Por JOSÉ COSTA JÚNIOR*
A desordem informacional foi propiciada pelos recursos tecnológicos e pela ação de agentes mal-intencionados
Entre pizzas e mamadeiras
Na eleição presidencial americana de 2016, uma história curiosa foi disseminada nas redes: uma das candidaturas atuava com outras pessoas importantes para manter uma rede de abuso infantil nos fundos de uma pizzaria em Washington, capital dos Estados Unidos. A história, que ficou conhecida como pizzagate, foi um dos tópicos mais comentados durante a campanha e gerou reações e protestos intensos, inclusive de um indivíduo que acreditou na história e queria invadir o local armado “para libertar as crianças”.
Uma narrativa parecida surgiu nas eleições brasileiras de 2018, quando uma das candidaturas foi acusada de promover a distribuição de mamadeiras com bicos em forma pênis nas escolas brasileiras. A situação, que ficou conhecida como “mamadeira de piroca”, envolvia também um “kit gay”, que seria oferecido para as crianças brasileiras. Ambas as histórias foram desmentidas como “notícias falsas”, mas geraram debates sobre a relação entre internet, notícias falsas e política.
Notícias assim receberam crédito por parte de muitas pessoas em ambos os países, que podem ou não ter definido seu voto nas duas eleições com base em informações falsas que receberam através de seus smartphones e computadores. Como são duas das maiores democracias do Ocidente, um debate mais amplo surgiu: quais seriam os efeitos da disseminação de notícias falsas? Mesmo que mentiras, estratégias de desinformação e ocultação de fatos estejam sempre presentes na história e nos debates públicos, a possibilidade de ampla disseminação via internet e do uso direcionado de informações falsas tem gerado preocupações. Criadas intencionalmente ou não, informações falsas podem gerar consequências políticas, sociais e econômicas consideráveis. Para muitos estudiosos, trata-se do principal desafio do nosso tempo.
O documentário Depois da verdade: desinformação e o custo das fake news apresenta esse debate e aborda questões importantes sobre os riscos e desafios envolvidos, retomando exemplos quase inacreditáveis (como os casos do pizzagate e da “mamadeira de piroca”). Mostra como a revolução nas tecnologias da informação e da comunicação ampliaram as possibilidades de interação e distribuição de dados, mas também gerou efeitos colaterais, como a (i) disseminação de informações falsas e (ii) teorias da conspiração, (iii) ataques à imprensa e (iv) aos especialistas, além de (v) tentativas de manipulação por parte de indivíduos, instituições e governos. Também são abordadas algumas tentativas de controle e limitação do alcance da desinformação, situação que tem gerado uma “corrida armamentista” entre as expectativas de informação e a construção de meios para desestabilizar os debates e criar reações extremas.
Os atores principais também são apresentados no documentário: (i) aqueles que acreditam fortemente nas informações falsas, (ii) políticos que fazem uso dessas ferramentas e (iii) os responsáveis pela produção e pela disseminação da desinformação, geralmente instalados em países distantes e sob proteção de governos e do anonimato. Aqueles que dão crédito geralmente o fazem com fervor, sustentando narrativas questionáveis.
Quem paga pela disseminação de notícias falsas geralmente depende dos resultados da desinformação e da desorganização dos debates para ganhar recursos ou criar algum tipo de desestabilização. Um elemento importante desse processo é que ele acaba gerando negacionismos sobre questões até então pacíficas para a maioria das pessoas, como a esfericidade da Terra e o massacre de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Debates que geram discussões intensas, como o aquecimento global e desarmamento também são impactados pelas fake news, com posicionamentos cada vez mais extremos e imunes à qualquer forma de diálogo.
Por fim, duas questões importantes também são citadas: Quem ganha com a desinformação? Limitar o alcance do oferecimento de informações falsas seria um ataque à liberdade de expressão? No primeiro caso, além dos agentes políticos que ascendem e mantêm o poder, também pode haver ganhos financeiros para quem as produz e dissemina, uma vez que as redes sociais e a internet em geral se pautam pelo engajamento e pelo compartilhamento.
Assim, quanto mais algo for replicado e lido, mais rentável será para quem o promove. Já no caso da liberdade de expressão, distribuir informações falsas pode trazer consequências para a vida das pessoas e para a sociedade. Nesse sentido, o combate à desinformação nos contextos atuais é um elemento necessário para que possamos evitar tais prejuízos sociais, políticos e econômicos, o que não configura uma limitação da liberdade de expressão.
Depois da verdade: desinformação e o custo das fake news é mais uma produção relevante para a atualidade, trazendo dados e questões cada vez mais importantes para pensarmos as diversas tensões citadas. Estamos cada vez mais envolvidos com as tecnologias de informação e da comunicação em nossos cotidianos e é bem provável que mais e mais desafios surgirão, principalmente ligados à nossa autonomia e soberania como sujeitos. Mas como passamos a viver dessa maneira? E por que somos presas tão fáceis para todos esses procedimentos? O que podemos fazer par manter nossa integridade intelectual e cidadã em tempos tão confusos?
Conexões e sistemas
Um ponto inicial da reflexão sobre a desinformação na atualidade e seus efeitos envolve o reconhecimento de que sempre existiu uma tensão entre a distribuição de informação nas sociedades e o horizonte de verdade. Em diversos momentos, a desinformação foi utilizada para conquistar poder político e econômico e manter o controle sobre sociedades.
No entanto, com o grande avanço das tecnologias da informação e da comunicação, chegamos a cenários poucas vezes imaginados para os usos de mentiras e falsidades, abrindo caminho para tensões políticas e sociais consideráveis. Esse avanço promoveu mudanças não apenas no modo como recebemos e reagimos às informações, mas em quase todos os aspectos da vida humana. Sobre esse aspecto, o filósofo Luciano Floridi defende que vivemos atualmente numa etapa do desenvolvimento tecnológico onde todas as esferas da existência, inclusive nas nossas identidades e nos modos como lidamos com a realidade.
Essa conjunção entre a vida off-line e a vida on-line configura o que Luciano Floridi (2015) chama de on-life, uma configuração da vida onde o mundo digital mantém uma relação direta e intensa com o não-digital, numa situação em que tudo está ligado e produzindo efeitos reais, mesmo quando não estamos conectados. Notícias falsas e inexatas que nos chegam pelas redes sociais e pela Internet podem pautar comportamentos, crenças e opções políticas, num exemplo da presença da virtualidade em circunstâncias fora dos momentos de conexão.
Segundo a análise de Luciano Floridi, torna-se necessário o desenvolvimento de uma relação crítica com as tecnologias, sem demonizá-las ou buscar retomar um mundo no qual elas não existiam. Dessa forma, a compreensão dos fenômenos desse novo cenário pautará a formação de uma cidadania que possa lidar com as dificuldades e desafios. É necessário nos conscientizarmos de que tais tecnologias podem nos moldar e influenciar enquanto agentes, mas que também podemos moldá-las criticamente, criando dinâmicas e relações mais humanizadas.
Outro elemento importante dessa reflexão é a compreensão de que as expectativas iniciais de que a Internet promoveria emancipação e liberdade mostraram-se limitadas. O oferecimento de conhecimento e de interações diversas são realidades, mas também existem tensões na nossa relação com o mundo digital, conforme nos aponta a pesquisadora Marta Peirano no livro El inimigo conoce el sistema: Manipulación de ideas, personas e influencias después de la economía de la atención (2019). Marta Peirano descreve como estamos disponíveis para vigilância, manipulação e vício comportamental por parte das grandes corporações, pautadas por modelos de negócios pouco preocupados com liberdade, nos quais nossos dados pessoais aparecem como o atrativo central. As estruturas e redes são construídas de modo a obter nossa atenção e dados, estimulando cada vez mais nossos mecanismos psicológicos. Essa situação abre espaço para rotinas de vigilância e vícios comportamentais, tudo sob um verniz de entretenimento que escapa à nossa avaliação cotidiana.
No caso das possibilidades de desinformação, as redes sociais podem ser utilizadas como meios para oferecimento de informações inexatas ou manipuladas, que geram muitas interações e reações, inclusive através de estímulos direcionados para públicos específicos (por exemplo: jovens, de 18 a 20 anos que votam pela primeira vez). Esse recorte pode ser realizado através da pesquisa aos dados que disponibilizamos nas redes sociais.
O título do livro de Marta Peirano faz referência ao fato de que as grandes corporações da internet nos conhecem à fundo, assim como conhecem os sistemas que constroem para nos viciar, nos vigiar e nos manipular. Ao saber nossos gostos, nossas relações, nossas expectativas, muitas vezes melhor do que nós mesmos, abrem possibilidades de controle e influência consideráveis. Marta Peirano também não oferece um convite para voltarmos para um tempo onde éramos completamente livres e soberanos, pois talvez esse mundo nunca tenha existido; trata-se sim de um convite para que possamos compreender melhor as novas dinâmicas nas quais estamos inseridos e das quais não temos quase nenhuma consciência.
Em quem confiar?
Considerando as inovações e implicações das novas tecnologias da informação e da comunicação, principalmente em relação ao potencial da desinformação, o Conselho Europeu desenvolveu em 2017 um estudo intitulado Information Disorder: Toward an interdisciplinary framework for research and policy making (“Desordem da Informação: rumo a um quadro interdisciplinar de pesquisa e formulação de políticas”). Nele, os pesquisadores Claire Wardle e Hossein Derakhshan apontaram que a movimentação na estrutura dos processos informacionais possibilitou a desorganização na produção e na distribuição de informações, com objetivos de impactar o modo como se recebe e se compartilha informações. Fenômenos identificados como “pós-verdade” ou “fake news” são parte dessa desordem, mas também processos onde as informações podem ser manipuladas ou construídas com inexatidão, com o objetivo de desinformar, tumultuar ou criar tensões ligadas às expectativas de verdade.
Estamos inseridos assim em contextos de “desordem informacional”, uma vez que a credibilidade nas fontes de informações tradicionais caiu, ao mesmo tempo em que não sabemos em quem acreditar dentro nos novos cenários de conexão. No contexto político, por exemplo, discursos que falam diretamente para as inseguranças e tensões das pessoas, através de propostas simples, mas sem embasamentos, podem ser abraçadas com muita facilidade. Outro exemplo é o caso da disseminação de informações falsas ou inexatas ligadas a questões de saúde, como dúvidas sobre a efetividade das vacinas, a realidade de epidemias e casos cientificamente questionáveis que são disseminados através dos meios digitais e que encontram um público que contribui para a sua divulgação. Também podemos citar o questionamento das fontes científicas por parte de indivíduos ou instituições que buscam atacar a credibilidade dos especialistas, utilizando esses meios para desestruturar os debates públicos.
A pesquisadora americana Whitney Phillips pesquisou um dos meios que contribui para a desordem informacional: trata-se do fenômeno da trollagem. Troll é o modo como humanos ou sistemas de inteligência artificial são conhecidos na Internet por promoverem ataques, através de comentários e postagens nas redes sociais, com o objetivo de provocar e perseguir. Segundo a análise de Whitney Phillips (2015), o fenômeno da trollagem acontece pois o ecossistema informacional oferece a possibilidade de que qualquer pessoa possa publicar e disseminar qualquer coisa, sem grandes custos financeiros ou de reputação.
Dessa forma, o espaço dos debates passa a ser ocupado por polêmicas e violências que têm por objetivo apenas promover tensões, aumentar a visibilidade e disseminar conteúdo sem qualquer discussão estruturada. Nesse sentido, as performances dos trolls podem contaminar o fluxo das informações por meio de falsidades e narrativas fantasiosas, juntamente com deturpações, negacionismos e teorias da conspiração. Também envolvem processos de banalização da violência e de desumanização, uma vez que ataques virtuais e exposições por parte de trolls ficam cada vez mais comuns nos contextos digitais.
Além das redes sociais, outros meios também são utilizados para a disseminação de informações inexatas, descontextualizadas ou falsas, como aplicativos de mensagens, plataformas para o compartilhamento de vídeos e páginas em blogs temáticos. Como grande parte dessas ferramentas são disponibilizadas gratuitamente, com acesso livre e aberto, as possibilidades de contensão e limitação do alcance desses meios são militadas. Esse contexto também cria tensões em relação à credibilidade das fontes de informação e até mesmo em relação às expectativas de verdade por parte de que as recebe. O termo “pós-verdade” tem sido utilizado para descrever essa situação na qual narrativas alternativas e interpretação variada de fatos passam a compor os debates públicos. Em 2016, o Dicionário Oxford apontou a “pós-verdade” como a palavra do ano, devido à popularização do termo para descrever as atuais circunstâncias, principalmente a partir dos usos políticos desses mecanismos.
Considerando esses aspectos, o filósofo Lee McIntyre (2015) definiu “pós-verdade” como “situação relacionada ou denotando circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal”. Assim, o fenômeno da pós-verdade seria parte de uma crescente tendência internacional em que alguns se sentem encorajados a promover distorções na realidade de acordo com suas opiniões, crenças e objetivos. Não se trata apenas de desconsiderar os fatos, mas da possibilidade de que os fatos possam sempre ser reinterpretados, selecionados ou apresentados conforme o desejo de quem o faz.
Um exemplo seriam os questionamentos à informações cientificamente estabelecidas e confirmadas, como por exemplo a esfericidade do planeta, o processo de evolução por seleção natural ou a eficiência das vacinas, que passam a ser questionados por narrativas alternativas que buscam minar a autoridade cientifica. Dessa forma, o grande risco é que somente fatos que estejam alinhados à determinados conjuntos de ideias sejam aceitos, com o objetivo de construir formas de “supremacias ideológicas” e imposições de “verdades” que impedem o questionamento e a crítica. Segundo Lee McIntyre, esse seria um passo fundamental em direção à dominação política.
O que fazer?
Conforme abordamos até aqui, vivemos em contextos de interações sociais digitais cada vez mais constantes, com possibilidades de influência e manipulação a partir dos dados disponibilizados pelos usuários. Junto a isso, uma desordem informacional foi propiciada pelos recursos tecnológicos e pela ação de agentes mal-intencionados, com uma consequente confusão na opinião e nos debates públicos.
Dessa forma, surgem algumas questões mais gerais ligadas a esse cenário, que podem ajudar na reflexão sobre tais fenômenos, juntamente com possíveis abordagens para a diminuição dos efeitos sociais, políticos e econômicos da desinformação. Entre outras, podemos refletir sobre as seguintes perguntas: (i) Por que a desordem informacional impacta as crenças e opiniões das pessoas de formas tão contundentes? (ii) Qual é a relevância de expectativas de verdade mais sólidas em sociedades democráticas? (iii) O que pode ser feito para limitar o alcance e as consequências de tais processos?
O filósofo brasileiro Ernesto Perini desenvolveu uma hipótese que busca entender por que é tão fácil disseminar desinformação. Perini defende que “a difusão de informação na internet é muito mais barata que o modelo de difusão de informação anterior”, tanto em termos financeiros, quanto em termos de reputação. Os avanços tecnológicos propiciaram essa liberdade maior, porém, também retirou filtros e processos de avaliação na distribuição das informações. Um segundo ponto envolve o fato de que as teses e teorias oferecidas na Internet, devido ao seu caráter mais simples e pouco refletido, podem se adequar a crenças, posições e desejos anteriores, encontrando públicos dispostos a aceitá-las e defendê-las, mesmo que sejam questionáveis nos mais variados aspectos. No caso específico das ciências, estas são de difícil acesso e pouco compreendidas pela maioria das pessoas, além de “ir contra valores que as pessoas já têm, contra imagens que elas têm do mundo, e contra visões mais intuitivas”.
Já sobre os motivos pelos quais essa disseminação encontra pessoas dispostas a aceitá-las, mesmo que as informações sejam extremamente questionáveis e pouco embasadas em fatos ou teorias sólidas, Ernesto Perini aponta que “as crenças têm um papel na marcação de identidades”. Dessa forma, há um componente social nessa aceitação, uma vez que “aquilo que acredito marca também o grupo com o qual me identifico e o tipo de pessoa que sou”.
Dessa forma, compartilhar crenças passa a ser um traço definidor dos grupos, onde as pessoas concordam e reforçam mutuamente suas crenças e expectativas, com pouco espaço para objeções e críticas. Como num dos casos abordados no início desse texto, compartilhar a crença de que crianças são mantidas e abusadas nos fundos de uma pizzaria, com reforços constantes dessa crença e sem espaços para questionamentos, pode fazer com que muitas pessoas aceitem acriticamente essa narrativa, citando até mesmo justificativas e razões para a manutenção da crença.
E quais são os efeitos políticos e sociais dos contextos de pós-verdade? O filósofo Michael P. Lynch analisa em The Internet of Us: Knowing More and Understanding Less in the Age of Big Data algumas das consequências do que identifica como “colapso da conversação pública”. Esse colapso impacta um dos pilares do sistema democrático, que é a discussão informada sobre concepções e fatos que pautam as decisões políticas e sociais. Quando esses debates acontecem sem embasamentos ou fundamentações, partindo de visões que não são amparadas por investigações científicas, corre-se o risco de que a discussão pública fique atomizada e polarizada, sem possibilidade de consensos democráticos ou respostas.
Michael P. Lynch considera que as sociedades se mantêm saudáveis enquanto seus cidadãos tomam decisões informadas e a partir de um nível básico de sinceridade pública. Sem tais traços, como em situações de desordem informacional, o “poder do povo” não passa de um slogan vazio, pois a possibilidade de uso do discurso organizado e exigente próprio da democracia se perde.
A análise de Michael P. Lynch sobre o colapso da conversação pública pressupõe que as pessoas sejam capazes de compreender e avaliar as informações para que possam sustentar seus posicionamentos. Esse pressuposto encontra desafios nos contextos de pós-verdade, onde a intepretação dos fatos pode variar e se disseminar de acordo com a vontade de alguns. Uma resposta para essa tensão envolve o que o filósofo e matemático William Clifford (1845-1879) identificou em 1877 como “ética da crença”: “é sempre incorreto, seja onde for e para quem for, acreditar em algo sem provas suficientes”.
Dessa forma, ao acreditarmos em algo sem provas suficientes, ou apenas para atender nosso sistema de crenças, nossos valores ou nossos gostos pessoais, cometeríamos um erro. Para usar uma terminologia mais atual, quando acreditamos sem provas suficientes, agimos sem “responsabilidade epistêmica”, isto é, nossas crenças não são fundamentadas em evidências. Dessa maneira, para que a conversação pública possa se efetivar da melhor maneira, é necessário que as pessoas sejam estimuladas ter essa responsabilidade epistêmica, pautando suas crenças a partir de exigências de provas e evidências.
No entanto, não podemos avaliar todos os fatos possíveis para sustentar nossas crenças; aqui, um grau de confiança no trabalho e na competência dos especialistas e das instituições que promovem o conhecimento é fundamental. A quase totalidade do conhecimento humano foi produzida por poucas pessoas que promoveram investigações sobre aspectos específicos da realidade. E essas descobertas trazem implicações para nossas vidas, como no caso da produção de antibióticos e vacinas.
Dessa forma, por mais que a teoria evolução por seleção natural seja de difícil compreensão ou que contrarie alguns dos meus valores mais importantes, há uma série de evidências que a comprovam (juntamente com algumas questões que ainda são discutidas sobre os processos evolutivos). Negá-la simplesmente porque não condiz com aquilo que quero seria uma irresponsabilidade epistêmica. Nesse contexto, muitos dos negacionismos promovidos pela desordem informacional envolvem crenças sem evidências, que buscam questionar fontes confiáveis através de estratégias de desinformação. Aqui, um ponto fundamental é o cultivo e a exigência de responsabilidade epistêmica, estimulando as pessoas para que possam sustentar suas crenças com base em evidências, contribuindo para limitar o alcance da desinformação.
Quando dois mais dois não é quatro
O escritor britânico George Orwell nos apresenta na distopia literária 1984 a história de Winston Smith, um sujeito que vive sob um governo totalitário que domina todas as esferas da sua vida. Winston trabalha no Ministério da Verdade, uma das diversas instituições a serviço do regime, que busca reescrever constantemente o passado e apontar aquilo que as pessoas podem ou não acreditar. Um dos objetivos do regime é reescrever a história conforme seus interesses, fazendo com que críticas e questionamentos sejam inexistentes, criando uma narrativa alternativa adequada para os processos de dominação política e social.
Nesse pesadelo totalitário descrito por George Orwell, há uma conexão direta entre (i) processos de vigilância, (ii) iniciativas para desinformação e (iii) o totalitarismo. Em algum momento da sua história, Smith passa a questionar a si mesmo sobre os procedimentos de falsificação e desinformação desenvolvidos pelo Ministério da Verdade, que passam a atormentá-lo cada vez mais. Suas reflexões se tornaram cada vez mais intensas: “A heresia das heresias era o bom senso. E o aterrorizante não era o fato de poderem matá-lo por pensar de outra maneira, mas o fato de poderem ter razão. Porque, afinal de contas, como fazer para saber que dois e dois são quatro? Ou que a força da gravidade funciona? Ou que o passado é imutável? Se tanto o passado como o mundo externo existem apenas na mente, e se a própria mente é controlável — como fazer então?”.
Como o documentário Depois da verdade: desinformação e o custo das fake News evidencia, vivemos em tempos estranhos, descrito por um dos entrevistados como um “tempo orwelliano”. Esse paralelo entre as possibilidades abertas pela desordem informacional na atualidade e a ficção distópica de George Orwell envolve também a conexão entre desinformação, vigilância e totalitarismo. Estamos cada vez mais disponíveis para o controle e a vigilância; somos presas fáceis para a promoção de informações falsas e inexatas que chegam à todo momento com o objetivo de impactar nossas crenças e visões de mundo; esse conjunto de situações abre espaço para regimes políticos que atacam as fontes tradicionais da informação, criando narrativas próprias sobre o presente, o passado e o futuro, ampliando assim cada vez mais o seu poder.
No entanto, assim como Winston de alguma forma nutre esperanças em 1984, também temos expectativas e podemos agir nos atuais contextos de desordem informacional. Cultivar a capacidade crítica e reflexiva, estimular a responsabilidade epistêmica e ser mais exigente em relação às fontes das informações são práticas que podem contribuir para a limitação do alcance da desinformação. Em algum momento, Winston chega a conclusões parecidas: “O mundo sólido existe, suas leis não mudam. As pedras são duras, a água é úmida e os objetos, sem base de apoio, caem na direção do centro da Terra. Com a sensação de […] expor um axioma importante, escreveu: Liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro. Se isso for admitido, tudo o mais é decorrência”.
Ao que poderíamos complementar: Dois mais dois precisa ser quatro. A Terra é redonda. A evolução por seleção natural explica o desenvolvimento das formas de vida. Precisamos sempre combater a desinformação, a vigilância e o totalitarismo.
*José Costa Júnior é professor de filosofia e ciências sociais no IFMG –Campus Ponte Nova.
Referências
CLIFFORD, William. “A ética da crença” (1877). In: MURCHO, Desidério (ed.). A ética da crença. Lisboa: Editora Bizâncio, 2010.
Depois da Verdade: Desinformação e o custo das fake news. Direção de Andrew Rossi. Nova York: HBO, 2020.
FLORIDI, Luciano. The Onlife Manifesto: Being Human in a Hyperconnected Era. Nova York: Springer, 2015.
LYNCH, Michael P. The Internet of Us. Knowing More and Understanding Less in the Age of Big Data. Nova York: Liveright, 2016
MCINTYRE, Lee. Pos-truth. Cambridge, MIT Press, 2018.
ORWELL, George. Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. Tradução de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. (1949)
PEIRANO, Marta. El inimigo conoce el sistema: Manipulación de ideas, personas e influencias después de la economía de la atención. Madri. Debate, 2019.
PERINI, Ernesto. “Das fake news à terra plana”. Entrevista concedida à Marco Weissheimer. Sul21, Porto Alegre, 25/11/2019.
PHILLIPS, Whitney. This is why we can’t have nice things: Mapping the relationship between online trolling and mainstream culture. Cambridge, MIT Press, 2015.
WARDLE, Claire; DERAKHSHAN, Hossein. “Information disorder: Toward an interdisciplinary framework for research and policy making”. Council of Europe Report, v. 27, 2017.
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