maneira com que a Rússia tem tratado a Ucrânia, com o presidente Vladimir Putin negando aos ucranianos o próprio direito de existir enquanto pessoas. Em dezembro de 2022, o governo de Israel afirmou explicitamente que “o povo judeu tem um direito exclusivo e indisputável a todas as partes do Território de Israel”, incluindo a Judeia e a Samaria – ou seja, a Cisjordânia.
E a coalizão de Benjamin Netanyahu não para por aqui. De acordo com uma análise da Just Security, uma iniciativa sediada na faculdade de direito da NYU, “os documentos fundadores do novo governo indicam uma virada clara e dramática no quadro normativo organizacional através do qual administra os territórios: da lei de ocupação a uma aplicação da lei doméstica de Israel”. Na prática, isso significa uma “anexação em tudo menos no nome”. Consequentemente, a mudança no direito fundiário inimigo devolverá as propriedades na Cisjordânia aos israelenses que as possuíam antes de 1948. Não é de surpreender que essa mudança opera apenas em mão única: propriedades em Israel anteriormente pertencentes a palestinos não serão igualmente “reconcedidas”.
Em princípio, uma tal mudança poderia ser um ato progressista, uma vez que implica que a aplicação de diferentes regimes legais para os israelenses e palestinos da Cisjordânia – um componente central da acusação de apartheid – não poderá mais ser justificada. Mas sabemos que o novo governo de Israel é tudo menos progressista. Então, como será conduzida a anexação? Se a Cisjordânia irá simplesmente se tornar parte de Israel, os quase três milhões de palestinos que vivem lá não deveriam se tornar cidadãos israelenses capazes de votar nas eleições do país?
Obviamente que este resultado seria inaceitável para Benjamin Netanyahu e seus aliados de direita. Contudo, eles têm apenas duas opções para evitá-lo. Eles podem, por um lado, expulsar o máximo de palestinos que puderem dos territórios anexados, ou, por outro lado, podem impor o que a Just Security descreve como um “regime institucionalizado de opressão e dominação sistemáticas de um grupo racial sobre outro, com a intenção de manter este regime, também conhecido como apartheid”.
Nos últimos meses, Israel foi sacudido por manifestações contra a tentativa do governo Netanyahu de subordinar o judiciário às suas vontades. Mas as centenas de milhares de israelenses liberais e amantes da liberdade que tomaram as ruas ignoraram em boa parte a situação dos palestinos (incluindo os árabes que compõem cerca de 20% da população de Israel), por mais que os últimos sejam os que mais sofrerão sob o novo governo e suas reformas iliberais. Na verdade, a legislação proposta foi tratada como um assunto interno dos judeus.
Um verdadeiro ato de protesto reconheceria o que realmente está em jogo. Para que se preserve a democracia e o estado de direito em Israel, os israelenses liberais devem forjar uma ampla coalizão liberal que inclua representantes dos palestinos. Sim, isso seria um gesto radical e ariscado, já que romperia com uma regra tácita da política israelense – aquela que diz que israelenses palestinos não devem decidir sobre os destinos do país.
Mas um tal radicalismo pode hoje ser a única forma de evitar que Israel se torne mais um estado fundamentalista religioso – até mesmo racista. Isso seria uma farsa. Seria um abandono da profunda filiação histórica dos judeus ao esclarecimento e à busca pela justiça – e mais uma vitória das forças dedicadas a ideais sombrios.
*Slavoj Žižek, professor de filosofia na European Graduate School, é diretor internacional do Birkbeck Institute for the Humanities da Universidade de Londres. Autor, entre outros livros, de Em defesa das causas perdidas (Boitempo).
Tradução: Daniel Pavan
Publicado originalmente no site Project Syndicate.
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