Por FELIPE A. P. L. COSTA*
Ao contrário do mundo das coisas, o mundo das ideias não está acessível ao exame direto por parte de observadores externos
Há um mundo real lá fora?
Sim, há um mundo real lá fora. Tratar o mundo exterior como uma entidade real e objetiva, não como uma alucinação ou um sonho, é um ponto de vista não só prudente, mas também saudável. Além de oferecer suporte ao trabalho de estudiosos que seguem na luta para desvendar e entender o que se passa à nossa volta, tal ponto de vista já é adotado por muita gente. Trata-se, portanto, de um bom princípio norteador, seja no plano institucional, seja no plano psicológico.
Antes de prosseguir, cabe aqui explicitar o significado que adoto para certos termos. O uso do rótulo objetivo, por exemplo, emana do fato de que a existência do mundo (e dos inúmeros elementos que o habitam) (i) independe da vontade individual de qualquer um de nós; e (ii) pode (e deve) ser atestada por terceiros (leia-se: outros observadores).
Sim. A veracidade da afirmativa “Há um mundo real lá fora” é, em última instância, fruto de um veredicto. O que significa dizer que as afirmativas científicas a respeito do mundo devem ser atestadas (sendo então mantidas ou refutadas) por mais de um observador. O que não significa dizer que o que não pode ser atestado não existe ou não tem qualquer chance de existir. Ocorre apenas que a ciência não tem muito a dizer sobre tais entidades, ao menos a ciência atual.
Além de um mundo real e objetivo lá fora, há ainda um mundo subjetivo dentro de cada um de nós… Sim, podemos – e devemos – presumir que haja um mundo interior dentro de cada cérebro humano. (Assim como há um mundo interior dentro do cérebro de muitos outros animais; assunto a respeito do qual, no entanto, nós não iremos nos estender aqui.)
O mundo interior é o mundo das ideias. Em relação às quais, aliás, já não caberia mais aplicar o rótulo objetivo. Não é difícil entender o motivo: Ao contrário do mundo das coisas, o mundo das ideias não está acessível ao exame direto por parte de observadores externos.
Compreensivelmente, portanto, o mundo subjetivo é algo bem mais fugidio e enganoso. Um mundo a respeito do qual proliferam inúmeras incertezas, além de mitos e mal-entendidos. Os próprios cientistas que lidam com o assunto estão habituados a caminhar entre dúvidas e inconsistências. Muitas das quais, é bom que se diga, são bastante intrigantes.
Considere a seguinte questão: Se a existência de um mundo interior não pode ser atestada por via direta, como posso me assegurar de que os demais seres humanos são igualmente dotados de mentes pensantes? (Tenho como premissa que eu mesmo sou dotado de uma.)
Como anotou Dennett (1997, p. 9): “Será que temos certeza de que todos os seres humanos possuem mentes? Talvez (considerando o caso mais extremado de todos) você seja a única mente no universo; talvez todas as outras coisas, inclusive o autor aparente deste livro, sejam simples máquinas destituídas de mente. Esta estranha ideia me ocorreu pela primeira vez quando era muito criança, e talvez tenha ocorrido a você também”.
Em resumo, ideias são entidades imateriais, ditas também subjetivas. Elas povoam um mundo cuja existência, natureza e dinâmica só podem ser investigadas de modo indireto.
O mundo como representação
Há uma correspondência entre o mundo das coisas e o mundo das ideias, ainda que não seja uma correspondência de todo simétrica. Há ao menos dois motivos para justificar a assimetria. Primeiro, porque muitos objetos do mundo exterior não estão representados em nossas mentes. Segundo, porque muitas das representações que trazemos conosco são incompletas, imperfeitas ou mesmo distorcidas. Examinemos o assunto um pouco mais de perto.
O nosso mundo – isto é, o mundo em que cada um de nós vive – é em boa medida uma representação, um mapa construído no interior de nossos cérebros. Ocorre que, além de não ser fidedigna, tal representação não é fixa nem imutável – podemos mudar de ideia a respeito de certas coisas.
Não custa repetir: O mapa do mundo que trazemos conosco tem a sua estabilidade, mas não se trata de um mapa definitivo ou imutável. Na verdade, o nosso mapa mental experimenta frequentes ajustes diários, podendo até ser redesenhado – talvez até inteiramente redesenhado, como é anseio e propósito de certas organizações que manipulam a plasticidade mental do ser humano (e. g., seitas religiosas oportunistas, como as chamadas igrejas neopentecostais, e o serviço secreto de alguns países, como a CIA, dos Estados Unidos, e o Mossad, de Israel).
Parte dessa dinâmica mental se deve ao fato de que o cérebro está a receber sinais vindos do exterior o tempo todo. Tal bombardeio, por sua vez, é fruto de uma realidade aparentemente inescapável: A nossa vida é uma experiência contextualizada. Podemos evitar a convivência com outros seres humanos, mas sempre haverá um contexto – afinal, nenhum ser humano é autossuficiente, nenhum ser humano consegue viver em um vácuo ecológico.
Em meio a um incessante e aparentemente caótico bombardeio, os nossos órgãos dos sentidos estão encarregados de selecionar apenas e tão somente alguns sinais de interesse.
Órgãos dos sentidos como filtros seletivos
A mediação entre o cérebro e o mundo exterior é feita por meio de superfícies ou estruturas especializadas – os órgãos dos sentidos.[1] Essas estruturas sensoriais capturam, filtram e encaminham os sinais recebidos (estímulos). O processo todo meio que organiza o caos – i.e., dá algum significado aos padrões de sinais que são percebidos, convertendo-os em informação útil.
O conjunto de processos biológicos envolvidos na aquisição, retenção e uso de informações é chamado de cognição. Entre os animais, a cognição determina os padrões de comportamento (e. g., modo de forrageio, escolha de parceiros e escape de predadores). Muitos desses padrões, claro, têm implicações óbvias e diretas na vida dos organismos. É assim que “contra um fundo contínuo de odores em uma pradaria, um animal responderá a um odor inesperado, talvez o de um predador”.[2]
O estudo da cognição é um campo complexo, multidisciplinar e ainda em franca ebulição. E que também tem as suas lacunas. Assim, embora o uso da informação (entendida aqui como uma tomada de decisão) seja algo relativamente bem estudado, outras variáveis têm sido menos exploradas. É o caso do estudo das implicações evolutivas de características como percepção, aprendizagem, memória e atenção.[3]
Em circunstâncias normais, a seletividade sensorial deve gerar respostas apropriadas. É assim que “a energia de apenas uma molécula de determinadas substâncias é suficiente para eliciar disparos no nervo de um quimiorreceptor”.[4]
Diferentemente do que imaginam alguns, os órgãos dos sentidos (olhos, ouvidos etc.) não são janelas escancaradas – isto é, não somos capazes de perceber tudo o que de fato ocorre em torno de nós. Nem os órgãos dos sentidos são filtros perfeitos ou sequer fidedignos. São tendenciosos, visto que são seletivos. A nossa experiência sensorial, portanto, não nos dá um retrato do mundo. O ela nos dá, na melhor das hipóteses, é tão somente um palpite, um esboço inacabado.
O comentário acima bem pode ser convertido em uma advertência: Todo e qualquer tipo de conhecimento que esteja assentado tão somente em impressões sensoriais tende a induzir o observador a erros e mal-entendidos. Razão pela qual o mapa do mundo que trazemos conosco deve ser tratado com desconfiança.
Coda
Se o mapa do mundo que trazemos conosco não é um retrato fiel, mas sim um esboço enviesado, então a noção subjetiva que elaboramos a respeito das coisas que nos cercam deve ser, ela própria, parcial e incompleta. Uma adesão irrestrita e irrefletida às nossas impressões sensoriais seria, portanto, uma atitude ingênua e equivocada, além de potencialmente desastrosa.[5]
*Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor. Autor, entre outros livros de O que é darwinismo.
Referências
Dangles, P & mais 3. 2009. Variability in sensory ecology: expanding the bridge between physiology and evolutionary biology. Quarterly Review of Biology 84: 51-74.
Dennett, DC. 1997 [1996]. Tipos de mentes. RJ, Rocco.
Dukas, R. 2004. Evolutionary biology of animal cognition. Annual Review of Ecology, Evolution and Systematics 35: 347-74.
Lent, R, org. 2008. Neurociência da mente e do comportamento. RJ, G Koogan.
Messenger, JB. 1980 [1979]. Nervos, cérebros e comportamento. SP, EPU & Edusp.
Silveira, L. C. L. 2008. Os sentidos e a percepção. In: Lent (2008).
Notas
[1] Tais órgãos atuam como transdutores, convertendo certos tipos de energia externa (química, sonora etc.) em sinais elétricos internos. O ser humano, conforme anotou Silveira (2008, p. 181), “[P]ossui cinco sentidos especiais – visão, olfação, gustação, audição e equilíbrio –, além de um sentido geral, a somestesia. Esta última apresenta duas facetas muito distintas. Uma delas está voltada para o meio ambiente e o controle da postura e dos movimentos. Outra, homeostática, é voltada para a representação da noção subjetiva do próprio eu e do seu estado fisiológico, assim como do controle das funções orgânicas”.
[2] Citação extraída de Messenger (1980, p. 13).
[3] Em poucas palavras: percepção (= tradução de sinais do exterior em representação neuronal), aprendizagem (= aquisição de representação neuronal para informação nova), memória de longo e curto prazo (= representação passiva ou ativa de informação já adquirida) e atenção (= representação neuronal ativada em determinado momento) – para detalhes, discussão e referências, v. Dukas (2004); em port., Lent (2008).
[4] Citação extraída de Messenger (1980, p. 13).
[5] Esta noção crítica é ela própria fruto da moderna ciência experimental. Para comentários e referências a respeito de um estudo clássico sobre “o que o olho da rã conta ao cérebro da rã”, ver Messenger (1980, p. 51-2); para uma introdução à fisiologia e à ecologia sensorial, ver Lent (2008) e Dangles et al. (2009).
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